Capital Jurídica

Tribunal Penal Internacional substitui Justiça falha

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20 de agosto de 2010, 12h00

Ele é o caçula no campo da Justiça Internacional, mas já está dando muito o que falar. Na sua lista de feitos, ainda não tem nenhum julgamento concluído. Mas há passos ousados, como o de mandar prender o presidente de um Estado. A primeira decisão deve sair em setembro. Nesta quinta reportagem da série Capital Jurídica, a Consultor Jurídico apresenta o Tribunal Penal Internacional, que fica em Haia, na Holanda.

A única corte criminal permanente em caráter mundial tem menos de oito anos de vida e ainda está começando a dar os seus primeiros passos, mas já bastante firmes. O tribunal enfrentou desafetos poderosos, como os Estados Unidos, que foram contra a sua criação. E não esmoreceu. Pelo contrário, a oposição dos Estados Unidos deu popularidade à corte recém-nascida. Hoje, os norteamericanos, sob a batuta de Barack Obama, começam até a ensaiar uma tímida aproximação.

Mesmo com poucos anos de vida, a corte soma um total de 111 países que se renderam à sua jurisdição, dos 192 países que formam a ONU. Outras 39 nações assinaram o estatuto que criou o tribunal, mas não o ratificaram. É o caso da Rússia. Estados Unidos, China e mais 40 países preferiram nem assinar o pacto. A rejeição à corte vai aos poucos diminuindo, mas é ainda suficiente para frustrar alguns trabalhos no tribunal.

O TPI não tem uma polícia própria. Para aplicar Justiça, ele precisa da colaboração dos países. A corte também não faz parte da ONU, embora o intercâmbio de informações e de esforços com o Conselho de Segurança da organização seja constante. A soma dos dois fatores leva a situações como a do Sudão, que dá às costas para as ordens da corte. O tribunal já mandou prender o presidente sudanês, Omar Hassan Al Bashir, acusado de crimes de guerra, mas os dois mandados de prisão continuam ignorados.

Nessas situações de flagrante desrespeito, tudo o que o TPI pode fazer é comunicar ao Conselho de Segurança da ONU. Mais nada. Quem decide e aplica punições pela ausência de colaboração com a Justiça criminal internacional é o conselho. O caso do Sudão já foi levado ao órgão pelo TPI, mas ainda está sem resposta. É o caso de outros sete mandados de prisão que não foram cumpridos – o que significa pelo menos sete processos paralisados, já que o tribunal não julga ninguém à revelia. Só quatro prisões ordenadas pela corte foram cumpridas até hoje.

A resistência que o tribunal encontra é facilmente explicada. Baseados no princípio da soberania, Estados alegam que são eles os responsáveis por julgar os seus cidadãos e os crimes cometidos dentro do seu território. Para o TPI e para quem sustenta a sua existência, não é bem assim. Muitos países, de tão devastados, não têm uma democracia e um Judiciário forte o bastante para garantir a aplicação da Justiça. É nesses casos que o tribunal entra em cena.

A corte internacional, portanto, é uma Justiça complementar, que só arbitra conflitos que a nação não pode resolver sozinha e que sejam considerados crimes contra a humanidade, como o genocídio. Isso explica por que hoje tem nas suas prateleiras processos contra cidadãos de quatro países, todos africanos: Congo, África Central, Sudão e Uganda. Num mundo ideal, onde cada país tivesse uma Justiça eficiente, o TPI provavelmente não existiria.

Nasce uma estrela

A ideia de manter uma corte para julgar crimes em âmbito internacional começou a ser mais bem trabalhada após a Segunda Guerra Mundial, com a criação dos tribunais de Nuremberg e Tóquio, para julgar nazistas e japoneses por crimes de guerra. Todos foram temporários e voltados para uma situação específica. Ainda no final da década de 1940, foi rabiscada uma proposta para criar um tribunal internacional permanente, mas o projeto acabou arquivado.

A necessidade de manter uma corte permanente voltou à baila com a criação de mais dois tribunais temporários: um para julgar acusados nos conflitos da extinta Iugoslávia e outro para punir responsáveis por massacres em Ruanda. Em 1998, foi adotado o chamado Estatuto de Roma, que criou o TPI. Com as 60 ratificações necessárias, quatro anos depois, nasceu o Tribunal Penal Internacional, com sede em Haia, na Holanda.

O Brasil, que assinou o Estatuto de Roma em fevereiro de 2000 e ratificou pouco mais de dois anos depois, ocupa uma cadeira na corte. A brasileira Sylvia Steiner chegou a Haia em março de 2003 e cumpre mandato de nove anos. A corte tem 18 julgadores, eleitos pela Assembleia dos Estados-parte, aqueles países que são membro do TPI (Veja quadro abaixo com a composição atual da corte).

Composição atual do Tribunal Penal Internacional
Sang-Hyun Song (presidente) Coreia do Sul
Fatoumata Dembele Diarra (primeira vice-presidente) Mali
Hans-Peter Kaul (segundo vice-presidente) Alemanha
Elizabeth Odio Benito Costa Rica
Akua Kuenyehia Gana
Erkki Kourula Finlândia
Anita Ušacka Letônia
Sir Adrian Fulford Reino Unido
Sylvia Steiner Brasil
Ekaterina Trendafilova Bulgária
Daniel David Ntanda Nsereko Uganda
Bruno Cotte França
Joyce Aluoch Quênia
Sanji Mmasenono Monageng Botsuana
Christine Van Den Wyngaert Bélgica
Cuno Tarfusser Itália
Silvia Alejandra Fernández de Gurmendi Argentina
Kuniko Ozaki Japão
René Blattmann Bolívia

O corpo de julgadores é dividido em duas turmas que fazem a análise prévia do caso e decidem se o acusado deve ir a julgamento ou não, o equivalente à sentença de pronúncia no Brasil; uma câmara responsável pelo julgamento em si e outra que cuida apenas das apelações.

