Sem fundamentos

É ilegal manter prisão de acusados por crime militar

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29 de agosto de 2010, 8h10

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, introduziu-se no ordenamento jurídico pátrio uma nova sistemática em relação às prisões cautelares, em que a regra tornou-se a liberdade e a exceção a prisão.[1] Tal inclinação derivou-se do princípio da presunção de inocência, concebido como uma orientação política voltada à garantia máxima das liberdades individuais (artigo 5º, inciso LVII, CF). Todavia, não obstante a dimensão restritiva e excepcional conferida às prisões cautelares, ainda é possível encontrar na legislação ordinária dispositivos que estão em descompasso com o mandamento constitucional e, por esta razão, devem ser relidos sob um novo enfoque ou, ainda, considerados automaticamente revogados[2].

Dentre os dispositivos que devem ser objeto de exame por violarem a Carta Magna, podemos citar a prisão preventiva obrigatória contida na legislação processual penal militar no crime de deserção, pois não há mais respaldo constitucional para sua aplicação. O mencionado delito encontra-se previsto no Código Penal Militar, dispondo, o tipo intitulado como básico[3], a seguinte conduta delituosa: “Art. 187. Ausentar-se o militar, sem licença, da unidade em que serve, ou do lugar em que deve permanecer, por mais de oito dias: Pena – detenção, de seis meses a dois anos; se oficial, a pena é agravada”. Ademais, o Código de Processo Penal Militar, ao regulamentar o procedimento especial para o processo do crime de deserção, trouxe a seguinte previsão: “artigo 453. O desertor que não for julgado dentro de sessenta dias, a contar do dia de sua apresentação voluntária ou captura, será posto em liberdade, salvo se tiver dado causa ao retardamento do processo.”

Diante disso, por meio de uma interpretação literal[4], denota-se que o mencionado artigo 453, da legislação processual penal militar, previu a possibilidade de concessão de liberdade provisória ao desertor somente após o transcurso do prazo de sessenta dias, exceto se o agente tenha contribuído com a delonga, período no qual deverá permanecer preso, independentemente da existência dos requisitos da prisão cautelar inseridos nos artigos 254 e 255, do Código de Processo Penal Militar (analogicamente também o artigo 312, do CPP), ou seja, sem que haja exame pelo juízo a respeito da cautelaridade, compreendida na presença de necessidade e legalidade da medida, para o processo.[5]

Corroborando o alegado acima, segundo Esdras dos Santos Carvalho, “O Superior Tribunal Militar tem interpretado o artigo 453 do CPPM como uma imposição legal para que permaneça o desertor preso em caso de captura ou de sua apresentação, não lhe concedendo liberdade provisória e sendo posto em liberdade somente decorridos sessenta dias de prisão”.[6] No mesmo sentido, segue como exemplo o seguinte julgado: “I – Habeas corpus impetrado em favor de desertor, requerendo, liminarmente, sua liberdade provisória e, no mérito, que responda ao processo em liberdade. II – A liminar foi negada, pois é constitucional a prisão de desertor e não se concede liberdade provisória por expressa vedação legal. Este assunto encontra-se, inclusive, sumulado por esta Corte”.[7]

Diante disso, observa-se a prevalência nos Tribunais Militares do entendimento de que o desertor deverá permanecer obrigatoriamente preso pelo prazo de sessenta dias, por força da legislação processual penal militar, que nada prevê (ao menos expressamente) a respeito da vedação da liberdade provisória no crime de deserção. O fato é tão pacífico que a própria Súmula 10, da referida Corte, reforça a ideia da impossibilidade do desertor responder ao processo em liberdade, ao dispor o seguinte preceito: “Não se concede liberdade provisória a preso por deserção antes de decorrido o prazo previsto no artigo 453”.[8]

