Singularidade da prestação

Municípios só pode contratar advogados em exceções

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20 de abril de 2010, 5h39

O enfrentamento da questão acima passa pela consideração de alguns importantes princípios constitucionais relativos à Administração Pública e da Lei 8.666/93, que regula os procedimentos licitatórios em geral.

A Constituição Federal é explícita em seu art. 37, inciso XXI, sobre a exigibilidade de licitação para as contratações de obras, serviços compras e alienações pelo setor público, remetendo à legislação ordinária as exceções eventualmente permitidas:

“XXI – ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.”

O art. 2º da Lei 8.666/93 praticamente repete o texto constitucional ao determinar que:

“Art. 2º. As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.”

Além da referência explícita no inciso acima sobre a generalidade do dever de licitar, o próprio caput do art. 37 traz em seu texto alguns dos princípios que o administrador deverá observar na condução da coisa pública, inclusive nas hipóteses, obviamente, em que ocorrer a dispensa ou a inexigibilidade do processo licitatório:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.”

O art. 3º da Lei 8.666/93, por sua vez, detalha o comando constitucional acima citado, repetindo os princípios mencionados como instrumentos norteadores do processamento e julgamento do processo licitatório, mas não antes de explicitar a finalidade da licitação:

“Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia e a selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.”

Além disso, a avaliação da questão requer o correto enquadramento da natureza dos serviços advocatícios, tarefa da qual o próprio legislador se desincumbiu no art. 13, inciso V, da Lei de Licitações, aditando ainda, no §1º, a sua preferência pela modalidade “concurso” na seleção destes serviços, salvo as hipóteses de inexigibilidade de licitação.

Art. 13. Para os fins desta Lei, consideram-se serviços técnicos profissionais especializados os trabalhos relativos a:

V – patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;

§ 1o Ressalvados os casos de inexigibilidade de licitação, os contratos para a prestação de serviços técnicos profissionais especializados deverão, preferencialmente, ser celebrados mediante a realização de concurso, com estipulação prévia de prêmio ou remuneração.

Finalmente, diante das determinações legais acima expostas, cabe avaliar as hipóteses de inexigibilidade previstas em abstrato pelo legislador que possam eventualmente justificar a contratação de serviços advocatícios sem licitação. A esse respeito, determina a já mencionada lei, em seu art. 25, inciso II e § 1º:

Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:

II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

§ 1o Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

A partir do texto legal acima, dois pontos parecem fundamentais para enfrentar a questão: o significado da expressão “natureza singular” e o significado da expressão “notória especialização”.

A questão da “natureza singular”
Problemas no caso concreto podem surgir diante da expressão “natureza singular”, que o legislador não cuidou de definir, limitando-se a vinculá-la a uma ampla gama de serviços descritos no art. 13, entre os quais se incluem os serviços de advocacia, conforme transcrito acima. Os problemas decorrem, em primeiro lugar, da dificuldade de se avaliar objetivamente um serviço, cujo resultado não se materializa em um objeto de existência física. Além disso, o extenso rol de serviços descritos pela lei inviabiliza a tentativa de enquadramento da expressão em cada uma das inúmeras situações práticas existentes. Apesar das dificuldades — e ciente delas — Marçal Justen tenta definir a expressão (p. 356) afirmando que:

“A natureza singular caracteriza-se como uma situação anômala, incomum, impossível de ser enfrentada satisfatoriamente por todo e qualquer profissional “especializado”… A identificação de um caso “anômalo” depende da conjugação da natureza própria do objeto a ser executado com as habilidades titularizadas por um profissional-padrão que atua no mercado . Ou seja, não basta reconhecer que o objeto é diverso daquele usualmente executado pela própria Administração. É necessário identificar se um profissional qualquer de qualificação média enfrenta e resolve problemas dessa ordem, na atividade profissional comum”.

Vai além o autor, ao apontar a relatividade do conceito e, em consequência, os riscos de se tentar normatizar em detalhe as suas hipóteses de cabimento:

"Portanto, o conceito de ‘natureza singular’ é relativo. Depende de circunstâncias históricas e geográficas. Sua identificação, no caso concreto, depende das condições generalizadas de conhecimento e de técnica. Algo que, em certo momento, caracteriza-se como tendo uma natureza singular pode deixar de ser assim considerado no futuro. Um certo serviço pode ser reputado como de natureza singular em certas regiões do Brasil e não ser assim qualificável em outras. A maior dificuldade para entender o conceito reside na tentativa de transformá-lo em absoluto, reconduzindo-o a padrões numéricos ou a modelos predeterminados."

