Lei de Anistia

Para Lewandowski e Britto, torturador não tem perdão

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30 de abril de 2010, 9h54

Os ministros Ricardo Lewandowski e Carlos Britto foram os únicos a votar pela revisão da Lei de Anistia, nesta quinta-feira (29/4). Em seu voto, Lewandowski afirmou que a lei, deliberadamente, não trouxe a previsão de anistia aos agentes do Estado que praticaram crimes comuns contra os opositores do regime de exceção. Ele lembrou que a lei foi editada em meio a um clima de crescente insatisfação popular contra o regime autoritário após uma séria crise de legitimidade do regime. Nesse contexto, o governo do general Ernesto Geisel iniciou o processo que denominou de abertura lenta, gradual e segura.

Lewandowski entende que há “inegável equivocidade” na redação dada ao parágrafo 1º do artigo 1º da Lei 6.683/79 ao fazer referência à conexão entre crimes comuns e políticos para o efeito de estender a anistia aos agentes estatais. O ministro citou algumas hipóteses de conexão de crimes aceitas pelo sistema penal e processual brasileiro e concluiu que o caso aplicado aos anistiados não está entre elas.

“A simples menção à conexão no texto legal contestado não tem o condão de estabelecer um vínculo de caráter material entre os crimes políticos cometidos pelos opositores do regime e os delitos comuns atribuídos aos agentes do Estado para o fim de lhes conferir o mesmo tratamento jurídico”, disse.

Para Lewandowski, ainda que o Brasil estivesse enfrentando uma guerra, “mesmo assim os agentes estatais estariam obrigados a respeitar os compromissos internacionais concernentes ao direito humanitário, assumidos pelo Brasil desde o início do século passado, pelo menos”.

O ministro ainda citou julgamento do pedido de extradição do italiano Cesare Battisti, em que o Supremo tratou como crime comum um delito que tinha motivação política. Segundo ele, a jurisprudência do Supremo tem, de forma reiterada, tratado de forma absolutamente diferenciada os crimes violentos praticados contra a pessoa, especialmente no que diz respeito ao direito à vida e à liberdade.“Ainda que a sua finalidade seja política ou políticos os motivos, tais delitos, especialmente os delitos de sangue, vêm sendo sistematicamente tratados como comuns por exacerbarem os limites éticos das lutas pela liberdade e pela democracia”, disse.

Ele destacou posição do ministro Gilmar Mendes no julgamento de Battisti, segundo a qual certas espécies de crimes, independentemente de sua motivação ou de sua finalidade política, não constituem crimes políticos. É que, levada às últimas consequências a tese contrária, logo teríamos caso de estupro, pedofilia, genocídio ou tortura, entre outros, tratados como crimes meramente políticos, obtendo seus autores os benefícios desse enquadramento.

“O mesmo crime que numa ditadura pode vir a ser absolvido sob a forma de anistia, numa democracia é crime mesmo e crime preponderantemente comum, ainda que a motivação interior tenha origem numa hostilidade política”, afirmou Lewandowski ao dizer que, caso contrário, qualquer indivíduo poderia tomar a lei em suas mãos, punir seu inimigo como lhe agradar e revestir seu ato de nobreza política.

Para ele, é irrelevante que a Lei 6.683/1979, no tocante à conexão entre crimes comuns e crimes políticos, tenha sido mais tarde parcialmente reproduzida na Emenda Constitucional 26/1985.

O ministro julgou “procedente em parte a ação para dar interpretação conforme ao parágrafo 1º do artigo 1º da Lei 6.683/1979, de modo que se entenda que os agentes do Estado não estão automaticamente abrangidos pela anistia contemplada no referido dispositivo legal, devendo o juiz ou tribunal, antes de admitir o desencadeamento da persecução penal contra estes, realizar uma abordagem caso a caso mediante a adoção dos critérios da preponderância e da atrocidade dos meios para caracterizar o eventual cometimento de crimes comuns, com a consequente exclusão da prática de delitos políticos ou ilícitos considerados conexos”.

A formulação acabou levantando dúvidas no plenário, com os ministros questionando o sentido de expressões como “automaticamente” e “ilícitos considerados conexos”.

Carlos Britto
O ministro Carlos Britto, que votou logo em seguida de Lewandowski, acompanhou a divergência. Para ele, crimes hediondos e equiparados a estes, como tortura e estupro, não foram anistiados pela lei de 1979. “Quem redigiu essa lei não teve coragem, digamos assim, de assumir essa propalada intenção de anistiar torturadores, estupradores, assassinos frios de prisioneiros já rendidos, pessoas que jogavam de um avião em pleno voo as suas vítimas”, disse.

O ministro, citando versos escritos por ele mesmo há mais de 20 anos, afirmou que "a humanidade não é o homem para se dar as virtudes do perdão. Em certas circunstâncias, o perdão coletivo pode significar falta de memória e falta de vergonha. Convite masoquistico à reincidência".

Para deixar claro que a Lei da Anistia não foi produzida com o sentido manifesto de beneficiar agentes do Estado que cometeram crimes hediondos, em diversas passagens o ministro ressaltou que o perdão coletivo a certos infratores deve ser feito “de modo claro, assumido, autêntico, não incidindo jamais em tergiversação redacional, em prestidigitação normativa, para não dizer em hipocrisia normativa”.

“Com todas as vênias, não consigo enxergar no texto da Lei da Anistia essa clareza que outros enxergam, com tanta facilidade, no sentido de que ela, Lei da Anistia, sem dúvida incluiu no seu âmbito de incidência todas as pessoas que cometeram crimes, não só os singelamente comuns, mas os caracteristicamente hediondos, ou assemelhados”, completou.

Na linha do que disse o ministro Lewandowski, Carlos Britto afirmou que certos crimes são, pela sua natureza, absolutamente incompatíveis com qualquer ideia de criminalidade política pura ou por conexão. E acrescentou que quando, em março de 1964, as Forças Armadas instituíram o regime de exceção, o fizeram a partir de uma base legal, mesmo que autoritária.

“Essas pessoas de quem estamos a tratar — os torturadores — desobedeceram não só a legalidade democrática de 1946 como a própria legalidade excepcional do regime militar. [São] pessoas que transitaram à margem de qualquer ideia de lei, desonrando as próprias Forças Armadas, que não compactuavam nas suas leis com atos de selvageria”, afirmou.

O ministro fez críticas incisivas aos agentes do Estado que praticaram tortura no regime militar. Disse ele: “um torturador não comete crime político, crime de opinião. O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado. O torturador é aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso dos sofrimentos alheios perpetrados por eles. É uma espécie de cascavel de ferocidade tal que morde o som dos próprios chocalhos. Não se pode ter condescendência com torturador”.

Carlos Britto também contestou argumentos no sentido de que a Lei da Anistia foi integrada à ordem constitucional por estar reafirmada na Emenda Constitucional 26/1985, que convocou a Assembleia Constituinte de 1988. Para o ministro, a Assembleia Constituinte é um poder fundador, não regulado por direito anterior e, por isso, o instrumento de convocação da assembleia é apenas um meio que proporciona a atividade do poder constituinte que, por sua natureza, é um poder independente. 

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