Tributo em discussão

Alcance de imposto sobre fortunas é incógnita

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30 de agosto de 2010, 15h55

Conforme veiculado, recentemente, nos meios próprios de comunicação, fora aprovado, pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei Complementar 227/08, que cria o Imposto Federal sobre Grandes Fortunas, cuja iniciativa, desde a promulgação da atual Constituição Republicana, em 1988, restava, de todo, adormecida. O aludido projeto de lei busca, assim, dar vida ao artigo 153, inciso VII da Carta Maior, estando a depender ainda de sua passagem pelo plenário do Congresso Nacional, bem como, pelo Senado Federal.

Assim sendo, enquanto o aludido tributo ainda aguarda a sua oficial instituição, cremos ser pertinentes algumas considerações acerca de possíveis questionamentos que sobre o mesmo poderão existir.

Antes, porém, vale ressaltar que a opção da criação propriamente dita do imposto em referência por meio de lei complementar apenas lhe consignou formalidade adicional, sem nenhum prejuízo, muito pelo contrário, ao próprio contribuinte.

É que, esclarecendo melhor a precitada afirmação, pensamos como Roque Carrazza segundo o qual, à lei complementar referida no inciso VII do artigo 153 da Constituição Federal, caberia, dentro de seu respectivo campo objetal, apenas a definição das “diretrizes básicas que nortearão a criação deste imposto…”[1], o qual, sob tais diretrizes (definição de “grande fortuna” e forma de apuração de sua base de cálculo, por exemplo), poderia ser instituído por meio de lei ordinária da União.

De qualquer forma, a lei complementar, já preliminarmente aprovada, está aguardando somente a sua pronta concretização formal, para o que nos resta, neste breve ensaio, apenas demonstrar algumas aparentes incongruências que já pairam sobre o imposto sobre grande fortuna, ainda que este esteja em seu momento final de gestação.

De fato, mesmo que seja respeitado o primado da anterioridade tributária (art. 150, III, b, CF), quando de sua futura cobrança, entendemos não ter restado claro na referida norma (ainda projeto de lei) o critério que será observado para se fazer valer a garantia a direitos adquiridos e a atos jurídicos perfeitos (patrimônios já consolidados, por exemplo, no início de cada exercício financeiro, em 1º de janeiro) e sobre os quais se pretenda fazer incidir a norma tributária, que parece ser vaga, então, neste aspecto.

Noutras palavras, parece-nos preocupante a incerteza quanto à consciência do legislador tributário no que tange ao alcance também de outro princípio constitucional, geral e tributário, que atua como corolário do próprio sobreprincípio da segurança jurídica e que se vê representado pela plena noção e aceitação da irretroatividade da lei, nos termos dos artigos 5º, inciso XXXVI, e 150, inciso III, alínea “a” do Texto Maior.

Pensamos, assim, que a incidência deste novo tributo, dentro de sua conformação temporal, deverá respeitar o patrimônio já materializado quando da eficácia de sua respectiva norma, alcançando apenas os acréscimos patrimoniais novos que atinjam, por sua vez, o valor pré-determinado no aspecto material de sua hipótese de incidência tributária (artigo 1º do PL), sendo bem pertinente, a propósito, a lição de Vicente Ráo, para quem “o homem que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro, nem sequer quanto a sua vida passada”.[2]

E, novamente com Roque Carrazza, para quem o “Estado de Direito traz consigo a segurança jurídica e a proibição de qualquer arbitrariedade. Nele impera a lei e, mais do que isso, a certeza de que da conduta das pessoas não derivarão outras conseqüências jurídicas além das previstas, em cada caso e momento, pela lei já vigente”.[3]

Outro ponto, por sua vez e, por fim, que nos parece também questionável, diz respeito à parametrização do que venha a ser definido, no mundo fenomênico (em que vivemos), como sendo, de fato, uma “grande fortuna”, de sorte a que os valores sugeridos pelo aludido projeto de lei em seu artigo 1º e, escalonados em seu artigo 5º, possam não vir a bem caracterizá-la.

Com efeito, o termo “fortuna”, por si só, já nos traz a ideia de “riqueza”. Por sua vez, uma “grande fortuna” nos faria pensar em algo além do mero conceito daquela. E, ao que nos parece, o aguardado imposto sobre grandes fortunas não se subsume ao aludido significado de fortuna tal qual a sua abstração, ao menos semântica, nos provoca[4].

Dentro destas circunstâncias, portanto, parece coerente a lição de Ives Gandra da Silva Martins que, ainda quando do nascedouro da atual Constituição Federal, dizia-se convicto de que “definitivamente, a classe média e a classe alta não detentora de grande fortuna, estarão a salvo deste tributo, se a Constituição for respeitada pelos legisladores. Fortuna é mais do que riqueza. E grande fortuna é mais do que fortuna. A pessoa rica, portanto, não deverá se submeter a qualquer imposição, incidível apenas sobre os grandes bilionários deste País. O universo de sua aplicação terá que ser necessariamente restrito”.[5]

Portanto, também por aqui, de duvidosa validade e constitucionalidade a futura norma acerca do imposto sobre grandes fortunas, sendo que, sob qualquer ângulo de reflexão, não deveremos nos esquecer de que a “Constituição não é um mero repositório de recomendações, a serem ou não atendidas, mas um conjunto de normas supremas que devem ser incondicionalmente observadas, inclusive pelo legislador infraconstitucional”.[6]

Ficam, aqui, portanto, alguns pretensos subsídios para maiores e mais aprofundados estudos e reflexões acerca desta intrincada questão.


 

[1] Curso de Direito Constitucional Tributário, 23ª edição, revista, ampliada e atualizada até a emenda constitucional n.53/2006. Malheiros: São Paulo, 2007, p.927, destaques originais. O eminente Professor, ainda, assim pondera: “Não será porém, lei complementar que instituirá, in abstrato, este imposto, nem, muito menos, disciplinará seu lançamento, processo de arrecadação e fiscalização.” Idem ob. cit., p.927. destaques originais.

[2] O Direito e a Vida dos Direitos. São Paulo: Resenha Universitária, 2ª Ed., vol. I, tomo III, 1977, p.355, in Regina Helena Costa. Curso de Direito Tributário, Constituição e Código Tributário Nacional, 1ª ed., 2ª tiragem. Saraiva: 2009, p.68.

[3] Curso… p.342.

[4] De fato, segundo o dicionário de língua portuguesa Michaelis (Melhoramentos: São Paulo, 1998), o termo ‘fortuna’ corresponde à ‘riqueza’. Por sua vez, o termo ‘riqueza’ condiz com ‘abundância ou superabundância de bens de fortuna ou, ainda, com fartura de qualquer coisa”.

[5] Sistema Tributário na Constituição de 1988. Saraiva: 1989, p.192. grifos nossos.

[6] Curso…, p. 34.

 

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