No entanto, não obstante o posicionamento descrito acima, para decretação de uma prisão preventiva, mesmo no âmbito da Justiça Militar, faz-se necessária a ocorrência de dois requisitos,[9] o primeiro denominado fumus comissi delicti, consistente nos indícios suficientes de autoria e na prova da materialidade do delito, e o segundo definido como o periculum in mora, que nada mais é que: a) garantia da ordem pública; b) conveniência da instrução criminal; c) periculosidade do indiciado ou acusado; d) segurança da aplicação da lei penal militar; e, e) exigência da manutenção das normas ou princípios de hierarquia e disciplina militares, quando ficarem ameaçados ou atingidos com a liberdade do indiciado ou acusado.[10]

Dessa forma, com fundamento no princípio da presunção de inocência, apenas por meio da constatação dos requisitos da prisão preventiva se poderia impedir que o desertor respondesse ao processo em liberdade, tendo em vista que a alegação da vedação legal não é causa idônea e suficiente para impedir a liberdade do agente. No caso do artigo 453, do Código de Processo Penal Militar, a leitura que se faz do dispositivo legal é totalmente equivocada, visto que a menção à obrigatoriedade da prisão não mais encontra respaldo na ordem constitucional vigente, seja por uma releitura principiológica, seja pela revogação (por força de incompatibilidade lógica) da norma por meio do advento da Carta Magna, pois prevalecerá certamente o direito fundamental de presunção de inocência.

Luigi Ferrajoli esclarece perfeitamente a regra da liberdade e suas consequências, vez que “O imputado deve comparecer livre perante seus juízes, não só porque lhe seja assegurada a dignidade de cidadão presumido inocente, mas também – e diria acima de tudo – por necessidade processual: para que ele esteja em pé de igualdade com a acusação”.[11] Sob essa perspectiva não há guarida para se permitir a manutenção da prisão do desertor, exceção sob a atual ótica constitucional, mormente sob o argumento de impossibilidade legal ou com base em interpretação (equivocada) manifestamente prejudicial ao agente, eis que a liberdade será sempre a regra, admitindo-se a restrição à liberdade somente em hipóteses excepcionais e desde que haja algum risco ao processo.

Assim, não obstante o dispositivo legal e a regulamentação exposta acima, o Supremo Tribunal Federal, garantindo o que fora preconizado na Constituição Federal, no HC 89.645[12] afastou a aplicação do artigo 453, do Código de Processo Penal Militar, eis que a prisão do desertor somente poderia perdurar no caso de estarem presentes os requisitos da prisão preventiva elencados no artigo 312, do Código de Processo Penal ou analogicamente os requisitos dos artigos 254 e 255, do Código de Processo Penal Militar.

Além disso, ao contrário do entendimento do Superior Tribunal Militar, no sentido de que o artigo 453, do Código de Processo Penal Militar, previu implicitamente a impossibilidade de concessão de liberdade provisória, Maurício Zanóide de Moraes, ao tratar de restrições à liberdade provisória por mera previsão legal, leciona que “há violação da presunção de inocência, por falta de justificação constitucional e de respeito à proporcionalidade, sempre que o legislador proíbe, de forma absoluta e apriorística, a concessão de liberdade provisória”.[13] Note-se que o caso do crime de deserção é mais grave ainda, visto que não há proibição ex lege[14] expressa de se responder ao processo em liberdade, porquanto se trata de mera interpretação dos julgadores ao não se permitir a liberdade provisória, em flagrante desrespeito ao princípio da presunção de inocência e toda sua carga axiológica que guia o exame da norma, pois a vedação é invocada com base em fundamentos não contidos na redação no texto legal.

Com esteio nas considerações apresentadas acima, após a prisão do agente pelo crime permanente em análise com base no termo de deserção (artigos 451 e 452, do CPPM), visto que a Constituição Federal autoriza a prisão por crime militar sem ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária (artigo 5º, inciso LXI, CF), deverá o aludido termo ser encaminhado ao juízo competente para exame dos requisitos da prisão preventiva,[15] previstos nos artigos 254 e 255 do Código de Processo Penal Militar, pois, caso não estejam presentes, a simples dicção do artigo 453, da legislação processual penal militar, não é causa suficiente e muito menos idônea para impedir a liberdade provisória.

