Ideias do milênio

"Conservadorismo surge quando pessoas têm medo"

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17 de dezembro de 2010, 7h00

Reprodução/GloboNews
Robert Lacey e Silio Boccanera - Reprodução/GloboNews

O programa Milênio, da Globo News, apresentou no último dia 22 de novembro a entrevista feita com o historiador britânico Robert Lacey. Autor de dois livros sobre a Arábia Saudita, país onde morou e que visita frequentemente, Lacey, nesta entrevista, lança luzes sobre os mistérios nem sempre edificantes do berço do islamismo e dos interesses contraditórios do maior produtor de petróleo do mundo. Leia a seguir a entrevista feita pelo jornalista Silio Boccanera. O programa é exibido às 23h30 de segunda-feira, com reapresentação às terças (3h30; 11h30 e 17h30), quartas (5h30) e domingos (7h05). 

Leia a seguir a transcrição da entrevista com Robert Lacey:

Silio Boccanera Nos ataques de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, 19 terroristas suicidas se envolveram. 15 eram da Arábia Saudita. A inspiração e o incentivo para aquela ação dramática do grupo fundamentalista islâmico que atacou Nova Iorque e Washington partiu de outro saudita: Osama Bin Laden. A represália americana no entanto foi contra o Afeganistão e o Iraque. Nada além de advertências diplomáticas à Arábia Saudita e ao seu governo monárquico, repressor, autoritário e religioso, porém assentados nos maiores depósitos de petróleo do mundo e aliado do ocidente. A família real saudita que comanda o país desde sua fundação, em 1932, adota e defende uma versão tradicionalista da religião muçulmana. O Wahhabismo, que entre suas práticas impede mulheres de dirigir e de sair em público ou trabalhar sem autorização de um homem, marido, irmão ou parente. Uma polícia religiosa atua nas ruas como fiscal de bom comportamento e os tribunais do país operam com base na Sharia, ou leis religiosas muçulmanas. Que país é este? Que influências tem no mundo árabe? E sobre os muçulmanos em geral, já que em seu solo nasceram o islã e o profeta Maomé? Em seu território ficam as cidades sagradas de Meca e Medina. Qual a influência saudita sobre os militantes do fundamentalismo islâmico? O Milênio levou essa e outras perguntas ao historiador britânico Robert Lacey, que há trinta anos entra e sai da Arábia Saudita com freqüência. Passou anos morando e pesquisando lá para escrever dois livros sobre o país. Kingdom, ou Reinado, saiu nos anos 80. Agora ele lança Inside the Kingdom, ou Por Dentro do Reinado, uma atualização do que se passa neste país tão pouco conhecido fora de suas fronteiras, porém influente de maneira até dramática.

Silio Boccanera — Ao olhar para a Arábia Saudita, os ocidentais pensam em vastos desertos, muito petróleo no subsolo, em xeques ricos vivendo luxuosamente e esbanjando dinheiro no Ocidente enquanto a população local vive praticamente como há mil anos, de forma muito retrógrada. Essa imagem é realista?
Robert Lacey — É uma imagem muito realista. A tensão da vida na Arábia Saudita é essa luta perpétua entre a modernização, que o governo tenta promover de uma forma geral, e o medo das pessoas. O conservadorismo, em qualquer sociedade, surge quando as pessoas estão amedrontadas, quando sentem que as coisas estão progredindo rápido demais. Com certeza, é o que acontece na Arábia Saudita desde a revolução iraniana de 1979, que mostrou a todos os regimes do Oriente Médio o que acontece quando se avança rápido demais, como o xá fez: cria-se uma tensão entre conservadores e modernizadores. 