A dificuldade de se estabelecer uma padronização se reflete na própria jurisprudência, como cuidou o autor de demonstrar com a transcrição de julgados do TCU, cujo conteúdo deixa clara a existência de fortes divergências acerca da interpretação do inciso II do art. 25, seja de modo abstrato, seja no caso concreto . Diante disso, Marçal Justen reforça sua tese acima exposta:

“As decisões devem ser interpretadas no sentido harmônico, refletindo a orientação de que a configuração da inviabilidade da competição deriva não do gênero contratual, mas da espécie concreta a ser apurada. Ou seja, não cabe reputar que toda e qualquer atividade de ensino e treinamento comportaria contratação sem licitação. A questão não reside na natureza da atividade de ensino e treinamento como um gênero abstrato, mas é indispensável verificar se a circunstância concreta envolve uma atividade de natureza singular.”


A apuração no caso concreto da singularidade do objeto implica dizer que a Administração não conta com os recursos humanos necessários para desempenhar determinada tarefa e, por essa razão, terá que recorrer à contratação de terceiros. Marçal Justen vai além, afirmando, em um trecho de sua obra que trata especificamente da contratação de serviços advocatícios (361-362) que, verificada a singularidade do objeto, a licitação se torna inexigível:

“Havendo a necessidade de contratação de advogado autônomo, cabe verificar se a licitação será obrigatória ou se caberá promover a contratação direta por inviabilidade. Por força do inciso II do art. 25, a contratação direta somente é admitida quando se configurar a existência de um serviço advocatício de natureza singular. Se o serviço objeto da contratação não apresentar natureza singular, será obrigatório o procedimento licitatório.”

Essa conclusão se baseia no entendimento do autor acerca do papel na notória especialização em relação à exigibilidade da licitação. Para ele, "a notória especialização não é uma causa de inexigibilidade de licitação, mas de seleção do profissional a ser contratado… No sistema atual, a notória especialização não é verificada como requisito para a apuração da necessidade da realização da licitação, mas para identificação das condições subjetivas do contratado."

Entretanto, com todo respeito que é devido ao autor, este não parece ser o melhor entendimento, uma vez que são requisitos necessários para tornar inexigível a licitação tanto a singularidade do serviço quanto a notória especialização do seu prestador. Nesse sentido, ensina Maria Sylvia Zanella (371):

“…não é para qualquer tipo de contrato que se aplica essa modalidade [a inexigibilidade]: é apenas para os contratos de prestação de serviços, desde que observados os três requisitos, ou seja o de tratar-se de um daqueles enumerados no art. 13, o de ser de natureza singular, e o de ser contratado com profissional notoriamente especializado .”

Em relação especificamente à notória especialização, Maria Sylvia acrescenta:

“Com relação à notória especialização, o § 1º do art. 25 quis reduzir a discricionariedade administrativa em sua apreciação, ao exigir os critérios de essencialidade e indiscutibilidade do trabalho, como sendo o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.”

Mesmo não reconhecendo na notória especialização um requisito de inexigibilidade da licitação, Marçal Justen afirma que os atributos daquele profissional devem ser avaliados segundo critérios objetivos, ainda que variáveis em função das especificidades do caso concreto, como forma de garantir que a escolha não fique vinculada à simples opinião do administrador. Assim, ensina o autor a respeito (p. 358):

“A notoriedade significa o reconhecimento da qualificação do sujeito por parte da comunidade… Não basta a Administração reputar que o sujeito apresenta qualificação, pois é necessário que esse juízo seja exercitado pela comunidade. Não se exige notoriedade no tocante ao público em geral, mas que o conjunto dos profissionais de um certo setor reconheça no contratado um sujeito dotado de requisitos de especialização .”

Ainda que satisfatórios os critérios expostos acima, até por se coadunarem com os princípios constitucionais da publicidade e da isonomia que regem a Administração Pública, eles não parecem suficientes para satisfazer o intuito do legislador. Conforme a própria definição da expressão dada no § 1º, é necessário que esses critérios, tão objetivamente avaliados quanto possível, permitam inferir que o trabalho do profissional é o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. Usou aqui o legislador nada menos que uma expressão superlativa — o mais adequado — de forma a indicar de forma inequívoca que a licitação só é inexigível se o profissional for o único capaz, “essencial e indiscutivelmente”, de atender ao objetivo da Administração Pública na contratação. Nesse sentido julgou o Tribunal de Contas da União, no processo 213/1999, relatado pelo Ministro Benjamin Zymler:

“A questão da contratação de serviços advocatícios por inexigibilidade de licitação é tema pacífico nesta Corte de Contas, cujo entendimento é a necessidade de processo licitatório para a contratação de serviços desta natureza, exceto quando ficar comprovada a notória especialização e a singularidade do objeto. Ocorre que o termo notória especialização é comumente mal interpretado por alguns administradores públicos, confundindo o seu significado da Lei de Licitações com o seu significado popular. Vejamos os temos da Lei 8.666/93 ao definir notória especialização (art. 25, § 1º). Como vemos, não se trata apenas de o profissional gozar de renomado conceito profissional, e sim, de seu trabalho ser essencial e o mais adequado à administração pública.”

Assim, da necessidade de se contratarem terceiros decorrente da singularidade do objeto do contrato não se deve concluir, de modo inevitável, que a Administração Pública deve recorrer à contratação direta, com o abandono do procedimento licitatório. A inexigibilidade da licitação só será possível quando for singular o serviço e, para usar o mesmo termo, for singular também o profissional que o prestará, quando então se tem configurada a hipótese prevista no caput do art. 25, qual seja, a inviabilidade da competição. Sendo o objeto singular, mas não se desincumbindo a Administração Pública de comprovar que determinado profissional é o único capaz de prestar o serviço, fica inviabilizada a contratação direta e obrigatória, portanto, a licitação.

Alguns exemplos de jurisprudência colhidos junto ao STF, STJ e TCU revelam um entendimento distinto e, de certa forma, menos rígido do que aquele apresentado acima.

Segundo o acórdão abaixo relatado pelo Ministro Eros Grau, o entendimento do STF sobre o tema é que à norma de notória especialização se soma o elemento da confiança subjetiva.

EMENTA: AÇÃO PENAL PÚBLICA. CONTRATAÇÃO EMERGENCIAL DE ADVOGADOS FACE AO CAOS ADMINISTRATIVO HERDADO DA ADMINISTRAÇÃO MUNICIPAL SUCEDIDA. LICITAÇÃO. ART. 37, XXI DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. DISPENSA DE LICITAÇÃO NÃO CONFIGURADA. INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO CARACTERIZADA PELA NOTÓRIA ESPECIALIZAÇÃO DOS PROFISSIONAIS CONTRATADOS, COMPROVADA NOS AUTOS, ALIADA À CONFIANÇA DA ADMINISTRAÇÃO POR ELES DESFRUTADA. PREVISÃO LEGAL. A hipótese dos autos não é de dispensa de licitação, eis que não caracterizado o requisito da emergência. Caracterização de situação na qual há inviabilidade de competição e, logo, inexigibilidade de licitação. 2. "Serviços técnicos profissionais especializados" são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ela própria, Administração, deposite na especialização desse contratado. Nesses casos, o requisito da confiança da Administração em quem deseje contratar é subjetivo. Daí que a realização de procedimento licitatório para a contratação de tais serviços – procedimento regido, entre outros, pelo princípio do julgamento objetivo – é incompatível com a atribuição de exercício de subjetividade que o direito positivo confere à Administração para a escolha do "trabalho essencial e indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato" (cf. o § 1º do art. 25 da Lei 8.666/93). O que a norma extraída do texto legal exige é a notória especialização, associada ao elemento subjetivo confiança. Há, no caso concreto, requisitos suficientes para o seu enquadramento em situação na qual não incide o dever de licitar, ou seja, de inexigibilidade de licitação: os profissionais contratados possuem notória especialização, comprovada nos autos, além de desfrutarem da confiança da Administração. Ação Penal que se julga improcedente (AP no. 348-5/SC, Plenário, rel. Min. Eros Grau, j. em 15.12.2006, DJ de 03.08.2007).


O julgado acima, que à primeira vista parece uma visão ainda mais estrita acerca das hipóteses de inexigibilidade de licitação, é na verdade uma solução que dá ao administrador uma margem de discricionariedade bem mais ampla do que aquela que lhe seria dispensada segundo o entendimento aqui defendido. As causas disso, salvo melhor entendimento, são duas: o conceito implicitamente adotado pelo Relator, Ministro Eros Grau, acerca da expressão notória especialização, e a preferência por um critério de escolha subjetivo e, portanto, intrinsecamente incompatível com o procedimento licitatório.

