Direito tributário

Fiscalização de serviço de energia e fato gerador

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24 de dezembro de 2010, 7h00

Criada pela Lei 9.427/1996, a Taxa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica (TFSEE) é revertida à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), sendo cobrada de todos os concessionários, permissionários ou autorizados, inclusive os produtores independentes e os autoprodutores, representando 0,5% do valor do benefício econômico auferido (valor econômico agregado na exploração de serviços e instalações de energia elétrica, conforme fórmula definida no Decreto 2.410/97). De seu caráter imperativo, não-punitivo, remuneratório de uma atividade estatal voltada especificamente ao contribuinte, extrai-se a natureza tributária da TFSEE, sujeita, portanto, aos princípios e regras peculiares às espécies do gênero tributo.

Constantemente, alguns questionamentos são postos perante à agência reguladora no tocante ao momento em que surge o fato gerador da obrigação tributária e à ocasião em que esta deixa de configurar-se. Numa análise casuística, a Aneel enfrentou questão relacionada à cessão de operação de usina termelétrica, que, inoperante, insurgiu-se contra a cobrança da TFSEE, sob a alegação de que, embora ainda detentora de outorga de autorização, ainda não revogada, encontrava-se inativa, não atraindo, desse modo, a prática de atos de polícia da agência.

Eis a discussão que ora se objetiva enfrentar no presente estudo. A Lei 9.427/96 instituiu a TFSEE, tributo destinado a custear o exercício do poder de polícia concedido à Aneel. Veja-se, a propósito, o disposto no artigo 12 do mencionado diploma legal:

Art. 12. É instituída a Taxa de Fiscalização de Serviços de Energia Elétrica, que será anual, diferenciada em função da modalidade e proporcional ao porte do serviço concedido, permitido ou autorizado, aí incluída a produção independente de energia elétrica e a autoprodução de energia.
§ 1o A taxa de fiscalização, equivalente a cinco décimos por cento do valor do benefício econômico anual auferido pelo concessionário, permissionário ou autorizado, será determinada pelas seguintes fórmulas:
I – TFg = P x Gu
onde:
TFg = taxa de fiscalização da concessão de geração;
P = potência instalada para o serviço de geração;
Gu = 0,5% do valor unitário do benefício anual decorrente da exploração do serviço de geração.
II – TFt = P x Tu
onde:
TFt = taxa de fiscalização da concessão de transmissão;
P = potência instalada para o serviço de transmissão;
Tu = 0,5% do valor unitário do benefício anual decorrente da exploração do serviço de transmissão.
III – TFd = [Ed / (FC x 8,76)] x Du
onde:
TFd = taxa de fiscalização da concessão de distribuição;
Ed = energia anual faturada com o serviço concedido de distribuição, em megawatt/hora;
FC = fator de carga médio anual das instalações de distribuição, vinculadas ao serviço concedido;
Du = 0,5% do valor unitário do benefício anual decorrente da exploração do serviço de distribuição.
§ 2o Para determinação do valor do benefício econômico a que se refere o parágrafo anterior, considerar-se-á a tarifa fixada no respectivo contrato de concessão ou no ato de outorga da concessão, permissão ou autorização, quando se tratar de serviço público, ou no contrato de venda de energia, quando se tratar de produção independente.
§ 3o No caso de exploração para uso exclusivo, o benefício econômico será calculado com base na estipulação de um valor típico para a unidade de energia elétrica gerada.”

O artigo 13 da mesma lei identificou os sujeitos passivos do novo tributo como os “concessionários, permissionários e autorizados” dos serviços de energia elétrica, fixando como data inicial de vigência da taxa o dia 1º de janeiro de 1997. O fato gerador do tributo, logo se percebe, é o exercício do poder de polícia da agência reguladora sobre todos os agentes submetidos à sua fiscalização. Cabe salientar o disposto no artigo 16, inciso II, do Decreto 2.003/96, que regulamenta a produção de energia elétrica por produtor independente e autoprodutor:

Art. 16. A partir da entrada em operação da central geradora de energia elétrica, o produtor independente e o autoprodutor sujeitar-se-ão aos seguintes encargos, conforme definido na legislação específica e no respectivo contrato:
I – (…)
II – taxa de fiscalização dos serviços de energia elétrica, a ser recolhida nos prazos e valores estabelecidos no edital de licitação e nos respectivos contratos;

O dispositivo transcrito concede uma dilação de prazo para o início da obrigação tributária relativa à taxa de fiscalização dos serviços de energia elétrica, que passa a ser exigível a partir da operação da central geradora.