Silio Boccanera — Economicamente, costumamos pensar na Arábia Saudita como um país rico, por causa do petróleo, é claro, mas, na verdade, apenas a elite é muito rica, apenas os favorecidos pela família real. Com 28 milhões de habitantes, incluindo imigrantes, o produto interno bruto per capita é o 70º do mundo abaixo da Bulgária. A riqueza não beneficia um vasto segmento da população, não é?
Robert Lacey — Não beneficia toda a população da forma que se espera em uma democracia ocidental. Afinal, a família Saud é uma monarquia absoluta e não vê problema algum nisso. Há uma disparidade entre o fato de ser o 70º país em distribuição de renda e estar no G20 como poder econômico. É o 3º país mais importante economicamente em termos do que possui em reservas em dólar. Porém, apesar de a família real e os negociantes que a cercam serem multibilionários, é um Estado incrivelmente assistencialista, tem hospitais modernos maravilhosos, serviço de saúde gratuito, universidades incríveis… Os jovens recebem para irem para a universidade, não só a mensalidade não é paga, eles recebem um salário para irem para a universidade tanto na Arábia Saudita quanto fora dela. O grande problema é que isso tudo é subsidiado pelo Estado. Não há trabalho para o saudita comum. Há uma grande concentração em torno de 8 milhões de trabalhadores estrangeiros de baixo custo, de certa forma, são trabalhadores escravos. Eles vivem em moradias improvisadas e eram muito maltratados até bem recentemente.

Silio Boccanera — Paquistaneses, indianos…
Robert Lacey — São paquistaneses, indianos, imigrantes de Sri Lanka, Bangladesh… É claro que muitos trabalhadores são muçulmanos, e um tipo de compensação por suas condições miseráveis é o fato de estarem na Terra Sagrada. Eles podem fazer a peregrinação. Significa muito para eles, e os sauditas exploram isso, de certa forma.

Silio Boccanera — No Ocidente, agora estamos mais familiarizado com as diferenças dentro da religião muçulmana, os sunitas, xiitas, sufistas e os alauitas são alguns que conhecemos. Mas os sauditas, apesar de serem sunitas em sua maioria, são conhecidos como wahabitas. Por favor, explique o que isso significa.
Robert Lacey — Eles são chamados de wahabitas porque a Arábia Saudita é produto de um acordo entre a família Saud e um pregador muçulmano, no século 18, em 1743, antes de os EUA serem criados. Ele se chamava Muhammad ibn Abd-al-Wahhab. Wahhab significa “dar”, “o doador”. Abd-al-Wahhab é o “escravo do doador”, é um dos nomes de Deus. E ele era puritano, um “protestante” em termos cristãos. Ele era contra todos os rituais e tradições católicas: a adoração a túmulos, as mesquitas elaboradas que surgiram na Arábia Saudita. Ele queria purificar isso. Era como Calvino, digamos assim. E a família Saud fez um acordo com ele: eles divulgariam sua doutrina que ficou conhecida como wahabismo, um islamismo muito austero e simples. Uma forma de islamismo sunita. Muito antixiita. Os xiitas têm seus “cardeais”, os aiatolás, eles veneram… Eles vão a cemitérios para reverenciar seus ancestrais. Os sunitas, os wahabistas, não aceitariam isso. Então o acordo foi: a família Saud promoveria o wahabismo e, em troca, o wahabismo promoveria a família Saud dizendo: “A luta pela família Saud é uma guerra santa. E, se morrerem nela, vocês vão para o Paraíso.” Isso criou uma espécie de “talibã saudita” que deu à família Saud o poder que ela tem hoje na Arábia. A Arábia Saudita tem esse nome porque foi criada e pertence a essa família, a família Saud. É o único país do mundo com o nome de uma família. 

Silio Boccanera — Vamos voltar ao período em que a Arábia Saudita foi criada, em 1932. Muitos de nós que viram [o filme] Lawrence da Arábia se lembra do oficial britânico Lawrence, Peter O’Toole no filme, fazendo um acordo com o rei, interpretado por Alec Guinness. Esse rei uniu todas as tribos e derrotou os turcos que ocupavam a terra prometendo às tribos a criação de uma Arábia independente. Elas receberam a Arábia porque o rei era Saud, mas não conseguiram para a Arábia em geral a independência do controle britânico como esperavam, não é? As tribos foram traídas de certa forma.
Robert Lacey — O rei sobre o qual estamos falando, Alec Guinness, amigo de Peter O’Toole… Não podemos esquecer que tudo foi filmado na Espanha, não na Arábia. Não é uma imagem confiável. 

Silio Boccanera — Fantasia de cinema, claro.
Robert Lacey — Ele era hashimita, não era da família Saud. O que prometeram a ele foi o reino dos árabes. Como não deram isso a ele, e porque os britânicos tinham planos de criar uma nação judaica no Oriente Médio, ele perdeu seu privilégio com os britânicos, e a família Saud veio do interior, o expulsou, conquistou os locais sagrados em 1926 e criou o que se tornou em 1932 a Arábia Saudita. Então, tendo feito isso com seus guerreiros sagrados, após poucos anos, jorrou petróleo da terra. Então, o petróleo foi visto como a benção de Deus sobre a família Saud por suas boas práticas religiosas. Começar com esse recurso ocidental precioso deu um grande impulso ao poder religioso dos tradicionalistas.

