Processo eleitoral

Leia o voto de Gilmar Mendes sobre Ficha Limpa

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4 de dezembro de 2010, 7h58

Carlos Humberto/SCO/STF
Ministro Gilmar Mendes em sessão plenária. 10/06/2010 - Carlos Humberto/SCO/STFO artigo 16 da Constituição Federal, que fixa o princípio da anterioridade nas eleições, é garantia fundamental do cidadão eleitor, do cidadão candidato e dos partidos políticos. O entendimento do ministro Gilmar Mendes, compartilhado pelos ministros Dias Toffoli, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, marcou a divergência sobre o conceito de processo eleitoral. E, assim, o Supremo Tribunal Federal viveu um dos maiores impasses de sua história. Na ocasião, o STF analisou o recurso do ex-candidato ao governo do Distrito Federal, Joaquim Roriz (PSC), barrado pela Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135/2010).

Após 11 horas de discussão exaustiva, a votação, iniciada no dia 23 de setembro deste ano, ficou empatada, com cinco votos para cada lado. Para Gilmar Mendes, que defendeu a não aplicação da Ficha Limpa no pleito deste ano, o artigo 16 da Constituição integra as cláusulas pétreas. “Não observar essa regra afronta os direitos individuais da segurança jurídica e do devido processo legal”, afirmou ele em seu voto. Publicada em 7 de junho deste ano, a Lei da Ficha Limpa, se aplicado o artigo 16 da Constituição, somente poderia valer a partir de 7 de junho de 2011.

Interferência no processo eleitoral
Diz o dispositivo constitucional que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”. Foi justamente neste ponto que houve racha entre os ministros. Houve divergências no entendimento do conceito de processo eleitoral.

Para os ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Ayres Britto e Ellen Gracie, só tem poder de interferir no processo eleitoral uma regra que desequilibra ou deforma a disputa. Como a Lei da Ficha Limpa é linear, ou seja, se aplica para todos indistintamente, não se pode afirmar que ela interfere no processo eleitoral. Logo, sua aplicação é imediata.

Os dois grupos discordaram, por exemplo, sobre quando se inicia o processo eleitoral. Para a maior parte do time pró aplicação imediata da lei, o processo se inicia com as convenções partidárias, que pela Lei Eleitoral devem ser realizadas entre 10 e 30 de junho, e com os registros de candidatura, que devem ser feitos até as 19h do dia 5 de julho.
 

Em seu voto, Gilmar Mendes explicou que o processo eleitoral se divide em três fases: a fase pré-eleitoral, que vai desde o registro, a escolha e a apresentação das candidaturas até a realização da propaganda eleitoral; a fase eleitoral, que compreende o início, a realização e o encerramento da votação; e a fase pós-eleitoral, que se inicia com a apuração e contagem de votos e finaliza com a diplomação dos candidatos.

Ao entender que a Ficha Limpa, editada para regulamentar o artigo 14, § 9º da Constituição, fixou novas causas de inelegibilidade, considerando fatos da vida pregressa do candidato, o ministro afirmou que a lei interferiu numa fase específica do processo eleitoral, qualificada na jurisprudência do STF como a fase pré-eleitoral. “Não há dúvida, portanto, que a alteração de regras de elegibilidade repercute de alguma forma no processo eleitoral”.

Ele afirmou que a fase pré-eleitoral não pode ser delimitada temporalmente entre os dias 10 e 30 de junho, no qual ocorrem as convenções partidárias, pois o processo político de escolha de candidaturas é muito mais complexo e tem início com a própria filiação partidária do candidato, em outubro do ano anterior.

O ministro considerou que se a situação jurídica dos candidatos se caracteriza na forma das normas vigentes do processo eleitoral, qualquer alteração significativa nas “regras do jogo” prejudicaria as estratégias de suas campanhas. Por isso, ele ressaltou que a não retroação da Ficha Limpa é uma garantia constitucional do devido processo legal eleitoral. Esse entendimento está consignado no julgamento da ADI 3.685, de relatoria da ministra Ellen Gracie, julgado em 2006, sobre a garantia da anterioridade tributária fixada no artigo 150, III, b, da Constituição.

“Não tenho dúvidas de que o artigo 16 da Constituição funciona também como uma proteção da igualdade de chances no processo eleitoral. Na medida em que a instituição de novas causas de inelegibilidade interfere no direito de acesso aos cargos públicos por parte dos candidatos e, dessa forma, na liberdade de escolha de candidaturas pelos partidos políticos, ela deve ser submetida ao princípio da anterioridade eleitoral, sob pena de violação clara à igualdade de chances no processo eleitoral”. A regra do artigo 16 tem como objetivo impedir a deformação do processo eleitoral mediante alterações casuísticas e que interfiram na igualdade de participação dos partidos políticos e seus candidatos.