A análise conjunta do caput do artigo 12, da Lei 9.247/96, e do artigo 16, II, do Decreto 2.003/96 leva à conclusão da existência de dois elementos necessários para a formação da sujeição tributária relativa à TFSEE, a saber, a existência de ato de outorga para a geração (concessão, permissão ou autorização) e o início de operação da central geradora de energia elétrica.

Os argumentos permitem concluir a partir de qual momento ocorre a exigibilidade da TFSEE imputada aos agentes de geração. De fato, a referida taxa passa a incidir sobre a atividade do concessionário, do permissionário ou do autorizado quando este já estiver em posse de um ato administrativo de outorga e seu empreendimento encontre-se em operação. Conclui-se, portanto, que a incidência da TFSEE dá-se com observância conjunta de um ato de outorga (concessão, permissão ou autorização) para a geração de energia e a entrada em operação do empreendimento.

Delimitado o momento a partir de quando a taxa é devida, cumpre precisar a partir de quando a mesma deixa de ser devida. Quanto ao dies ad quem, ou seja, quanto ao momento em que a taxa de fiscalização passa a não mais ser devida, convém mencionar que tal ponto não foi objeto de tratamento pelo multicitado decreto. Assim, cumpre analisar se, após cessada a operação comercial, subsiste o fato gerador da taxa de fiscalização.

Entende-se que apenas a revogação do ato de outorga exclui o agente gerador da condição de autorizado de serviço de energia elétrica, tendo, por consequência, a não configuração da obrigação tributária.

A discussão ora posta, em cotejo com o disposto no artigo 12 da Lei 9.427/96, converge para um exame aprofundado da fenomenologia da incidência da norma tributária ou regra-matriz de incidência tributária. No antecedente da regra-matriz de incidência supratranscrita, encontra-se descrita uma situação fática (também chamada de fato gerador ou fato imponível) que, ocorrendo, dará ensejo ao surgimento da obrigação tributária.

O fato gerador é composto de três aspectos: material, espacial e temporal. Deixando de lado o aspecto espacial, relativo ao lugar onde o fato ocorre e que não apresenta qualquer relevância para o presente caso, serão focados os aspectos material e temporal, pois guardam íntima relação com a discussão ora enfrentada.

No critério material, há referência a um comportamento/conduta, o qual, no caso da TFSSE, corresponde à obtenção da outorga de concessão, permissão e autorização de serviço público. Observe-se que, embora não expressa, a norma de incidência tributária, prevista no artigo 12 da Lei 9.427/96, institui o referido tributo para ser cobrado em razão da concessão, permissão ou autorização ao particular. Eis o fato material que dá ensejo à cobrança.

Partindo de tal critério material, chega-se ao aspecto temporal, o qual contém elementos que indicam o instante em que acontece o fato descrito, passando a existir o liame jurídico que amarra o devedor e credor em função de um objeto, o pagamento da prestação pecuniária.

No caso da hipótese de incidência descrita no artigo 12 da Lei 9.427/96, o critério temporal está atrelado ao seu aspecto material. Desse modo, pode-se afirmar que a obrigação tributária haverá a partir da formalização do ato de outorga e enquanto esta perdurar, a qual, para cada exercício, surgirá na data estabelecida em norma. Note-se que o critério material não se trata de fato instantâneo que se esgote em momento preciso, mas de fato complexo que se perpetua no tempo, enquanto vigente a outorga do serviço concedido, permitido ou autorizado.

Não se desconhece, contudo, que, em concernência ao produtor independente e ao autoprodutor, o artigo 16, inciso II, do Decreto 2.003/96, já referido, postergou o aspecto temporal da referida norma para “a partir da entrada em operação da central geradora de energia elétrica”. Entretanto, o aspecto material restou intacto, configurando-se a obrigação tributária, ano a ano, enquanto ainda concedido, permitido ou autorizado o serviço. Em outras palavras, ao passo que vigente a respectiva outorga.

Desse modo, resta claro que, se a taxa é devida a partir do momento da entrada em operação comercial e se seu fundamento reside na possibilidade de fiscalização aos agentes regulados, enquanto vigente a autorização outorgada a empreendimento termelétrico, há de se entender cabível a cobrança da taxa de fiscalização.