Silio Boccanera —Mas, ao mesmo tempo, os britânicos estavam subdividindo a região, criando a Jordânia, criando fronteira estranhas, totalmente artificiais, o Iraque, o Líbano… E, até hoje, essas fronteiras são fonte de problemas. Então é difícil entender… Me esqueci de citar a Palestina. É difícil entender os conflitos atuais sem pensar nesse período.
Robert Lacey — Receio que tenha muito a ver com os britânicos porque, e isso é interessante, os diplomatas e espiões que foram à Arábia Saudita não saíram de Londres, mas de Nova Deli, do departamento da ocupação britânica na Índia, pois a península arábica era importante por causa do Mar Vermelho e do Canal de Suez. Não queríamos ninguém controlando a península que pudesse ameaçar a rota britânica pelo Mar Vermelho nem no Golfo. Então criamos Kuwait, Dubai, Abu Dhabi, Catar… Eram efetivamente colônias britânicas, administradas por agente britânicos. 

Silio Boccanera — Em 1979, quando o senhor se mudou para lá, houve um dos primeiros internacionais dos fundamentalistas, quando eles tomaram Meca, o que chocou o governo e o mundo islâmico em geral e, como o senhor disse, tornou os sauditas mais conservadores. Em outras palavras, eles cederam às demandas dos radicais. Mas outro importante acontecimento no fim desse ano foi a invasão soviética. Eles se voltaram para o tradicionalismo e depois aconteceu a revolução muçulmana no Irã e, no final do ano, os soviéticos invadiram o Afeganistão. Isso causou um enorme impacto na região. Como os sauditas reagiram a esse bando de comunistas ateus se apoderando de um país muçulmano?
Robert Lacey — Os sauditas se indignaram com a invasão soviética ao Afeganistão porque eles eram profanos, contra a religião, não tinham Deus. Os americanos ficaram preocupados porque a URSS estava entrando nos campos petrolíferos que Jimmy Carter, como sabemos bem, declarou serem áreas americanas e avisou aos soviéticos para saírem. Eles se recusaram a sair, ficaram no Afeganistão e o resultado foi que os EUA e a Arábia Saudita, a princípio, secretamente, começaram a financiar o fundamentalismo no Afeganistão para expulsar os soviéticos. É uma grande ironia. Os soviéticos estabeleceram um governo secular, ateu, do tipo que íamos adorar ver agora no Afeganistão, mas, para expulsá-los, demos dinheiro aos homens de barba. Encorajamos pessoas como Bin Laden e outros fundamentalistas sauditas, além dos combatentes semelhantes aos do talibã no Afeganistão. Nós os armamos e ajudamos a expulsar o que Ronald Reagan chamou de “Império do Mal”, fortalecendo assim Osama Bin Laden e dando à juventude muçulmana, desempregada, um trabalho a ser feito. Você não arranja trabalho no seu país, mas pode virar um “guerreiro sagrado”. Que idéia incrível! No século 20, um jovem muçulmano deve deixar a barba crescer, se armar e lutar pela guerra santa. Nós pagamos por isso.

Silio Boccanera — Foi uma espécie de acordo entre os EUA, especificamente a CIA, que tinham seus próprios objetivos, queriam combater os russos, e o financiamento dos sauditas que queriam combater o ateísmo dos russos. Então, não é teoria da conspiração dizer que a CIA e os sauditas criaram o que vemos hoje.
Robert Lacey — Osama Bin Laden, al-Qaeda… A al-Qaeda foi criada no fim dos anos 80 a partir do triunfo alcançado por Bin Laden e outros extremistas. Eles criaram uma nova organização para manter viva a guerra santa em outros lugares, no Iêmen e, no devido momento, na Arábia Saudita.