Gilmar Mendes também fez referência ao precedente aberto pelo julgamento do RE 129.392, julgado em 1992. No caso, o Supremo decidiu, por seis votos a cinco, que a Lei Complementar 64, sobre novas regras de inelegibilidade, sancionada em 13 de maio de 1990, tinha aplicação imediata porque não alterava o processo eleitoral. A maioria dos ministros entendeu que a lei trazia uma complementação exigida pelo parágrafo 9º do artigo 14 da Constituição. Assim, um artigo da Constituição (o artigo 16) não poderia ser aplicado para negar aplicação de outros artigos da própria Constituição. O STF decidiu que a norma não receberia a incidência do artigo 16, “porque vinha de um mandamento constitucional inaugural”, preenchendo lacunas em um sistema instituído pela nova ordem constitucional de 1988.

Porém, para Gilmar Mendes, o caso da Ficha Limpa é diferente, pois já existe um sistema de inelegibilidades vigente há 20 anos, a partir do qual todos os candidatos se guiavam. “Antes não se tratava de uma reforma ao texto. Agora há essa reforma”, sustentou o ministro, ao explicar porque é necessário esperar um ano. Ele mencionou trecho de voto do ministro aposentado Sepúlveda Pertence, para quem “a anterioridade exigida pelo artigo 16 é essencial à aspiração de segurança e de isonomia que estão subjacentes à ideia qualificada de processo, como o do devido processo legal”. Para o ministro, essa perspectiva de análise, que leva em conta a restrição de direitos e garantias fundamentais é mais objetiva do que aquela que segue na identificação subjetiva do casuísmo da alteração eleitoral.

Direito das minorias
O ministro Gilmar Mendes ressaltou que a questão não é saber se a Ficha Limpa interfere no processo eleitoral, mas se ela de alguma forma restringe direitos e garantias fundamentais do cidadão eleitor, do cidadão candidato e dos partidos políticos e, desse modo, atinge a igualdade de chances na competição eleitoral, com consequências diretas sobre a participação eleitoral das minorias. “Se a resposta a essa questão for positiva, então deverá ser cumprido o mandamento constitucional extraído do princípio da anterioridade (artigo 16) na qualidade de garantia fundamental componente do plexo de garantias do devido processo legal eleitoral”.

A inclusão de novas causas de inelegibilidade diferentes das inicialmente previstas na legislação, além de afetar a segurança jurídica e a isonomia inerentes ao devido processo legal eleitoral, influencia a própria possibilidade de que as minorias partidárias exerçam suas estratégias de articulação política em conformidade com os parâmetros inicialmente instituídos, segundo ele. “O princípio da anterioridade eleitoral constitui uma garantia fundamental também destinada a assegurar o próprio exercício do direito de minoria parlamentar em situações nas quais, por razões de conveniência da maioria, o poder legislativo pretenda modificar, a qualquer tempo, as regras e os critérios que regerão o processo eleitoral", considerou Gilmar Mendes.

Ele observou que se o Supremo admitir que uma nova lei pode ser publicada dentro do processo eleitoral para aumentar os prazos de inelegibilidade e atingir candidaturas em curso, a Corte terá de admitir que a mesma lei possa ser novamente alterada para modificar os mesmos prazos da inelegibilidade com efeitos retroativos. Dessa forma, em cada pleito eleitoral, os requisitos de elegibilidade ficariam a mercê de vontades políticas majoritárias

Iniciativa popular
Gilmar Mendes afirmou que leis de iniciativa popular também estão submetidas ao controle de constitucionalidade. “Não devemos ser ingênuos a ponto de imaginar que se colhem dois, três, cinco milhões de assinaturas sem a participação de organizações que podem ser ocupadas partidariamente”. Ele atacou os argumentos de que o tribunal teria de considerar o fato de a Lei da Ficha Limpa ser de iniciativa popular.

“Fosse a lei aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional, ainda assim estaria submetida à Constituição. O STF não existe para mimetizar decisões de palanques. Se fosse para ser decalque do Congresso, poderíamos fechar o Supremo. Se lei de iniciativa popular escapar ao controle constitucional, é melhor fechar o tribunal”.

Ao afirmar isso, o ministro destacou que não está discutindo o mérito da lei. “A aplicação do princípio da anterioridade, para postergar a vigência desta lei, não significa uma reprovação do seu conteúdo em termos gerais. Não é disso que se trata. A lei, com todas as suas virtudes, poderá ser normalmente aplicada nas próxima eleições”.

O caso
O ex-candidato ao governo do Distrito Federal Joaquim Roriz (PSC) foi enquadrado na Lei da Ficha Limpa após renunciar ao mandato de senador em 2007, pouco antes de o Senado decidir se abriria processo por quebra de decoro parlamentar contra ele. A Justiça Eleitoral entendeu que ele renunciou para escapar do processo, o que pela nova lei é um critério de inelegibilidade.

Roriz foi eleito senador em 2006, com 51,83% dos votos válidos. Seu mandato terminaria em 2014. De acordo com a nova regra, o prazo de oito anos em que o político fica inelegível começa a contar a partir do término de seu mandato. Dessa forma, Roriz não poderia concorrer a nenhum cargo eletivo até 2022. A proibição de concorrer às eleições para os políticos sob investigação administrativa que renunciam ao mandato está prevista no artigo 1ª, da Lei da Ficha Limpa.

Com o empate de seu recurso na Suprema Corte, Roriz desistiu de concorrer ao governo, indicando sua mulher, Weslian Roriz, para se candidatar em seu lugar.

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RE 630.147

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