Para elucidar dúvidas, cabe registrar que a TFSEE é taxa com origem no exercício do poder de polícia do Estado sobre a atividade desenvolvida pelos agentes sujeitos à fiscalização da Aneel. Cuida-se, pois, de tributo com fundamento no artigo 145, II, da Constituição Federal, vazado nos termos adiante trazidos:

Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:
(…)
II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição;

Conforme aduz a doutrina administrativista e posicionamento jurisprudencial majoritário, o exercício do poder de polícia por parte do ente estatal não carece de comprovação individual, bastando, para justificar a existência do fato gerador do tributo, a existência de um aparato próprio de fiscalização.

O tema da exigência da taxa em decorrência do exercício do poder de polícia, definitivamente, não mais exige a concreta fiscalização. Até porque, partindo-se do exame aprofundado da noção do poder de polícia e de suas formas de manifestação, sabe-se que esse não é exercido tão somente por meio de atos concretos, pois a regulação de certas atividades por meio de atos normativos também caracteriza o exercício desse poder.

Em tal sentido, analisando tributo semelhante, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Especial 416.601, da relatoria do ministro Carlos Velloso, em 10 de agosto de 2005, declarou constitucional a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental (TCFA), instituída pela Lei 10.165/2000, que tem como fato gerador o exercício regular do poder de polícia conferido ao Instituto Brasileiro e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a qual é paga trimestralmente pelos sujeitos passivos (pessoas jurídicas que exercem atividades potencialmente poluidoras ou que se utilizam de recursos naturais), independente de eles sofrerem fiscalização efetiva.

Consoante o entendimento da Corte Maior, afasta-se a necessidade de concreta e efetiva fiscalização, permitindo-se a cobrança da taxa pelo simples fato de se manter um órgão estruturado e em funcionamento voltado para fiscalização respectiva.

De igual modo, algumas decisões do Superior Tribunal de Justiça, decorrentes do cancelamento da Súmula 157, têm entendido que o poder de polícia que enseja a cobrança da respectiva taxa pode ser presumido. Quando do julgamento do Recurso Especial 261.571, fundamentado em decisão do Supremo Tribunal Federal, a 1ª Seção do STJ entendeu por bem cancelar a Súmula 157, e, a partir de então, assentou-se o posicionamento de que a cobrança da taxa prescinde da comprovação da atividade fiscalizadora:

TRIBUTÁRIO – TAXA – LOCALIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO – LEGITIMIDADE DA COBRANÇA – PRECEDENTES DO STF – REVOGAÇÃO DA SÚMULA 157/STJ
1. Consoante orientação traçada pelo eg. STF, a cobrança da taxa de localização e funcionamento, pelo município, prescinde da comprovação da atividade fiscalizadora, face à notoriedade do exercício do poder de polícia pelo aparato da Municipalidade.
2. Com base nesse entendimento, a col. 1ª Seção de Direito Público cancelou a Súmula 157, reconhecendo a legitimidade da cobrança da taxa em referência.
3. Recurso especial improvido.
(Resp 261.571, relatora ministra Eliana Calmon, j. 24/04/2002)

"PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – TAXA DE FISCALIZAÇÃO DE LOCALIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO – LEGITIMIDADE DA COBRANÇA – ART. 77 DO CTN.
1. Consoante orientação traçada pelo STF, a cobrança da taxa de localização e funcionamento, pelo Município, prescinde da comprovação da efetividade da atividade fiscalizadora, bastando seu exercício em potencial.
2. Recurso especial improvido.
(Resp 698.559, relatora ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, 20.9.2005, Data da Publicação10.10.2005, p. 327)

TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. TAXA DE FISCALIZAÇÃO DE ANÚNCIOS – TFA. OFENSA A DISPOSITIVO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO ESPECIAL. IMPOSSIBILIDADE. LANÇAMENTO DE OFÍCIO QUE SE PERFECTIBILIZA COM A NOTIFICAÇÃO AO SUJEITO PASSIVO, COM O ENVIO DAS GUIAS PARA PAGAMENTO DAS TAXAS. PODER DE POLÍCIA. EFETIVIDADE DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PELA MUNICIPALIDADE. PRESCINDIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO.
1. É inadmissível o exame de alegada violação a dispositivos da Constituição Federal na via do recurso especial, por se limitar a competência do STJ, traçada no art. 105, III, da CF, à uniformização da interpretação da lei federal infraconstitucional.
2. É legítima a notificação do lançamento das Taxas de Fiscalização ao contribuinte mediante a remessa, pelo correio, do carnê ou guias para pagamento. Precedentes Resp 645.739/RS, 1ª Turma, ministro Luiz Fux, DJ de 21.03.2005; Resp 842771/MG, 1ª T., ministro Francisco Falcão, DJ de DJ 30.04.2007.
3. A 1ª Seção pacificou entendimento de que é prescindível a comprovação efetiva do exercício de fiscalização por parte da municipalidade em face da notoriedade de sua atuação (Resp 261.571/SP, 1ª Seção, ministra Eliana Calmon, DJ de 06.10.2003; AgRg no Ag 777725/PR, 1ª T., ministra Denise Arruda, DJ de 03.05.2007; AgRg no Ag 880772/DF, 1ª T., ministro Francisco Falcão, DJ de 20.09.2007; Resp 810335/RO, 2ª T., ministra Eliana Calmon, DJ de 27.03.2008 ).
4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, desprovido.
(Resp 680.829/MG, relator ministro Teori Albino Zavascki, 1ª Turma, julgado em 06/05/2008, DJe 15/05/2008)

