História sem fim

Juízes e advogados defendem decisões definitivas

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18 de agosto de 2010, 14h03

A revisão de decisões judiciais transitadas em julgado após o prazo legal aumenta a preocupação de juízes e advogados quanto à segurança jurídica no país. No caso da Cofins cobrada de profissionais liberais, por exemplo, recentes julgados desconstituíram sentenças transitadas depois que o Supremo Tribunal Federal optou pela posição do fisco. Essas desautorizações, no entanto, não foram feitas em ações rescisórias, mas em questionamentos de levantamentos de depósitos judiciais ou pedidos de compensação. Se, embalada pelas canções de Geraldo Vandré, a Procuradoria da Fazenda Nacional adotar a tese de “quem sabe faz a hora” para recolocar em julgamento decisões definitivas, esse comportamento, caso seja aceito como normal, pode pôr em risco até mesmo o princípio da tripartição dos poderes.

É a opinião dos palestrantes do XIV Congresso Internacional de Direito Tributário, organizado em Belo Horizonte pela Associação Brasileira de Direito Tributário, que começou nesta terça-feira (17/8) e vai até sexta (20/8). “O artigo 174 do Código de Processo Civil não autoriza que a coisa julgada seja revista inclusive quanto a argumentos não submetidos à Justiça na época do julgamento”, lembra o advogado Igor Mauler Santiago, professor de Direito Tributário nas Faculdades Milton Campos.

Para a desembargadora federal Regina Costa, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, até mesmo ações rescisórias não podem desconstituir julgados simplesmente pelo fato de as cortes superiores decidirem o contrário depois. “Eu respeito a coisa julgada, que, da mesma forma como a isonomia, também é expressão de segurança jurídica. Mas começa a existir um movimento que, mais do que relativizar, está desrespeitando a coisa julgada”, afirma.

Foi o que também entendeu o ministro Celso de Mello, do STF, em decisão monocrática publicada em junho. No Recurso Extraordinário 594.350, o ministro afirmou que “a decisão do Supremo Tribunal Federal que haja declarado inconstitucional determinado diploma legislativo em que se apoie o ato sentencial transitado em julgado, ainda que impregnada de eficácia ex tunc (…), detém-se ante a autoridade da coisa julgada, que traduz, nesse contexto, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, in abstracto, da Suprema Corte”.

No entanto, puxada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a iniciativa contrária tem conseguido vitórias no Judiciário. Como noticiou a ConJur no mês passado, os tribunais passaram a impedir o cumprimento de sentenças transitadas devido à decisão do Supremo validando a cobrança da Cofins sobre profissões regulamentadas. Em junho, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região negou a uma clínica paranaense o direito de levantar depósitos judiciais feitos enquanto sua ação contra a Cofins tramitava na Justiça. Ela ganhou o processo em 2002 e, com o trânsito em julgado, pediu para sacar os valores. Não conseguiu, já que a corte atendeu a um pedido da Procuradoria da Fazenda Nacional local alegando descumprimento de decisão do Supremo (clique aqui para ler a notícia).

A tese se baseou no artigo 475-L do Código de Processo Civil, em seu parágrafo primeiro. Desde 2001, a norma considera inexigível qualquer título judicial baseado em interpretação de lei incompatível com a Constituição Federal. Ou seja, se o Supremo Tribunal Federal muda seu entendimento em relação a determinado tributo, o contribuinte não tem mais direito de exigir restituição em dinheiro do que pagou. Mas isso era pacífico apenas em relação à emissão de precatórios. O que a corte sulista inovou foi a desconstituição de julgados transitados já em fase de execução, sem a existência de precatórios.

Em agosto, outra bomba, dessa vez para os escritórios de advocacia. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio de Janeiro, julgou um Agravo de Instrumento a favor da PFN no estado, concedendo liminar que suspendeu proibição feita à Receita Federal de cobrar a Cofins do escritório Dumans e Advogados, que já havia ganho em definitivo o caso na Justiça. A decisão é o embrião da tese que promete acabar de vez com as isenções de Cofins conquistadas na Justiça. Diferentemente das últimas tentativas do fisco de relativizar a coisa julgada diante da nova postura do Supremo, a PFN fluminense contestou a amplitude da decisão judicial de 2002 que isentou o escritório de pagar a Cofins. Segundo o órgão, a Justiça não poderia conceder isenção ad aeternum, mas, no máximo, negar a revogação do benefício feita pela Lei 9.430/1996. A decisão do TRF-2 se deu justamente em um pedido de restituição dos valores pagos feito pelo Dumans à Receita Federal (clique aqui para ler a notícia).

Um dos argumentos mais fortes do fisco é que contribuintes que conseguiram decisões transitadas em julgado para nunca mais pagarem um tributo ganhariam vantagem concorrencial sobre os limitados por decisão mais recente do STF, pró-fisco. Para Igor Mauler, não é necessário desconstituir decisões para corrigir a distorção. “Isso se resolveria facilmente por uma súmula vinculante, que obrigaria o fisco federal a atender ao novo posicionamento, ou por uma revogação feita por lei, que não serviria para a maioria, mas alcançaria esses contribuintes”, explica.