Silio Boccanera — Bin Laden era só um jovem rico que vivia na Arábia Saudita. Como eles se tornou esse militante fundamentalista?
Robert Lacey — Osama Bin Laden vem de uma família de grandes negociantes da Arábia Saudita. O pai dele era íntimo do falecido rei. Se você vai à Arábia Saudita, até hoje, você vê o nome “Bin Laden” por toda parte. É uma grande empresa de construção. Foi contratade para construir a mesquita sagrada. E Osama era um integrante devoto dessa família. Como na família real, seu pai tinha várias esposas, ele tinha uns 30 irmãos e 30 irmãs. Osama sempre foi rebelde e, quando foi para o Afeganistão no começo dos anos 80, achou um papel para desempenhar. Ele levou tratores da empresa Bin Laden para ajudar a construir estradas para os mujahedin usarem e derrotarem mais facilmente os russos. E ele voltou, no fim dos anos 80, como um herói vitorioso.

Silio Boccanera — Vamos voltar à História. Quando os soviéticos foram derrotados e saíram do Afeganistão, em 1989, os combatentes muçulmanos não tinham mais uma guerra em que lutar. Então, em agosto de 1990, Saddam Hussein invadiu o Kuwait. Um país muçulmano foi tomado por outro. E os sauditas tiveram medo de serem o próximo alvo, principalmente porque seus campos de petróleo ficam perto do Kuwait. Militarmente, os sauditas não se comparam aos iraquianos, que tinham acabado de lutar contra o Irã, eram bem treinado, tinham prática. Então eles tinham duas opções: ou se entregavam ou pediam ajuda aos EUA. Isso deve ter sido motivo de conflito no país.
Robert Lacey — Havia uma terceira opção, apresentada por Osama Bin Laden. Ele disse: “Não chamem os americanos, esses cruzados infiéis, para a nossa terra santa. Isso é heresia e é vergonhoso muçulmanos e árabes chamarem ocidentais para lutar. Deixe-me usar meus guerreiros da al-Qaeda, vamos infiltrar no Kuwait, lutar de casa em casa, fazer o mesmo que fizemos no Afeganistão. Vamos expulsar Saddam. Nós mesmos faremos isso.” Não era má idéia, podia ter funcionado, mas a família Saud não gostou, pois não queria dar mais poder a Bin Laden. E os americanos não apoiariam isso, eles queriam ter todo tipo de garantia de que os campos de petróleo estavam seguros. Então, 500 mil americanos entraram no reino e criaram conflito. Para começar, muitos soldados eram mulheres. Mulheres que dirigiam jipes… 

Silio Boccanera — E as mulheres são proibidas de dirigir na Arábia Saudita.
Robert Lacey —
Exato. E, de repentes, moças radicais de Riad disseram: “As americanas dirigem. Por que não podemos?” Então pegaram os carros dos maridos e saíram dirigindo pelas ruas de Riad, em uns 40 ou 50 carros. Mulheres dirigindo assim. Isso indignou imensamente os religiosos conservadores, que disseram: “Olhe o que acontece quando ocidentais entram no país. Já havia ocidentais demais, agora tem esses soldados. As mulheres estão questionando seu lugar na sociedade.” A Guerra do Golfo tornou a Arábia Saudita, de muitas formas, mais extremista religiosamente do que jamais foi e deu poder a pessoas como Bin Laden e a al-Qaeda.

Silio Boccanera — Depois que a guerra acabou, após o Kuwait ser libertado, muitos soldados voltaram, mas muitos ficaram na Arábia Saudita, o que enlouqueceu pessoas como Osama Bin Laden, não é?
Robert Lacey — É, os americanos ficaram durante 10 anos, e os sauditas queriam que eles ficassem. Essa questão ainda não foi esclarecida. Por que todos eles não foram mandados de volta? Eu acredito que o governo americano disse: “Não podemos nos arriscar, queremos nossos soldados aí.” E isso levou à desavença pública com Bin Laden. Ele deixou o país, declarou guerra contra a família Saud, sua cidadania foi revogada, mandaram a família dele congelar seus bens. Esse é um dos motivos pelos quais a própria família de Bin Laden é quem mais tem interesse em saber se Bin Laden está vivo ou morto, pois, assim que souberem que ele está morto, todos os bens dele serão distribuídos entre seus filhos.