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO – TAXA DE LICENÇA PARA FUNCIONAMENTO – LEGITIMIDADE DA COBRANÇA – ART. 77 DO CTN – PRELIMINARES NÃO DEBATIDAS NO ACÓRDÃO RECORRIDO – AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO – APLICAÇÃO DA SÚMULA 282/STF.
1. Inviável o recurso especial quanto às questões que não foram discutidas pelo acórdão recorrido, tendo em vista a falta de prequestionamento da matéria (Súmula 282/STF).
2. O STF já proclamou a constitucionalidade de taxas, anualmente renováveis, pelo exercício do poder de polícia, e se a base de cálculo não agredir o CTN.
3. Afastada a incidência do enunciado da Súmula 157/STJ.
4. Desnecessária a prova da efetiva fiscalização, sendo suficiente sua potencial existência.
5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.
(Resp 810.335/RO, relatora ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, julgado em 11/03/2008, DJe 27/03/2008)

Voltando ao questionamento ora posto, cumpre observar que, conquanto a operação comercial possa ter cessado há muito tempo, certo é que, se o ato de outorga ainda continua válido, ainda, resta configurada a obrigação tributária.

Em regra, os pedidos de revogação são formulados quando cessada a operação comercial do empreendimento. Após a solicitação do agente, o Poder Público é instado a se pronunciar se a mesma é aderente ou não ao interesse público e, para fins dessa análise, a administração pode reputar necessário que haja diligências in loco.

Não se pode, contudo, afirmar que, obrigatoriamente, a fiscalização terá de efetuar diligências. Porém, não se despreza que há essa potencialidade. E essa potencialidade, como amplamente afirmado, já é suficiente para legitimar a cobrança da taxa de fiscalização (TFSEE).

Por outro lado, se a agência reguladora vinha entendendo, anteriormente, que a desconexão do agente em momento anterior à revogação da outorga tem por consequência a impossibilidade da cobrança da TFSEE, dado o encerramento da fiscalização sobre o empreendimento inoperante, não cumpre à administração, mudando seu entendimento, pretender o recolhimento do tributo que, equivocadamente, deixou de cobrar.

Não é possível que a Administração aplique retroativamente seus critérios interpretativos, de modo a abranger fatos ocorridos no passado, quando operante leitura diversa da normativa incidente. Embora se comungue in tottum das considerações acerca da mutabilidade interpretativa, não se compartilha do entendimento que alterações de interpretação, aplicadas de forma retroativa, possam render ensejo à anulação de um ato administrativo.

Não se olvidando da Súmula 473 do STF, a qual trata da possibilidade de a administração anular atos quando eivados de ilegalidade (e não quando tenham fundamento em nova interpretação administrativa legítima e sem vícios) e de revogar por motivos de conveniência e oportunidade. Entretanto, em se tratando de mudança de interpretação, não se permite a aplicação da referida súmula, vez que a administração deve anular atos eivados de ilegalidade e não aqueles que decorrem de uma mudança de interpretação sua.

Destaca-se que o Supremo Tribunal Federal considera o “princípio da confiança” como elemento do princípio da segurança jurídica. Esse corresponde à presença de um componente de ética jurídica aplicado nas relações jurídicas de direito público[1]. Sendo princípio que deflui do estado de direito democrático, estima-se que não deva ser ignorado quando de julgamentos pelas autoridades administrativas.

O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não há meios de coibir tal ato, porque poder confiar é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e uma conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica. Caso contrário, estar-se-ia no Estado que é sugerido por Hobbes in o Leviatã.

