Questão tributária

Oficialização de flanelinhas gera pseudotributação

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31 de dezembro de 2010, 9h07

Em recente matéria veiculada no jornal O Estado de São Paulo, datada de 6 de dezembro do corrente ano, sob o título “SP planeja testar ‘flanelinha oficial’ em áreas críticas”, fora colocada em debate tema que, embora de aparente e extrema simplicidade, não deixou de resvalar nas diretrizes de nossa ordem jurídica atual, em rota de colisão, já nos permitindo a antecipar, com os nossos atuais mandamentos constitucionais condizentes, sobretudo, com a ordem tributária nacional.

De fato, pode se perceber, com solar clareza, que a almejada formalização de tal atividade (flanelinhas) terá como objetivo fomentar uma alegada distribuição de segurança extra àqueles que estacionarem os seus veículos em locais a serem considerados e demarcados como “críticos” no município de São Paulo, ou seja, assumirá, a referida atividade, o status público de prestação complementar de serviços municipais de segurança (de interesse local) em áreas públicas, no caso, em determinadas ruas previamente selecionadas.

Acreditamos, entretanto, já pedindo vênia aos que discordarem, que serviços públicos[1] apenas podem ser alcançados, de duas, por uma das seguintes formas de remuneração, a saber: 1ª) se inespecíficos e indivisíveis, através das receitas gerais advindas da arrecadação impositiva, no caso, municipal, através da instituição dos impostos então facultados constitucionalmente (IPTU, ISS e ITBI oneroso) e, 2ª) se específicos e divisíveis, por meio do tributo Taxa.

No caso ora em questão, vê-se, nitidamente, por exclusão, tratar-se da primeira opção, qual seja, de serviços públicos inespecíficos e indivisíveis de segurança pública municipal (de interesse local), a serem, em tese, custeados por meio de impostos (de suas receitas gerais), donde já se pode perceber uma clara ilegitimidade de qualquer cobrança que se venha a fazer via flanelinhas, ainda que estes encontrem-se devidamente regularizados.

Com efeito e, utilizando-se do conceito jurídico de imposto, enquanto tributo não vinculado a uma atuação estatal, ou melhor, condicionado a uma ação derivada do próprio particular, não se vê na relação pecuniária de pagamento em questão, aos citados flanelinhas, a concretização de qualquer materialidade possível e prevista na Constituição, que fosse hábil a ensejar eventual forma impositiva àquele que estiver estacionando o seu veículo em determinada rua. Não haveria, frise-se, qualquer prenúncio de nascimento de uma obrigação tributária.

Estar-se-ia criando, a bem da verdade, um pseudo-imposto municipal incompatível com as faculdades constitucionalmente delineadas para tanto. Ademais, chegar-se-ia ao absurdo de uma cobrança impositiva totalmente desfigurada, também, por estar sendo levada a cabo por pessoas totalmente alheias ao próprio conceito jurídico que se tem de capacidade tributária ativa (aptidão para arrecadação tributária), sob qualquer ângulo que tal instituto venha a ser abordado, além de estar-se, aqui, incorrendo na sempre questionável destinação específica a que tais montantes estariam se sujeitando pelo imposto desfigurado. Será indevida, então, assim pensamos, a (camuflada) tributação que se pretende ver instaurada.

Por fim, avançando um pouco mais em nossas considerações, tem-se que a aludida cobrança, que se deseja regulamentar, não ostentaria, tampouco, a natureza, igualmente, de preço público, uma vez que por ser um dado serviço público sempre prestado em decorrência de lei, tipificar-se-ia como bem indisponível, como coisa fora do comércio (res extra commercium), não sujeita, portanto, a qualquer negociação, daí advindo a sua real impossibilidade de vir a ensejar uma cobrança de preço, marcado, este sim, pela real disponibilidade do objeto do negócio, entre partes igualmente relacionadas, sob a égide de uma relação contratual voluntária.

Neste sentido, aliás, são oportunas as lições de Roque Carrazza, para quem, em sendo “…tal atividade realizada por imperativo de lei não pode fazer nascer um simples preço (uma contraprestação). Sem dúvida, eis aí duas colocações antitéticas, pois, se a atividade vem a lume por determinação legal, não se opera em consequência de uma contraprestação”.[2]

Com tudo isto, pois, queremos significar que o projeto atualmente em discussão não encontrará qualquer respaldo em nosso sistema constitucional tributário, ao menos em não se querendo subverter os próprios desideratos do ente municipal a quem compete, em âmbito de interesse local, através de uma boa administração da já elevada arrecadação tributária impositiva, dar efetividade aos serviços públicos de sua alçada, in casu, condizentes com a sua própria segurança pública.


 

[1] Serviço público, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, é “…toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado ou por quem lhes faça as vezes, sob um regime de direito público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais-, instituído pelo Estado em favor dos interesses que houver definido como próprios no sistema normativo”. Curso de Direito Administrativo. 13ª ed. rev. at. aum. São Paulo: Malheiros, 2000, pp. 597-599.

[2] Curso de Direito Constitucional Tributário.15ª ed. rev. amp. at. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 379. Grifos do autor.

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