 Silio Boccanera — Ficarão com o dinheiro.
Robert Lacey — Exato, mais isso só acontecerá quando tiverem certeza de que ele está morto. Isso levou à série de atentados organizados por Osama Bin Laden para atacar o que ele chama de “inimigo distante”. O objetivo real dele era o inimigo próximo, a família Saud. Era difícil, por causa da segurança e da polícia secreta saudita, fazer algo dentro da Arábia Saudita. Então ele saiu dela, atacou as embaixadas americanas na África, o navio de guerra USS Cole no Iêmen e, é claro, o maior de todos foi o atentado às torres gêmeas em 11 de setembro. 

Silio Boccanera — O rei atual está no poder há cerca de 5 anos. Ele é conhecido como um reformador. Pelo menos para quem vê de fora, pode não parecer grande coisa. Há chance de ele enfrentar as autoridades religiosas que são quem realmente mantém as coisas retrógradas?
Robert Lacey — Na última vez em que vi o rei Abdullah, ele estava em Madri há alguns anos, apertando a mão de rabinos. Os próximos da fila eram cardeais, depois, budistas. Ele vê que a Arábia Saudita também é responsável pelos atentados de 11 de Setembro, que o radicalismo e o fanatismo vêm de uma intolerância que deve ser detida. Por isso, ele começou um diálogo entre religiões para tentar melhorar as relações do Islã com outras crenças. Mas ele nunca poderia apertar a mão de rabinos em Riad. Hoje, ele não pode convidar cardeais que usam cruzes no peito para ir a Riad porque o clero [muçulmano] não aceitaria. Lembro que, quando eu morava na Arábia Saudita em 1979, 1980, as pessoas ficaram indignadas porque o futuro rei, Fahd, foi para Londres e, como parte da visita conheceu a rainha e recebeu dela a Ordem Real Britânica, que tem uma cruz. Ele foi fotografado usando no pescoço esse insígnia com uma cruz. “Ele foi para o lado do Diabo.” Há muita superstição simplista, do nosso ponto de vista, entre homens e mulheres sauditas. Não são apenas os idosos, o problema é que os jovens sauditas, frustrados por não arranjarem emprego e tal, são atraídos pelo sentimento contra o Ocidente e, portanto, pelo extremismo religioso. O rei Abdullah tenta combater isso. Ele criou uma universidade na costa do Mar Vermelho. Vou visitá-la semana que vem. Nela, homens e mulheres freqüentam os mesmo espaços da faculdade. Há mulheres dirigindo carros lá, andando de bicicleta… Nós, ocidentais, achamos isso maravilhoso. Muitos sauditas comuns dizem: “Isso é coisa do Diabo. Olhem para onde estamos indo. Logo, essas mulheres terão suas próprias ideias e vão fazer o que quiserem.” Então, xeques religiosos se pronunciaram contra isso. Na verdade, Abdullah demitiu de seus cargos todos os xeques religiosos que criticaram o que ele está fazendo. Isso funciona até certo ponto porque esses xeques religiosos recebem dinheiro do governo. Então ele tem certo controle sobre eles, mas vai demorar muito para vermos tolerância religiosa na Arábia Saudita.

Silio Boccanera — Frequentemente lemos sobre os preceitos retrógrados do talibã no Afeganistão e dos aiatolás no Irã e seu regime teocrático, mas, na Arábia Saudita, há uma visão retrograda da sociedade. As mulheres são tratadas como seres inferiores, as pessoas são decapitadas em público, o governo se submete a fundamentalistas e tradicionalistas religiosos. Mas, em contraste com o talibã e os aiatolás, o Ocidente parece não pressioná-los a mudarem. É só por causa do petróleo?
Robert Lacey —
Obviamente, o fato de ter a maior reserva de petróleo do mundo dá à Arábia Saudita muitos privilégios, principalmente com os americanos. Mas tudo isso que você citou está mudando. As mulheres são tratadas mal em certo sentido, por outro lado, são muito valorizadas como propriedade. São a principal posse…

