Validade e limite

Ministério Público não pode usar prova emprestada

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24 de abril de 2010, 8h00

Resumo: A prova emprestada pode ser utilizada, mas deve ser circunscrita apenas daquela que serviu de subsídio para uma Ação Penal em curso ou finda. Não pode ser utilizado pelo Ministério Público, como prova emprestada, aquele elemento de informação, notadamente gravações telefônicas autorizadas judicialmente, que foram colhidos e desprezados pela investigação, interpretação da Súmula Vinculante 14 do Supremo Tribunal Federal. Ressalvada a possibilidade de utilização exclusiva para a defesa do cidadão.

Palavras-chave: Prova emprestada; Limites na utilização; Validade e alcance; Súmula Vinculante 14, do Supremo Tribunal Federal.

Em uma Ação Penal hipoteticamente considerada, que serve apenas de premissa-base para se compreender o presente texto, há denúncia pelo Ministério Público lastreada exclusivamente em elementos de convicção obtidos em outra Ação Penal, mais precisamente, nas escutas telefônicas ocorridas durante a investigação policial.

Temos como leitura básica e elementar sobre o tema o mandamento constitucional expresso no artigo 5º, XII, CRFB/88:[I]

É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Antes do advento da Súmula vinculante 14[II] ao advogado militante do Direito Penal era praticamente impossível tomar ciência de todas as provas colhidas contra seu cliente, salvo se obtivesse por liberalidade da autoridade policial as mesmas.

Ainda sobre esse prisma, as informações, muitas das quais sequer integrariam os autos do Inquérito, por não guardarem relação com a condução das investigações, serviam de subsídios para novas investigações, ou ficavam a espera de quem as utilizasse e pelo tempo que fossem uteis.

Leciona José Afonso da Silva[III]: “Entendemos que o sigilo das comunicações telefônicas abrange o sigilo dos dados que essas comunicações deixam registrados…”, porém as provas excedentes ou não utilizadas, sempre tinham destino certo, aguardar a oportuna utilização pelo Ministério Público nas ações penais derivadas ou paralelas às primeiras.

É essencial, contudo, haver a expressa autorização judicial para a interceptação telefônica, ou seja, com uma data para o seu inicio e fim. Entretanto não há previsão legal para o tempo de validade da prova produzida, salvo o lapso prescricional geral.

Uma vez concedida àquela ordem penderá suspeita sobre qualquer pessoa que fizer uso do terminal telefônico interceptado, pouco importando se for o investigado ou não. Sendo isso um fator de severas críticas e acirradas discussões jurídicas no corpo do processo, já que a prova produzida em determinado terminal telefônico implica seu proprietário e/ou usuário final.

Por outro lado, sob o aspecto deste estudo, trata-se da utilização de prova emprestada que, conforme leciona o professor Luiz Flávio Gomes[IV] é admissível em sede exclusiva de processo penal.

“No Informativo 321, o STJ tratou da chamada prova emprestada, firmando entendimento no sentido de que a prova produzida em outra ação somente possui valor probatório se a ambas as partes for dada integral ciência e possibilidade para o exercício do contraditório.” Tal prosicinamento antecipava os efeitos da Súmula Vinculante 14 do STF.

Ora, por tais palavras jurisprudenciais, o que seria mesmo prova emprestada?

Para o STJ, segundo o professor citado: “É aquela produzida em um processo, e depois utilizada em outro, com o objetivo de nesse comprovar um determinado fato. Significa introduzir em um processo ("B") uma prova colhida em outro ("A"). Nessa esteira, trata-se do aproveitamento da atividade probatória, por meio de traslado dos seus elementos.

O entendimento sobre o que seja prova emprestada é fundamental para a correta compreensão do tema, pois, poder-se-ía invocar na defesa do cidadão a famosa “fruits of the poisonous tree teory[V], admitido em nosso sistema, a começar pela dicção da Constituição Federal, conforme artigo 5º, LVI, CRFB/88:[VI]

São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.

Esse preceito constitucional não comporta exceção e é aplicável tanto no processo judicial, quanto no administrativo.

Luiz Flávio Gomes[VII] adverte que: “Vale lembrar que a prova emprestada, ao ser introduzida no segundo processo assume a natureza de prova documental, sem, contudo, perder o seu caráter jurídico originário, de forma a não valer como um simples documento, mas sim, com capacidade de assumir a mesma eficácia probatória que teria no processo em que produzida.”

Ou seja, como prova eficaz a produzir todos os efeitos constitucionais dela esperados.

E prossegue o mesmo tratadista: “O principal fundamento para o empréstimo da prova é, sem dúvida, a economia processual. Seu escopo maior é impedir a repetição desnecessária de atos processuais. Muito se discute acerca da admissibilidade da prova emprestada. Não há que se falar na sua inconstitucionalidade quando atendidos os valores consagrados no ordenamento jurídico pátrio, como o princípio do contraditório, do juiz natural e da inafastabilidade da jurisdição.”

É inglória a discussão sobre a validade dessa prova, pois ao momento de sua colheita não havia o concurso dos cidadãos atingidos neste processo “B”. Concurso necessário, como sustentado, em estrita obediência ao Princípio do Contraditório. E segue nesse sentido a Súmula Vinculante nº 14 do STF quando admite válida a prova efetivamente produzida e registrada.