Competência interpretativa
Não são só as desconsiderações de decisões definitivas pelo próprio Judiciário que ameçam quem conseguiu ganhar uma ação contra o fisco. A edição de leis interpretativas também. Isso porque essas normas têm o poder de retroagir seus efeitos à data da edição da lei a que se referem. É o caso, por exemplo, do prazo para repetição de indébito tributário, fixado pelo Superior Tribunal de Justiça a favor dos contribuintes. A famosa tese dos “cinco mais cinco” prevê que quem pagou a mais pode pedir o valor de volta pelo prazo que soma os cinco anos em que o fisco deve lançar o tributo sujeito a homologação, e mais outros cinco referentes à decadência do direito de pedir a restituição.

A discussão está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal. A corte decidirá a constitucionalidade do artigo 4º da Lei Complementar 118, que faz retroagir a mudança feita por seu artigo 3º. O dispositivo afirma que o crédito tributário se extingue no momento do pagamento do tributo pelo contribuinte, e não cinco anos após a homologação da declaração entregue ao fisco. Na prática, isso tira da conta os primeiros cinco anos que quem pagou a mais poderia acrescentar ao período para reclamar o excedente.

Se vingar a tese de que uma lei chamada de “interpretativa” pode voltar atrás no tempo sem qualquer limite, o que se avista é um descrédito completo do Poder Judiciário, de acordo com os palestrantes. “É ao Judiciário que cabe interpretar e aplicar as leis, e com caráter definitivo”, diz Regina Costa. “O STJ cristalizou jurisprudência sobre a tese dos cinco mais cinco, dando interpretação construtiva para o Código Tributário Nacional. Uma lei posterior não poderia dar nova interpretação já consolidada pelo Judiciário.”

Em resposta à Lei Complementar 118, o STJ já disse que ela não é interpretativa, mas inova no ordenamento. Agora, o caso é analisado no Recurso Extraordinário 566.621 no Supremo. A maioria dos ministros entendeu que a retroação é inconstitucional, o que põe o placar em cinco votos a quatro a favor dos contribuintes. Em maio, o ministro Eros Grau pediu vista do processo, mas se aposentou antes de apresentar seu voto. Para a tributarista Misabel Derzi, se o Supremo disser que uma lei interpretativa pode invalidar uma jurisprudência do STJ, a corte estará “cassando a própria liberdade de interpretação do Judiciário”, o que, segundo a professora de Direito Tributário na Universidade Federal de Minas Gerais e das Faculdades Milton Campos, causaria desequilíbrio entre os três Poderes.

“Bastaria ao Legislativo elaborar leis ‘interpretativas’ sempre que o Executivo fosse derrotado na Justiça”, avança a desembargadora Regina Costa. “O presidente da República, por exemplo, poderia, por decreto, regulamentar todo o CTN. O Judiciário não pode renunciar à sua missão de interpretar as leis.”

Revisão da História
Os poderes de desconstituição de coisa julgada até mesmo das ações rescisórias ainda está em discussão no Supremo. O Recurso Extraordinário 594.477 ainda espera que ministra Ellen Gracie reveja seu voto em relação aos efeitos retroativos de decisões desconstituídas. O processo discute se uma sentença que isentou do pagamento de um imposto determinado contribuinte, caso seja desconstituída, perde a capacidade de cobrir o período anterior ao da decisão que a invalidou. Depois do voto do ministro aposentado Eros Grau, que disse que os efeitos da rescisória só funcionam para a frente, a ministra Ellen reconsiderou seu voto e pediu para repensá-lo.

“Posso até conceber que a retroação volte à data do ajuizamento da rescisória, quando a vitória do contribuinte já não era mais tão certa, mas nunca a antes disso”, diz o professor Igor Mauler Santiago. “Não tem lógica uma empresa manter provisão de pagamento de imposto no qual tem decisão transitada em julgado.” 

O Superior Tribunal de Justiça, no entanto, patina quanto à relativização. Em 2005, a 1ª Turma decidia, no Recurso Especial 671.182, de relatoria do ministro Luiz Fux, que “a relativização da coisa julgada é postulado que se choca com cláusula pétrea de segurança jurídica”. Sete meses depois, no entanto, a mesma turma diria, no Recurso Especial 721.808, relatado pelo ministro Teori Zavascki, que inconstitucionalidades de leis declaradas por ações de controle concentrado ou difuso eram exceção a essa regra.

O repórter viajou a convite da organização do congresso, que acontece entre os dias 17 e 20 de agosto. Entre os participantes estarão ainda os ministros Castro Meira, Eliana Calmon e João Otávio Noronha, do STJ, e o ministro Gilmar Mendes, do STF, homenageado do encontro. Também confirmou presença o advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams.

[Texto alterado às11h53 de 10/8/2010, para correção de informação]

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