Capital Jurídica

Corte Internacional de Justiça delimita soberania

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19 de agosto de 2010, 9h50

A holandesa Haia, considerada a capital jurídica do mundo, tem toda uma história para receber esse título. Mas é fato, no entanto, que hoje a principal responsável por fazer dela a número um em Direito Internacional é a Corte Internacional de Justiça. Nesta quarta reportagem da série Capital Jurídica, a revista Consultor Jurídico apresenta o mais importante tribunal do mundo.

Quando se fala em a corte ou o tribunal de Haia, é da Corte Internacional de Justiça (CIJ) que se trata. A instituição recebe esse título não por pouco. Nos últimos 60 anos, protagonizou questões importantes que ajudaram a definir o mundo moderno e o conceito de nação. Foi na CIJ que o governo de Honduras foi cobrar do Brasil por ter dado abrigo na embaixada brasileira ao presidente deposto Manuel Zelaya. Honduras acabou desistindo do processo. No final de junho, a corte, exercendo a sua segunda função, que é a de prestar consultoria, opinou sobre a independência de Kosovo.

Hoje, estão em tramitação 16 casos. Entre eles, o que vai definir se um Estado pode ser réu no Judiciário de outro. A discussão foi levada pela Alemanha, condenada pelo Judiciário da Itália a pagar indenização para vítimas do nazismo.

Aline Pinheiro
Palácio da Paz, em Haia, na Holanda - Aline PinheiroO governo italiano, que não apoiou as decisões do Judiciário, aguarda um opinião definitiva do tribunal, que vai melhor delinear a fronteira entre soberania de uma nação e acesso à Justiça.

A Corte Internacional de Justiça é hoje o principal órgão judicial da Organização das Nações Unidas (ONU) — único dos braços principais que não está em Nova York, sede da ONU. A imponência do prédio onde ela está instalada — o Palácio da Paz, em Haia, na Holanda (foto ao lado) — dá ideia do poder e da importância que essa corte tem hoje para o mundo. Ter uma organização forte como a ONU por trás, sustentando as suas decisões, garante ao tribunal o peso necessário que falta a outros tribunais internacionais independentes.

A existência e permanência da CIJ, da maneira como ela é conhecida hoje, só foi possível pelo empenho, senão de todas, mas das principais nações, unidas pela vontade de selar a paz, num contexto de um mundo devastado pela Segunda Guerra Mundial. A corte foi estabelecida pouco depois do fim da guerra, em junho de 1945, junto com o nascimento da Organização das Nações Unidas. Começou a trabalhar meses depois, em abril do ano seguinte.

Em maio, o Reino Unido levou o primeiro caso ao tribunal, um processo contra a Albânia por conta de explosões no Canal de Corfu, que provocou a morte de marinheiros britânicos. A Albânia foi considerada responsável pelas explosões e condenada a indenizar o Reino Unido.

Renascimento na história

A CIJ é resultado de uma segunda tentativa de criar um tribunal para resolver conflitos entre os países. A primeira se desenrolou na década de 1920, na época da predecessora da ONU, a Liga das Nações, também num cenário cinza abandonado pela Primeira Guerra Mundial. Depois de diversas negociações entre os Estados, a então chamada Corte Permanente de Justiça Internacional (CPJI) foi criada no final de 1920. Em setembro de 1921, foram feitas as primeiras eleições para escolher os juízes do tribunal e, no início de 1922, começaram os trabalhos. A CPJI, no entanto, nunca fez parte da Liga das Nações, embora tivesse sido criada por ela. O que significa dizer que os países da Liga não eram necessariamente membros da corte, só se quisessem e ratificassem o estatuto.

A vida da Corte Permanente de Justiça Internacional foi curta. Durou apenas o período compreendido entre a Primeira e a Segunda Guerras. Foram 18 anos, 29 casos julgados e 27 pareceres dados. Com a chegada da Segunda Guerra, a corte ficou esquecida, sem julgamentos e sem novas eleições para juiz. Durante a guerra, os Estados Unidos e a Inglaterra já começaram a mexer os pauzinhos para recriar um tribunal internacional de Justiça.