Nesse sentido é possível argüir que a prova produzida, mas não integrada no inquérito não pode ser utilizada para nenhum fim, inclusive subsidiar outros inquéritos ou investigações, porque deixaram de ser moralmente eficazes.

Pois é nessa vizinhança que o tema impõe uma nova reflexão: o quanto de participação das partes é suficiente para fazer valer tais princípios constitucionais?

Novamente é o ilustrado Luiz Flávio Gomes[VIII] que propõe uma possível solução: “De tal modo, é necessário que as partes do segundo processo tenham participado, em contraditório, do processo em que foi produzida a prova que se visa aproveitar. De forma mais específica, é indispensável que a parte contra a qual a prova será utilizada tenha sido parte do primeiro processo. Ademais, tratando-se de processo penal, no qual é exigido o contraditório efetivo não se mostra suficiente a mera participação no processo anterior. É preciso que o alcance do contraditório e da cognição do primeiro processo tenha sido no mínimo, tão intenso quanto ao que se daria no segundo. Assim, não pode haver empréstimo de prova em sede de ação penal contra aquele que, embora formalmente figure como parte na demanda original, dela não tenha participado em efetivo contraditório.”

Por esse ensinamento lapidar, fica bastante obvio que, em sede de tese defensiva, é justa a argumentação de que a prova emprestada colhida na ausência do réu e em processo do qual não participou, resta prejudicada ou viciada. Além disso, as provas colhidas e não utilizadas não podem servir de base para subsidiar futuras investigações criminais.

Ademais a prova obtida legitimamente, mesmo a não utilizada, serve exclusivamente para a absolvição ou para a defesa de interesses indisponíveis (vida, liberdade, saúde, propriedade e segurança) do cidadão.

Conclui Luiz Flávio Gomes[IX] afirmando que: “A Constituição Federal trata da interceptação das comunicações no seu artigo 5º, XII e apenas a autoriza em hipóteses excepcionais, desde que determinada por ordem judicial e para fins de investigação criminal ou instrução processual penal. Nessa mesma linha, a Lei 9.296/96, ao disciplinar a matéria, restringe o cabimento da interceptação à investigação ou comprovação de crimes punidos com reclusão. Na doutrina, há quem admita o empréstimo da prova também nesses casos…”

Outro tratadista respeitável, Barbosa Moreira[X] faz advertência ao salientar que, “uma vez rompido o sigilo e sacrificado o direito à intimidade, não haveria sentido em vedar a utilização da prova.” Ou seja, numa livre interpretação desse doutrinador, deve haver um sistema de “freios e contrapesos” também em matéria de prova, quer a situemos em sua colheita, quer em sua utilização, no processo penal.

Entendemos ser verdadeira essa observação, quanto mais em se tratando de prova prósocietate! Noutras palavras, na prova permeável à condenação, do contrário estaríamos vulneráveis.

Guilherme de Souza Nucci[XI] quando leciona sobre o uso de prova ilícita, assim orienta: “Dessa forma, se uma prova for obtida por mecanismo ilícito, destinando-se a absolver o acusado, é de ser admitida, tendo em vista que o erro judiciário precisa ser, a todo custo evitado.” Ou seja, reforça a idéia acima delineada que a prova obtida, mas não utilizada não pode subsidiar uma ação penal, salvo para o regular exercício de defesa do cidadão.

Em conclusão, adotando como fundamento essas ponderações e, partindo dos preceitos da verdadeira economia processual, não há fundamento para não admitir a prova emprestada, desde que colhida e integralmente utilizada contra o mesmo réu em processo próprio, já que esse excedente é imprestável segundo nosso olhar, ressalvada a possibilidade de utilizá-las, a defesa, pois apenas assim haverá verdadeiro respeito ao princípio do contraditório e da ampla defesa.


[I] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao_Compilado.htm> Acesso em: 9/8/2009.

[II] BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Súmula Vinculante nº 14, É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa. (S.l.) 2009.

[III] SILVA, José Afonso da. COMENTÁRIO CONTEXTUAL À CONSTITUIÇÃO, 2ª edição, de acordo com a Emenda Constitucional 52 de 8.3.2006 (DOU 9.3.2006), Editora Malheiros p. 104.

[IV] Cf. Luiz Flávio Gomes, artigo citado. Cf. também Patricia Donati de Almeida, “PROVA EMPRESTADA”, na internet <http://www.blogdolfg.com.br/article.php?story=20070611144847177&query=intercepta%25E7%25E3o> Acesso em: 1/2/2009.

[V] Teoria dos Frutos da Árvore Envenenada.

[VI] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília. DF. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao_Compilado.htm> Acesso em: 9/8/2009.

[VII] Op.Cit. 2009.

[VIII] Op. Cit. 2009.

[IX] Op. Cit. 2009.

[X] Apud. Luiz Flávio Gomes e Patricia Donati de Almeida. artigo citado. na internet http://www.blogdolfg.com.br/article.php?story=20070611144847177&query=intercepta%25E7%25E3o> Acesso em: 1/2/2009.

[XI] NUCCI,Guilherme de Souza. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL COMENTADO, 6ª edição revista, atualizada e ampliada. 2ª tiragem São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007, p. 338 e SS.

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