A corte do ministro

É possível identificar uma Corte Gilmar Mendes

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

23 de abril de 2010, 10h28

É bastante comum, na literatura americana, a identificação de diferentes fases históricas vividas pela Suprema Corte dos Estados Unidos.

Tais fases são habitualmente referidas pelo nome do chief justice (presidente da Suprema Corte), até porque o justice que preside a Suprema Cortenão cumpre mandato de prazo certo, mas é indicado pelo presidente dos EUA para a função e nela permanece até renunciar, aposentar-se, faltar-lhe o good behaviourou a vida (Artigo III, Seção 1, da Constituição dos Estados Unidos, que também se aplica aos associate justices).

Assim, um chief justice tem a oportunidade de marcar longa e profundamente os trabalhos da Corte Suprema. Exemplo notório é o da “Corte Marshall”, longo período em que a Corte foi presidida pelo célebre John Marshall, de 1801 a 1835, mentor de compreensões jurisprudenciais que repercutem até hoje, nos EUA e em outros países, inclusive o Brasil. Isso a começar por todo um modelo de controle de constitucionalidade (Madison v. Marbury), sem prejuízo de deduções pontuais, porém marcantes, como a doutrina dos poderes implícitos e o princípio da imunidade recíproca (McCulloch v. Maryland).

É possível fazer análise similar relativamente ao Supremo Tribunal Federal brasileiro. Claro, no constitucionalismo brasileiro mais recente, os presidentes do Supremo observam mandatos fixos, de dois anos. Porém, ainda assim, têm tempo suficiente para imprimir – e imprimem – marca pessoal à conduta da corte, ainda que ela seja a marca de uma elegante e equilibrada discrição, como foi o caso da ministra Ellen Gracie.

Há ministros que marcam todo um período, independentemente de ocuparem ou não a Presidência. Exemplo recente foi o Ministro Moreira Alves, que durante quase trinta anos foi determinante para os rumos do Supremo Tribunal Federal.

Nesta linha de raciocínio, é possível identificar e avaliar uma “Corte Gilmar Mendes”.

Pois bem. O professor Gilmar Ferreira Mendes, muito antes de ocupar cadeira no Supremo Tribunal Federal, já exercia salutar influencia sobre os trabalhos da corte. Mencionem-se dois exemplos sugestivos: (1) o primeiro remonta a 18 de maio de 1988, quando o relator da Representação n. 1.405-3/AC, o ministro Moreira Alves, transcreveu Parecer da lavra do então Procurador da República, Gilmar Ferreira Mendes, e o reputou “brilhante”, afirmando, ainda, que a tese do parecer “é exposta com erudição e argúcia”; (2) o segundo data de 7 de julho de 1991, quando o ministro Celso de Mello, ao votar na Medida Cautelar na Ação Direta 525-1/DF, afirmou que Gilmar Ferreira Mendes delineara “de modo autorizado” determinado assunto constitucional então sob julgamento.

Ademais, decorrem de pesquisas e trabalhos acadêmicos de Gilmar Ferreira Mendes inovações da maior importância para a jurisdição constitucional brasileira: (1) a começar pelo efeito vinculante, primeiro na ação declaratória, depois na ação direta; (2) a Lei das ações diretas; (3) a Lei da argüição de descumprimento de preceito fundamental; (4) o exato delineamento de diversas técnicas decisórias em sede de controle de constitucionalidade, inclusive a modulação de efeitos das decisões de inconstitucionalidade no tempo; etc. Isso para referir apenas contribuições em matéria de jurisdição constitucional, porque ele também contribuiu de modo determinante na elaboração: (1) da Lei Pelé; (2) da Lei Complementar 95 (sobre redação e consolidação de leis), etc.

Já como ministro do Supremo Tribunal Federal, contribui de modo essencial para que precedentes da maior importância fossem firmados. Por exemplo: (1) a intervenção federal em que se aplicou – de modo claro e sistemático – o princípio da proporcionalidade (Intervenção Federal 2.915-5/SP); (2) a decisão de inconstitucionalidade com modulação de efeitos no tempo (Recurso Extraordinário 197.917-8/SP); (3) a declaração de inconstitucionalidade de medida provisória em matéria de crédito extraordinário (Ação Direta 4.048-1/DF), em termos que já defendia em obra doutrinária anterior (MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 158-159); etc.

Muitos outros precedentes poderiam e deveriam ser citados. Porém, importa destacar a contribuição do Ministro Gilmar Mendes no assunto mais grave que é confiado ao juiz constitucional: a proteção e a promoção dos direitos humanos. Também nesta seara o ministro Gilmar Mendes prestou contribuição inestimável: (1) não titubeou na concessão de Habeas Corpus, tendo, inclusive, defendido o reconhecimento de eficácia erga omnes a esse que é o mais importante remédio constitucional (vide Reclamação 4.335-5/AC); (2) afirmou a eficácia supralegal para os direitos humanos constantes de tratados internacionais (Recurso Extraordinário 349.703-1/RS); (3) firmou importante marco decisório relativo ao direito social à saúde, mormente no que se refere à concessão judicial de medicamentos e determinação judicial de tratamentos médicos (STA 175/CE).

Como presidente do Conselho Nacional de Justiça, poderiam e deveriam ser mencionadas diversas iniciativas do ministro Gilmar Mendes. Não obstante, basta lembrar: (1) o programa Começar de Novo, para favorecer a reinserção social do egresso do sistema carcerário; (2) os mutirões carcerários, que permitiram identificar com precisão problemas do encarceramento na realidade brasileira (resultando a libertação de centenas de presos que estavam com penas vencidas, já cumpridas).

O bom gestor é criativo e inovador. Criar e inovar são ações vocacionadas à polêmica, no mínimo porque modificam uma situação posta e trazem a incerteza do novo, do diferente. Quem ousa criar e inovar desperta, ao natural, polêmica. Enfrentá-la, é uma atitude de coragem, que requer convicção quanto aos fins e preparo intelectual para o debate. Nisso, trilha-se o caminho da legitimação de idéias. Ainda assim, não se tem – e a própria democracia não requer – unanimidade.

O presidente Dwight Eisenhower afirmou ter cometido dois erros maiúsculos “e os dois estavam na Suprema Corte”. Referia-se, com evidente exagero, ao chief justice Earl Warren e ao justice William Brennan, que se tornaram juízes liberais uma vez na Corte (DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Principles for a new political debate, New Jersey: Princeton, 2006, p. 158). Por sua vez, o presidente Fernando Henrique Cardoso, dentre tantos acertos maiúsculos, cometeu três deles no Supremo Tribunal Federal. O último deles retorna agora à banca com o dever sobejamente cumprido.

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