Portanto, com base nessas breves considerações, conclui-se que não há fundamento, seja legal, seja constitucional (e nesse espaço sequer se adentrará aos tratados internacionais), que impeça a concessão de liberdade provisória aos acusados do crime militar de deserção, eis que o artigo invocado pelos Tribunais como motivação/fundamento para indeferir o benefício legal encontra-se em dissonância com o texto constitucional vigente, principalmente no que diz respeito ao direito fundamental da presunção de inocência, merecendo por parte dos operadores do direito uma interpretação consentânea com o atual texto da Constituição Federal, como forma de garantir uma ampla efetivação das liberdades individuais mesmo no âmbito da Justiça Militar.


[1] DELMANTO, Roberto. As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. – Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 139.

[2] CONSTITUIÇÃO. LEI ANTERIOR QUE A CONTRARIE. REVOGAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE. IMPOSSIBILIDADE. A lei ou e constitucional ou não e lei. Lei inconstitucional e uma contradição em si. A lei e constitucional quando fiel a Constituição; inconstitucional, na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade e congênito a lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. (…). (ADI 85, Relator(a): Min. PAULO BROSSARD, Tribunal Pleno, julgado em 07/02/1992, DJ 29-05-1992 PP-07833 EMENT VOL-01663-01 PP-00077).

[3] Casos assimilados previstos no Código Penal Militar:

Art. 188. Na mesma pena incorre o militar que:

I – não se apresenta no lugar designado, dentro de oito dias, findo o prazo de trânsito ou férias;

II – deixa de se apresentar a autoridade competente, dentro do prazo de oito dias, contados daquele em que termina ou é cassada a licença ou agregação ou em que é declarado o estado de sítio ou de guerra;

III – tendo cumprido a pena, deixa de se apresentar, dentro do prazo de oito dias;

IV – consegue exclusão do serviço ativo ou situação de inatividade, criando ou simulando incapacidade.

Art. 190. Deixar o militar de apresentar-se no momento da partida do navio ou aeronave, de que é tripulante, ou do deslocamento da unidade ou força em que serve:

[4] Para Esdras dos Santos Carvalhona aplicação do CPPM, o vetor determinante é estabelecido pela Constituição Federal, ao definir o sistema processual em vigor e as demais garantias consagradas na Lei Maior”. O direito processual penal militar numa visão garantista. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 65.

[5] LIMA, Marcellus Polastri. A tutela cautelar no processo penal. – Rio de Janeiro: Lumes Juris, 2005, p. 214.

[6] CARVALHO, Esdras dos Santos. Op. cit., p. 177.

[7] STM, HC 2007.01.034302-4 UF: RJ Decisão: 08/03/200, Data da Publicação: 02/05/2007. No mesmo sentido, veja também: STM, HC 2008.01.034546-9 UF: RS Decisão: 04/09/2008, Data da Publicação: 24/09/2008; STM, HC 2009.01.034608-2 UF: DF Decisão: 10/02/2009; STM, MS 2009.01.000724-5 UF: RS Decisão: 28/04/2009, Data da Publicação: 29/05/2009.

[8] STM Súmula nº 10 – DJ1 Nº 249, de 24.12.96- Concessão de Liberdade Provisória a Preso por Deserção – Decurso do Prazo.

[9] LOPES JR., Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. II – Rio de Janeiro: 2009, p. 94/118.

[10] Muito embora apenas os itens “b” e “d” tenham alguma cautelaridade para o trâmite do processo, visto que os demais fundamentos, principalmente a garantia da ordem pública, são objeto de infindáveis críticas pela doutrina ante a sua flagrante inconstitucionalidade. Além disso, o Código de Processo Penal Militar é mais amplo, pois prevê figuras que não estão presentes no Código de Processo Penal (itens “c” e “e”). LOPES JR., Aury. Op. cit., p. 103/113.