Jogo dos sete erros

O Tribunal Penal Internacional, para quem olha rapidamente, funciona como a Justiça Criminal no Brasil, só que com todas as instâncias concentradas numa casa só. As diferenças, no entanto, são estruturais. No Brasil, discute-se se o Ministério Público pode comandar investigações criminais. No TPI, a promotoria, que fica dentro da corte, embora trabalhe independentemente, é a única responsável pelas investigações. É o promotor-chefe – cargo hoje ocupado pelo espanhol Luis Moreno-Ocampo – e sua equipe de peritos que saem a campo para colher as provas.

Na hora de formular a denúncia, ele escolhe aquilo que vai usar e monta a sua peça processual. Só as provas usadas são abertas para conhecimento do acusado. O resto, na teoria, não faz parte do processo. Na prática, não é bem assim. Recentemente, o TPI paralisou um processo porque considerou que provas não abertas para a defesa estavam sendo usadas.

A corte mantém uma lista de advogados credenciados para atuar lá (clique aqui para ver). A ideia é garantir que os acusados tenham defensores com o mínimo necessário para fazer uma boa defesa. Para fazer parte da lista, o interessado se candidata, apresenta seu currículo para o tribunal, que avalia se ele tem conhecimento técnico suficiente para garantir uma boa defesa na corte. Essa lista é colocada à disposição do acusado para que ele escolha um profissional. Ele pode levar outro advogado, se preferir, e o tribunal analisa o seu conhecimento técnico. Para quem não pode pagar pela própria defesa, a corte também oferece assistência judiciária gratuita.

Do Brasil, o único nome que aparece é do advogado Fernando Fragoso, atual presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). A falta de interesse dos advogados brasileiros faz sentido. Não há nenhum cidadão brasileiro sendo julgado na corte e a chance de isso acontecer é mínima. No TPI, só há acusados de países africanos que, naturalmente, preferem escolher um advogado de sua nacionalidade ou, pelo menos, um que fale a sua língua.

Torre de Babel

Idioma é um dos desafios pelos quais o tribunal tem de passar diariamente. Os julgamentos acontecem, necessariamente, em duas línguas: inglês e francês. Se o acusado não fala nenhuma delas, é adicionada à lista o seu idioma. Para reduzir a miscelânea, o tribunal conta com a tecnologia. Todos os presentes na sala de julgamento ficam com fones de ouvido. Os juízes precisam falar em inglês ou francês. O acusado, na sua própria língua. Um corpo de tradutores incrivelmente preparado se encarrega de fazer tudo ser entendido por todos, sem deixar o julgamento perder o seu ritmo.

Às vezes, no entanto, tropeços são inevitáveis. O tribunal já se deparou com acusados que falavam dialetos orais. Ou seja, nada de processo escrito para eles. Também, por conta dos dialetos, teve de ir atrás de um tradutor. Encontrou, mas só do árabe para o tal dialeto africano. Nessa situações, é inevitável reduzir a marcha. Juízes da corte contam que, quando o que falam precisa ser traduzido primeiro para o árabe e depois para a língua do acusado e vice-versa na hora do depoimento, as já longas audiências se tornam intermináveis. Isso explica os dias e até semanas que um depoimento costuma tomar na corte. Também explica por que os juízes trabalham tanto, com audiência diárias, mas o tribunal ainda não expediu nenhum decisão. A primeira deve sair agora em setembro, sobre um acusado de crimes de guerra do Congo.

Os julgamentos são públicos, mas o espectador é poupado da Torre de Babel. Por motivos de segurança, a sala de julgamento é isolada com vidro blindado.

Divulgação TPI
Tribunal Penal Internacional - Divulgação TPIQuem quer assistir precisa se contentar em ficar do outro lado do vidro, com um fone de ouvido para escolher o seu idioma – sempre o francês, o inglês e o do acusado.

A segurança, aliás, é uma das preocupações mais marcantes no prédio onde funciona o TPI, que fica mais afastado do centro de Haia (veja foto ao lado). Juízes contam que, por motivos de segurança, os estacionamentos dentro do prédio foram tirados e agora eles param o carro um pouco mais afastado. O caminho a pé é curto, mas uma tortura nos invernos rigorosos da Holanda.

Quem visita o tribunal passa por pelo menos cinco portas com detectores de metal, precisa apresentar a sua identidade, que fica retida na portaria. Ainda assim, só tem acesso ao prédio se algum funcionário do prédio autorizar, se responsabilizar e ainda for à portaria buscar o visitante. Quem cuida da segurança é o governo holandês. Juízes da corte dizem que há um excesso, já que nunca houve nenhuma ameaça real.

Passada todas as etapas da segurança, dentro do tribunal, não há distinções entre juízes, assistentes ou faxineiros. Elevador privativo? Longe do TPI. Refeitório próprio? Também não lá. Na corte criminal internacional, todo mundo come no mesmo lugar e cuida de levar a sua bandeja. São os princípios de igualdades marcantes na cultura holandesa.


[Crédito da foto: Divulgação TPI]

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