Sem excessos

Gilmar Mendes não se rendeu ao apelo popular

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24 de abril de 2010, 12h27

[Artigo publicado na edição deste sábado (24/4) do jornal Folha de S. Paulo]

Foi positivo o desempenho de Gilmar Mendes na presidência do Supremo Tribunal Federal? Gilmar Mendes sai da presidência do Supremo Tribunal Federal com grande merecimento, mas não assaz louvado e equitativamente reconhecido.
Tivesse se pautado por arbitrariedades punitivas – que tanta popularidade têm carreado a seus fautores – e por desrespeito às garantias dos cidadãos, seria ungido com a complacência que ao rivalizar com o merecimento sempre perde para a inveja.

Mesmo vindo da carreira dos que patrocinam a persecução penal em nome do Estado e que diariamente deduzem pretensões de punir e prender, Gilmar Mendes logo se mostrou despido da vocação repressiva do Ministério Público para encarnar a figura do juiz imparcial, sobranceiro, orientado pelo compromisso com a intangibilidade da ordem constitucional e preocupado em fazer justiça: "Fiat justitia, pereat mundus" (faça-se Justiça, ainda que pereça o mundo).

Em seus oito anos no Supremo Tribunal Federal, os dois últimos na presidência da corte, não se vislumbra uma só decisão que atente contra o Estado democrático de Direito e as garantias fundamentais do cidadão. O injuriador mais talentoso e o difamador mais audaz não conseguiriam, jamais, pespegar-lhe a pecha de desrespeito às leis que bem interpreta e aplica. Ao contrário, nos atos jurisdicionais, como juiz consciente, e nos pronunciamentos públicos, como chefe de Poder, por mais veementes que tenham sido suas oportunas intervenções, foi sempre exarada a convicção de um juiz devoto à lei e mouco ao alarido da turbamulta, que Rui Barbosa chamou de "a execrável justiça das ruas".

Um episódio, em particular, atraiu contra o impecável ministro a cólera industriada: a justa concessão de medida liminar em Habeas Corpus, ordenando a libertação de um banqueiro às 11 horas da noite. As decisões de Gilmar Mendes no processo foram a seguir referendadas pelo plenário do Supremo, com uma exceção que impediu a unanimidade, e sua reputação jurídica defendida, entre outras iniciativas, por um manifesto assinado por mais de 170 advogados e juristas.

A audácia inaceitável do presidente do Supremo fora cortar, com a espada da Justiça, a teia cavilosa de uma pirotecnia policial, tecida em segredo e vazada em sânscrito metafísico como Operação Satiagraha-executada, como já foi dito, por autoridades justiceiras e messiânicas que pareciam querer encarnar a taumaturgia de Antônio Conselheiro em Canudos.

O despacho do presidente do STF deferindo a provisão jurisdicional de urgência para libertar o banqueiro considerou a prisão desnecessária e sem suporte legal, como, de resto, o são a maioria das prisões que se editam sob a luz inebriante de câmeras…A nossa época, para tomar de empréstimo a célebre expressão de Eric Hobsbawm, é uma era dos extremos.Ao mesmo tempo em que, na política, desfrutamos de sólidas liberdades democráticas, o aparelho de Estado se inclina a recidivas autoritárias. Repete-se, também como tragédia, uma era de arbitrariedades, prisões discricionárias, interceptações telefônicas profusas, osmóticas, sem limites, ilegais, e até mesmo inquéritos sigilosos que mais adequadamente poder-se-iam denominar autos de fé.

Se, na ditadura militar, vigoravam decretos secretos, hoje o sistema judiciário é profanado por feitos criminais clandestinos. O indiciado -em seguida réu – lê nos jornais, vazadas por autoridades, as acusações mais infamantes, mas a seus advogados é vedado o acesso aos autos.

Até instituições de libertárias tradições, com quadros diretivos contaminados pelas "vozes da rua", pedem prisão preventiva de investigados que nem sequer sabem do que estão sendo acusados. O ministro Gilmar Mendes presidiu o Supremo com o lustro de verdadeiro chefe de Poder da República, altivo e independente. Serviu ao direito acima de tudo e não se deixou seduzir pela instrumentalização da jurisdição, baseada na patranha de que justiça é a da turba, passional e volúvel. Tampouco pelo discurso fácil de que, nos pretórios, a vontade da lei deve ser "flexibilizada" para realizar a vontade popular. Essa tarefa é dos legisladores, não dos juízes. 

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