O princípio da confiança tem um componente de ética jurídica, que se expressa no princípio da boa-fé. Dito princípio consagra que uma confiança despertada de um modo imputável deve ser mantida quando efetivamente se creu nela. A suscitação da confiança é imputável quando o que a suscita sabia ou tinha de saber que o outro ia confiar. Nesta medida, é idêntico ao princípio da confiança. E nada obsta que o raciocínio se aplique às relações jurídicas de direito público[2].

Corroborando a posição de que há uma correlação entre a prática dos atos administrativos e a salvaguarda de certos princípios, há precedentes do Colendo Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. (…) 4. Consoante cediço, a segurança jurídica é princípio basilar na salvaguarda da pacificidade e estabilidade das relações jurídicas, por isso que não é despiciendo que a segurança jurídica seja a base fundamental do Estado de Direito, elevada ao altiplano axiológico.
Sob esse enfoque e na mesma trilha de pensamento, J.J. Gomes Canoltilho: “Na actual sociedade de risco cresce a necessidade de actos provisórios e actos precários a fim de a administração poder reagir à alteração das situações fáticas e reorientar a prossecução do interesse público segundo os novos conhecimentos técnicos e científicos. Isto tem de articular-se com salvaguarda de outros princípios constitucionais, entre os quais se conta a proteção da confiança, a segurança jurídica, a boa-fé dos administrados e os direitos fundamentais”. (José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional e Teoria da Constituição. Ed. Almedina: Coimbra, 4ª edição) 12. Recurso especial desprovido.
[3]

Em se tratando de interpretação da administração, deve-se aplicar o que dispõe o artigo 2º da Lei 9.784/99:

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
(…)
XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.

A norma, em prestígio a princípios constitucionais múltiplos, veda expressamente aplicação retroativa de nova interpretação.[4] Se não fossem apenas as considerações tecidas, mas o próprio Código Tributário Nacional, no artigo 146, proíbe expressamente a alteração do critério jurídico geral da administração aplicável ao mesmo sujeito passivo com eficácia para os fatos pretéritos, senão vejamos seu teor:

Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em consequência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução.

De fato, os critérios jurídicos reiteradamente aplicados pela administração na feitura de lançamentos tributários têm conteúdo de precedente obrigatório. Tais critérios podem ser alterados em razão de decisão judicial ou administrativa, mas a aplicação dos novos critérios somente pode dar-se em relação aos fatos geradores posteriores à alteração. Tudo em nome da certeza e da segurança jurídicas.

Segundo Ricardo Lobo Torres, no artigo anteriormente transcrito, “afasta-se a mudança, com efeito retroativo, do critério individualmente utilizado no lançamento relativo a um mesmo sujeito passivo, para proteger a boa-fé do contribuinte” (2000, p. 165).

O mesmo autor, em outra passagem, ratifica seu posicionamento, entendendo que, se, em consulta anterior, a administração firmou entendimento quanto à existência/inexistência de relação tributária, não pode, posteriormente, exigir tributo cuja cobrança havia anteriormente afastado, posição esta que guarda íntima relação com o caso analisado no presente parecer. Eis a afirmação in verbis do mencionado autor:

Esse princípio da inalterabilidade do lançamento, estampado no artigo 146 do CTN, emana da segurança dos direitos individuais e da proteção da confiança dos direitos do contribuinte. Aplica-se principalmente nos casos de consulta da existência de relação jurídica tributária: se a administração firmar ponto de vista, favorável ao contribuinte, não poderá depois, nem mesmo em virtude de decisões administrativas ou judiciais, voltar atrás para exigir daquele contribuinte beneficiado o imposto devido por fatos pretéritos; apenas os fatos futuros ficarão sujeitos ao novo critério jurídico. (TORRES, 2000, p. 279)

Outrossim, Sacha Calmon Navarro Coêlho afirma que a orientação fiscal poderá variar com relação a outros contribuintes, mas nunca quanto àquele que já adquiriu, por ato administrativo regular, o direito público subjetivo de não recolher determinado tributo. Entender o contrário seria implantar o regime do arbítrio e da insegurança nas relações entre o fisco e o contribuinte, em manifesta contradição com a índole de nosso sistema jurídico (1999, p. 660). A jurisprudência, por sua vez, corrobora o entendimento doutrinário:

TRIBUTÁRIO. MERCADORIA IMPORTADA. ICMS. MOMENTO DO FATO GERADOR. ARTIGO 155, § 2º, IX, "A", DA CF/88. ARTIGO 34, § 3º, DO ADCT. CONVÊNIO 66/88. ACÓRDÃO RECORRIDO FUNDADO EM MATÉRIA EXCLUSIVAMENTE INFRACONSTITUCIONAL. ENTENDIMENTO DO STF CONSOLIDADO NA SÚMULA N.º 661. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 577/STF LIMITADA AOS FATOS GERADORES ANTERIORES À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
1. O recolhimento prévio do ICMS como condição para desembaraço aduaneiro de mercadoria importada passou a ser exigido após a promulgação Constituição Federal de 1988, nos termos na Súmula 661, do STF ("Na entrada de mercadoria importada do exterior, é legítima a cobrança do ICMS por ocasião do desembaraço aduaneiro"), não mais se justificando, a partir de então, a incidência da Súmula 577/STF ("Na importação de mercadoria do exterior, o fato gerador do imposto de circulação de mercadorias ocorre no momento de sua entrada no estabelecimento do importador").
2. "A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução" (art. 146, do CTN).
3. "O artigo 146 do CTN positiva, em nível infraconstitucional, a necessidade de proteção da confiança do contribuinte na Administração Tributária, abarcando, de um lado, a impossibilidadede retratação de atos administrativos concretos que impliqueprejuízo relativamente à situação consolidada à luz de critériosanteriormente adotados e, de outro, a irretroatividade de atosadministrativos normativos quando o contribuinte confiou nasnormas anteriores". (Leandro Paulsen, in Direito Tributário – Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, 8ª ed., Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2006, pág. 1.086)
(…) (STJ, Resp nº 810565, Rel. Min. Luiz Fux, 1ª Turma, p. 03/03/2008).

A finalidade do artigo 146 do CTN é impedir a revisão de lançamento tributário ou a prática de lançamento de ofício quando a situação jurídica está consolidada com fulcro nos critérios jurídicos vigentes à época do fato gerador da obrigação tributária, mesmo que esses critérios digam respeito à valoração dos fatos ou à interpretação da lei.

Os efeitos do artigo 146 do CTN se espraiam inclusive aos créditos tributários ainda não constituídos, referentes a fatos geradores já ocorridos. Sob essa ótica, o artigo 146 do CTN se conecta com o princípio da irretroatividade, vinculando a administração ao critério jurídico existente à época do fato gerador, tanto para a revisão de lançamento quanto para o lançamento de ofício.

Saliente-se, inclusive, que, para fim de legitimação da decisão administrativa, adotado para o futuro, a autoridade administrativa precisa formalizar a “inserção” da novidade jurídica, com efeito erga omnes, de modo a aplicá-la a todos os sujeitos passivos em relação aos quais tenha, no passado, empregado o critério antigo.

Em conclusão, pode-se afirmar que a cobrança da TFSEE é devida desde a outorga de concessão, permissão e autorização e, no caso do produtor independente e do autoprodutor, a partir da entrada em operação da sua usina. Tal cobrança permanece devida inexoravelmente até a revogação da outorga, esteja o gerador em operação ou não, tendo em vista a possibilidade, neste ínterim, do exercício do poder de polícia da agência reguladora. Caso a agência venha adotando entendimento diverso, a sua mudança de interpretação não tem o condão de atingir fatos geradores ocorridos anteriormente, devendo ter eficácia tão somente ex nunc.

BIBLIOGRAFIA:

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro: Curso de Direito Tributário Brasileiro. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.

TORRES, Ricardo Lobo: Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, 3ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

 

__________________. Curso de Direito Tributário, 12 edição, 2003.


[1] (RE 488443/RJ)

[2] Interpretação que tomou por base o excelente Voto do Ministro Gilmar Mendes (Relator), no MANDADO DE SEGURANÇA N°. 25.259-6.

[3] REsp 658.130/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05.09.2006, DJ 28.09.2006 p. 195.

[4] Nesse sentido, já se posicionou o Tribunal Regional Federal da 3ª Região no julgamento de Apelação em Mandado de Segurança n. 2002.03.99.030048-7; Relator DESEMBARGADOR FEDERAL CASTRO GUERRA; DÉCIMA TURMA; Data do julgamento 22/08/2006; O Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem também decisão semelhante, consoante o julgamento proferido na AMS 2007.36.00.008042-0/MT, Rel. Desembargador Federal Francisco De Assis Betti, Conv. Juíza Federal Rogeria Maria Castro Debelli, Segunda Turma,e-DJF1 p.561 de 26/09/2008.

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