A Corte Permanente de Justiça Internacional teve ainda um último encontro em outubro de 1945, já depois da guerra, e foi oficialmente extinta em abril de 1946, para dar lugar a Corte Internacional de Justiça. A troca, no entanto, não foi drástica. José Gustavo Guerrero, de El Salvador, então presidente do tribunal extinto, foi eleito o primeiro presidente da CIJ. A corte também manteve grande parte das regras da sua predecessora.

Entre opinar e mandar

A Corte Internacional de Justiça herdou da sua predecessora as funções de julgar e dar consultorias — competência incomum em tribunais de Justiça. Os chamados casos contenciosos são o equivalente internacional dos conflitos nacionais, resolvidos pelos Judiciário locais. As decisões tomadas nestes têm caráter obrigatório e devem ser cumpridas imediatamente pelas nações. Caso contrário, a desobediência é comunicada ao Conselho de Segurança da ONU, para que tome providências.

Só nações podem ser parte nesses casos. Como a jurisdição da corte não é obrigatória, o Estado precisa antes ter ratificado o estatuto da corte ou ter aceitado a sua jurisdição. Essa expressão de vontade tem se mostrado positiva: é bastante raro uma decisão da corte ser descumprida.

A corte também trabalha na parte consultiva, uma espécie de conselheira de braços e agências da ONU. Nesse papel, ajudou a organização a definir os parâmetros para o poder de veto dos países-membros na admissão de outros, logo após a sua criação. Mais recentemente, a corte deu um parecer no conflito entre Israel e Palestina considerando que a barreira construída por Israel para separar as terras do país do território palestino feria o Direito Internacional e não podia ser justificada com base no princípio da legítima defesa. Como o nome já diz, as decisões aqui têm apenas o caráter de aconselhamento, que só pode ser pedido por órgão da ONU e, em alguns casos, por agências especializadas dos países-parte.

Os processos na corte são, em geral, públicos. As audiências podem ser assistidas, mas o julgamento em si, quando os juízes formam a decisão da corte, não acontece sob os olhos e ouvidos de espectadores.

Carnegie Foundation
Great Hall of Justice, plenário da Corte Internacional de Justiça, no Palácio da Paz, em Haia (Holanda) - Carnegie FoundationComo na maioria dos judiciários europeus, o corpo de julgadores discute reservadamente e convoca uma audiência aberta para comunicar a decisão do tribunal, com votos vencidos declarados em separado sempre que um juiz assim prefere.

É no chamado Great Hall of Justice (na foto ao lado) que tudo isso acontece. É a maior sala do tribunal e um show de arte à parte. Uma das paredes laterais é inteiramente coberta por um pintura do francês Albert Bernard, intitulada Peace by Justice (Paz pela Justiça), doada pela França. Atrás da mesa de julgamento, onde ficam os 15 julgadores, quatro enormes vitrais, trabalhados pelo escocês Douglas Strachan, narram tempos de guerra e opressão e os tempos de harmonia e ordem.

Do lado oposto à pintura francesa, estão as cabines onde ficam os tradutores dos julgamentos. Todos os procedimentos acontecem em francês e inglês, obrigatoriamente, e em outra língua se o país parte no processo assim desejar. Na frente dos julgadores, ficam as partes, assistente jurídicos e testemunhas. O público que assiste ao julgamento fica nas galerias, no andar de cima.

Dono da voz

Direito Internacional não tem uma bíblia. Não há um código que se aplique para as brigas entre países. O que a Justiça internacional usa para decidir, então, são os tratados e pactos assinados pelos países, a sua própria jurisprudência e princípios comuns do Direito.