Silio Boccanera — Não é muito construtivo considerá-las como propriedade.
Robert Lacey — Em uma sociedade tradicional, como a saudita, as mulheres têm muito poder. Por exemplo, o rei Fahd, o falecido rei, e seus irmãos, compareciam imediatamente quando sua mãe os chamava. Eu já vi ricos negociantes sauditas, ao saberem que a sua mãe estava vindo, apagarem o cigarro na própria mão porque as mulheres têm imenso poder dentro das famílias. Um sina interessante do progresso na Arábia Saudita é que o preço de uma noiva… A família do homem tem que fazer um acordo com a família dela e comprá-la, basicamente. É cerca de US$ 20 mil o preço de uma noiva saudita comum agora. O preço de mulheres que trabalham está subindo porque elas podem oferecer mais. Não defendo o modo como os homens sauditas tratam as mulheres, mas isso tem muito a ver com o fato de eles as verem como bens preciosos da família. Por exemplo, um jovem amigo saudita meu conheceu uma garota pela internet e queria ir ao shopping conhecê-la, ter um encontro com ela. Quando ele chegou, não pôde entrar. Homens solteiros não podem entrar em shoppings porque eles sabem que vão lá encontrar mulheres. E ele ficou furioso. Eu perguntei: “Você ficaria feliz se sua irmã pudesse ir a um shopping encontrar com um homem?” Ele disse: “Com certeza, não. Minha irmã vai se casar com quem eu e o homens da minha família mandarem.” E ele é um jovem saudita ocidentalizado. Há um longo caminho a percorrer. 

Silio Boccanera — O governo saudita é uma monarquia criada nessa época. Assim como o Reino Unido, mas a família real britânica não tem nenhum poder, são apenas figuras cerimoniais. Mas, na Arábia Saudita, a família real controla tudo. Como eles exercem esse poder?
Robert Lacey — Um dos maiores segredos na Arábia Saudita é quanto do dinheiro do petróleo vai para a família real. Por outro lado, não é segredo que boa parte do dinheiro vai para eles. Originalmente, eles eram os donos de todas as terras da Arábia Saudita. Então, todas as melhorias, shoppings, hospitais, universidades… A maioria foi construída nas terras deles. Então a família real lucra duas vezes. Não sabemos o tamanho da família real, alguns dizem que são 5 mil pessoas, outros, 6 mil. Já se estimou que podem ser até 15 mil pessoas. Porque, até recentemente, a maioria dos príncipes da família real tinha 4 esposas. Antigamente, também tinham escravas e concubinas, dormiam com elas, se elas engravidavam, elas eram desposadas. Então o atual rei, Abdullah, é um dos 35 ou 36 filhos concebidos pelo pai, Ibn Saud, que criou o país e, é claro, também tinha 35 ou 36 filhas.

Silio Boccanera — Se a Arábia Saudita tivesse se projetado no mundo com mais impacto, na década de 70… Estou falando da crise do petróleo e de como, de repentes, os sauditas, de certa forma, lideraram um movimento para tirar vantagem do petróleo. Explique como isso aconteceu.
Robert Lacey — A crise do petróleo na década de 70 surgiu da posição ambivalente da Arábia Saudita em relação aos EUA. Por uma lado, os EUA refinam o petróleo dela, por outro, são patronos do Estado de Israel, o que é uma grande afronta aos sauditas assim como a praticamente todos os árabes do Oriente Médio. No começo dos anos 70, os árabes tentaram se vingar. A guerra também chamada de Guerra do Ramadã [ou Guerra do Yom Kippur], na qual…

Silio Boccanera — Em 1973.
Robert Lacey — Em 1973, obrigado. Nessa guerra, os egípcios atravessaram o Canal de Suez, já tendo trabalhado secretamente com os sauditas para conseguir dinheiro para financiá-los, e pegaram os israelenses de surpresa. Porque o feriado judeu da Yom Kippur acontece na mesma época do Ramadã árabe. Então eles surpreenderam os israelenses, começaram a forçá-los a recuar pelo Sinai até Israel, até que os EUA foram ajudar Israel, promovendo uma escalada militar em 24 horas. E o rei Faisal, da Arábia Saudita ficou tão furiosos com o que ele entendeu como interferência americana, que pressionou a OPEP, a Organização de Países Exportadores do Petróleo, a criarem o embargo. O embargo, na verdade, foi só a dois países, os EUA e a Holanda. Mas não conceder todo esse petróleo ao mercado mundial fez com que, em questão de meses o petróleo custasse 4 vezes mais. E o equilíbrio de poder nunca mais foi o mesmo. 

Silio Boccanera — E, poucos anos depois, em 1979, na revolução iraniana, o preço do barril ficou ainda mais alto.
Robert Lacey — No fim dos anos 70, o barril de petróleo custava quase US$ 40, sendo que, no começo da década custava 2 ou 3 dólares. Foi assim que o poder do petróleo começou, mas também foi o começo da ocidentalização da Arábia Saudita. 

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