[11] Direito e razão: teoria geral do garantismo penal. 2ª ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 515.

[12] “Habeas Corpus. (…). 2. Crime militar de deserção (CPM, art. 187). 3. Interpretação do STM quanto ao art. 453 do CPPM ("Art. 453. O desertor que não for julgado dentro de sessenta dias, a contar do dia de sua apresentação voluntária ou captura, será posto em liberdade, salvo se tiver dado causa ao retardamento do processo"). O acórdão impugnado aplicou a tese de que o art. 453 do CPPM estabelece o prazo de 60 (sessenta) dias como obrigatório para a custódia cautelar nos crimes de deserção. 4. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), a concessão da liberdade provisória, antes de ultimados os 60 (sessenta) dias, previstos no art. 453 do CPPM, não implica qualquer violação legal. (…) 6. O acórdão impugnado, entretanto, partiu da premissa de que a prisão preventiva, nos casos em que se apure suposta prática do crime de deserção (CPM, art. 187), deve ter duração automática de 60 (sessenta) dias. A decretação judicial da custódia cautelar deve atender, mesmo na Justiça castrense, aos requisitos previstos para a prisão preventiva nos termos do art. 312 do CPP. Precedente citado: HC nº 84.983/SP, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, unânime, DJ 11.3.2005. Ao reformar a decisão do Conselho Permanente de Justiça do Exército, o STM não indicou quaisquer elementos fático-jurídicos. Isto é, o acórdão impugnado limitou-se a fixar, in abstracto, a tese de que "é incabível a concessão de liberdade ao réu, em processo de deserção, antes de exaurido o prazo previsto no art. 453 do CPPM". É dizer, o acórdão impugnado não conferiu base empírica idônea apta a fundamentar, de modo concreto, a constrição provisória da liberdade do ora paciente (CF, art. 93, IX). Precedente citado: HC nº 65.111/RJ, julgado em 29.5.1987, Rel. Min. Célio Borja, Segunda Turma, unânime, DJ 21.8.1987). 7. Ordem deferida para que seja expedido alvará de soltura em favor do ora paciente”. (HC 89645, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 11/09/2007, DJe-112 DIVULG 27-09-2007 PUBLIC 28-09-2007 DJ 28-09-2007 PP-00078 EMENT VOL-02291-03 PP-00529).

[13] Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para elaboração legislativa e para a decisão judicial. – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 428.

[14] AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 10.826/2003. ESTATUTO DO DESARMAMENTO (…) INCOMPETÊNCIA DO CONGRESSO NACIONAL. PREJUDICIALIDADE. AÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE QUANTO À PROIBIÇÃO DO ESTABELECIMENTO DE FIANÇA E LIBERDADE PROVISÓRIA (…) IV – A proibição de estabelecimento de fiança para os delitos de "porte ilegal de arma de fogo de uso permitido" e de "disparo de arma de fogo", mostra-se desarrazoada, porquanto são crimes de mera conduta, que não se equiparam aos crimes que acarretam lesão ou ameaça de lesão à vida ou à propriedade. V – Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente. (…) IX – Ação julgada procedente, em parte, para declarar a inconstitucionalidade dos parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 e do artigo 21 da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003. (ADI 3112, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 02/05/2007, DJe-131 DIVULG 25-10-2007 PUBLIC 26-10-2007 DJ 26-10-2007 PP-00028 EMENT VOL-02295-03 PP-00386 RTJ VOL-00206-02 PP-00538).

[15] CUNHA, Rogério de Vidal. Prisão do desertor: da ilegitimidade da prisão preventiva obrigatória do militar desertor. Âmbito Jurídico, Rio Grande, 24, 31/12/2005, Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2434. Acesso em 09/08/2010.

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