O trabalho de definir a relação entre as nações fica na mão de 15 juízes, que passam por apertadas eleições. O corpo de árbitros da Corte Permanente de Arbitragem, que também fica no Palácio da Paz junto com a CIJ, é o responsável por indicar os candidatos. Cada nação que faz parte do CPA, por meio do seu grupo de árbitros, pode indicar quatro nomes – só dois do próprio país. O Estado que não faz parte do tribunal de arbitragem precisa criar um grupo de quatro representantes para poder fazer as suas indicações. Os candidatos devem ter reputação moral ilibada e as qualificações necessárias exigidas por cada país para chegar até o órgão máximo da Justiça. Os nomes que saem de lá vão para votação no Conselho de Segurança e na Assembleia dos Estados, ambos órgão da ONU.

Para se tornar juiz internacional, o candidato precisa receber maioria absoluta de votos nos dois órgãos, que fazem votações separadas – às vezes, diversas até que algum candidato receba a maioria de votos. O escolhido cumpre um mandato de até nove anos, renovável por igual período, mas não é raro renúncias antes do fim do mandato. Quando isso acontece, novas votações são feitas para escolher um nome para cumprir o mandato do desgarrado.

Para garantir uma rotatividade no tribunal, sem atrapalhar seu trabalho, as eleições são feitas de três em três anos, quando são renovados cinco julgadores. Para manter paridade entre os países no julgamentos, a preocupação é garantir o equilíbrio na nacionalidade dos juízes. Cada um precisa ser de um país diferente e a corte, como um todo, precisa ter representantes das diversas civilizações e dos principais sistemas legais do mundo. Hoje, no tribunal, há juiz dos cinco continentes (veja tabela abaixo). Cada um recebe cerca de US$ 170 mil por ano. O presidente, eleito pelos próprios juízes para um período de três anos, recebe um suplemento anual de US$ 15 mil. É o único obrigado a morar em Haia.

Composição atual da Corte Internacional de Justiça
Hisashi Owada (presidente) Japão
Peter Tomka (vice-presidente) Eslováquia
Abdul G. Koroma Serra Leoa
Awn Shawkat Al-Khasawneh Jordânia
Thomas Buergentha Estados Unidos
Bruno Simma Alemanha
Ronny Abraham França
Kenneth Keith Nova Zelândia
Bernardo Sepúlveda-Amor México
Mohamed Bennouna Marrocos
Leonid Skotnikov Rússia
Antônio A. Cançado Trindade Brasil
Abdulqawi Ahmed Yusuf Somália
Christopher Greenwood Reino Unido
Xue Hanqin China

O Brasil tem conseguido levar juízes para o tribunal. Atualmente, o país se faz presente na corte pelo juiz Cançado Trindade. Por lá, já passam outros quatro juízes brasileiros: José Philadelpho de Barros e Azevedo, Levi Fernandes Carneiro, José Sete-Câmara e Francisco Rezek, que deixou a corte em 2006, depois de cumprir um mandato de nove anos.

Uma das grandes questões regulamentais discutidas dentro do tribunal e por aqueles que lidam direto com a corte é a convocação de juízes ad hoc. Pelo regulamento, funciona assim: sempre que um Estado-parte num processo não tem dentre o corpo de julgadores nenhum juiz de sua nacionalidade, ele pode convocar um julgador ad hoc, que pode inclusive ser de outro país que não o seu. Esse juiz convocado participa do julgamento relativo àquele caso com o mesmo poder de voto que os juízes que exercem mandato no tribunal.

Em duas ocasiões, o Brasil convocou juiz ad hoc. No imbróglio sobre navegação que se envolveu com a Costa Rica, foi convocado o hoje juiz com mandato na corte Cançado Trindade. Na disputa territorial com Libyan Arab Jamahiriya, foi convocado José Sette-Camara, que mais tarde também se tornou juiz oficial do tribunal.


[Crédito das fotos: Aline Pinheiro e Carnegie Foundation]

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