Conflito na legislação

Estado federado não pode ser estado federal

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14 de agosto de 2010, 7h18

No dia 8 de junho de 2010 uma comissão de juristas nomeada pelo Senado, presidida pelo ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal de Justiça, entregou ao Congresso, em tempo recorde, o anteprojeto de lei do novo Código de Processo Civil, destinado a substituir o emendado e remendado CPC vigente (Lei 5.869/73).

Diversamente do que se pode imaginar, o impacto que a aprovação do novo diploma terá na vida de todos nós brasileiros é imenso, vez que ele disciplinará, direta ou indiretamente, praticamente todo o trâmite dos processos não penais que terão curso no Judiciário nacional, com reflexos evidentes na vida e no patrimônio de todo aquele que for parte em uma demanda judicial.

Por isto é chegado o momento de toda a sociedade civil e do Congresso debaterem as proposições apresentadas pela Comissão, e verificar se elas espelham (ou não) a vontade soberana da Constituição Federal, que sem embargo de impor ao Poder Judiciário o dever de distribuir Justiça em tempo razoável (artigo 5º, LXXVIII, CF) — mote principal da reforma proposta — determina que o legislador federal respeite a autonomia dos Estados membros para adequar os procedimentos processuais às suas particularidades locais.

De fato, a Constituição Federal de 1988 inovou na história do constitucionalismo brasileiro ao estabelecer que, sem prejuízo da competência privativa da União para legislar sobre processo (artigo 22, I, da CF), possam os Estados e o DF legislar concorrentemente em matéria de procedimentos processuais (artigo 24, XI, da CF). Ao legislador federal compete, exclusivamente, a disciplina geral dos procedimentos, sendo que os pormenores, as particularidades, as nuances devem, todas, ser desenvolvidas pelos legislativos estaduais e distrital, conforme os interesses e realidade do povo local.

A opção do constituinte de permitir que os entes parciais legislem, entre outros temas de competência concorrente (artigo 24 da CF), sobre procedimento em matéria processual, deve-se a fato de que, com as dimensões continentais de nosso país e as diferenças regionais gritantes, o regramento genérico emanado pela União há de ser compatibilizado às realidades locais, tudo em prol da sua ideal aplicação, com melhorias nos serviços judiciários.

Dados oficiais do Conselho Nacional de Justiça (Justiça em Números — 2008) revelam a absoluta disparidade entre as realidades judiciárias nos Estados. Enquanto cada juiz de primeiro grau de SP e RS recebeu em média, respectivamente, 2.540 e 2.515 processos/ano (2008), juízes de estados como RJ e MG receberam praticamente metade — 1.094 e 1.344 processos — não comparáveis, ainda, com os 621 e 628 processos recebidos pelos juízes estaduais de AL e MA. Quadro não distinto se verifica nos Tribunais de Apelação (segunda instância), em que cada desembargador gaúcho recebeu 3.019 processos em média contra 1.523 dos paulistas, e 771, 312 e 487 processos dos desembargadores do RJ, AL e MA (2008).

Embora estes dados mereçam uma série de temperamentos e não signifiquem que a Justiça de um estado é mais ou menos eficiente que a outra, eles já são suficientes para revelar que as condições econômicas, culturais e, porque não, territoriais, de cada um dos estados federados, têm reflexos na natureza, na complexidade das causas e no número de processos que aportam no Judiciário.

Não faz sentido, por isto, que uma lei federal como o novo CPC — que trata não só de questões relacionadas ao processo (poderes, deveres, ônus, sujeições das partes, advogados e juízes), mas também de regras procedimentais (forma, modo e prazos) — esgote a disciplina do tema, não deixando espaço para que os legislativos locais cumpram o papel que lhes foi confiado pelo constituinte, disciplinando, conforme as particularidades e necessidades do povo local, mecanismos procedimentais que possam melhorar a qualidade da tutela jurisdicional. Ilógico que o Judiciário de estados de menor porte tenha que seguir as mesmas regras procedimentais impostas genericamente pelo legislador federal a todo o país, muitas vezes elaboradas à luz da realidade alarmante de um ou outro estado (como São Paulo), cujas deficiências na prestação do serviço jurisdicional têm razões históricas, sociais e econômicas.

Por isto é o legislador estadual e distrital que devem definir, na existência de particularidades locais, e à luz da CF e das regras genéricas e mínimas estabelecidas pelo legislador federal, qual o rito dos processos no seu estado, quais os atos processuais que podem ser dispensados, qual o trâmite recursal a ser seguido no âmbito dos tribunais, e não o legislador federal como se projeta detalhadamente no novo CPC. Afinal, o simples abraçar, pelo estado brasileiro, do regime federalista, já implica reconhecimento de inúmeras diferenças regionais, hábeis, portanto, a ensejar tratamento não igualitário aos jurisdicionados postados em locais diferentes dentro da imensidão do território brasileiro.

Recentemente um juiz federal dos EUA (Boston) reconheceu a inconstitucionalidade da lei federal americana que proíbe casamento gay, exatamente por entender que ela viola o pacto federativo e interfere no direito de os estados legislarem sobre o tema (Folha, Mundo, 9 de julho de 2010). Sem desconhecer as diferenças entre o nosso federalismo com o deles, que este precedente sirva de alerta para que sociedade, Congresso e STF não permitam que o nosso estado federado se transforme em um estado federal.

 

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