Ora, houvesse sido adotado o entendimento mais estrito da expressão acima, ou seja, uma interpretação segundo a qual a escolha deva recair sobre o melhor profissional — de acordo com a conotação superlativa empregada pelo legislador, segundo os critérios de essencialidade e indiscutibilidade apontados por Maria Sylvia Zanella — estaria configurada a hipótese de inexigibilidade de licitação por inviabilidade da competição.

Mas tendo adotado o entendimento comum para a expressão “notória especialização”, o acórdão removeu a questão da hipótese de inexigibilidade da licitação por inviabilidade de competição e a remeteu para a hipótese em que, diante de um serviço singular e mais de um profissional habilitado para prestá-lo, a melhor solução seria a contratação direta, mediante o critério de confiança pessoal entre o administrador e o contratado que, por sua própria natureza, é intrinsecamente incompatível com a objetividade dos procedimentos licitatórios (art. 3º da Lei 8.666/93).

Com todo o respeito devido ao Ministro Eros Grau, tal posicionamento parece afrontar o princípio da isonomia constitucionalmente requerido no trato da coisa pública e expressamente indicado como balizador dos procedimentos previstos na Lei de Licitações, mesmo naqueles casos excepcionais de dispensa e de inexigibilidade do procedimento licitatório. Como aponta Marçal Justen a respeito do tema (285):

“Seria procedente afirmar que, nos casos de contratação direta, o princípio da isonomia não se aplica? A resposta é negativa. É óbvio que o princípio da isonomia, por sua supremacia constitucional, não poderia deixar de ser aplicado. Logo, a contratação direta não é modalidade de atividade administrativa imune à incidência do princípio da isonomia. Passa-se, tão somente, que o princípio da isonomia tem que ser compatibilizado com as peculiaridades da contratação direta… A contratação direta não autoriza atuação arbitrária da Administração. No que toca com o princípio da isonomia, isso significa que todos os particulares deverão ser considerados em plano de igualdade. Ao escolher um sujeito específico e com ele contratar, a decisão administrativa deverá ser razoável e fundar-se em critérios compatíveis com a isonomia.”

Ressalte-se, a propósito, que a isonomia é instrumento não apenas para garantir o livre acesso dos interessados à disputa, ou seja, é instrumento de tutela dos interesses individuais daqueles que desejem com a Administração contratar, mas é também instrumento de ampliação da disputa, de acordo com os melhores interesses da própria Administração. Naturalmente devem ser admitidas as discriminações conformes ao Direito. Mas, o que não se admite, nas palavras de Marçal Justen (68) é “a discriminação arbitrária, produto de preferências pessoais e subjetivas do ocupante do cargo público.” Justamente a discriminação que o acórdão acima parece legitimar.

Além da afronta ao princípio da isonomia, a possibilidade de contratação direta com base na “confiança do administrador” parece afrontar os princípios da impessoalidade e mesmo da moralidade, dependendo, neste último ponto, da análise das circunstâncias concretas de cada caso.

Quanto à impessoalidade, sob o ponto de vista da Administração , porque não cabe falar em confiança pessoal do administrador em relação ao prestador de serviço como critério de contratação em nome da Administração Pública. Existindo tal confiança entre ambos, sua importância deve ficar restrita às relações privadas das partes, sem jamais vincular a Administração e, muito menos, usar de seus recursos para premiá-la, em detrimento dos demais administrados. Nesse sentido, ensina José Affonso da Silva (667):

“o princípio ou regra da impessoalidade da Administração Pública significa que os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica, mas ao órgão ou entidade administrativa em nome de do qual age o funcionário. Este é um mero agente da Administração Pública, de sorte que ele não é o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que manifesta a vontade estatal… É que a “primeira regra do estilo administrativo é a objetividade” que está em estreita ligação com a objetividade. Logo, as realizações administrativo-governamentais não são do funcionário ou autoridade, mas da entidade pública em nome de quem as produza.”

Quanto à moralidade, é certo que não se pode apontar a priori que ela seja atingida em todo e qualquer ato de contratação levado a termo nos moldes discutidos acima. Mas é certo também que, por uma ótica pragmaticamente fixada na realidade do país, não é nada desprezível a possibilidade da prática de abusos e desvios sob o manto da legalidade conferida à contratação direta baseada no critério subjetivo da confiança. A respeito do tema, ensina ainda José Affonso da Silva que: “a ideia subjacente ao princípio é que a moralidade administrativa não é moralidade comum, mas moralidade jurídica. Essa consideração não significa necessariamente que um ato legal seja honesto. Significa, como disse Hauriou, ‘que a moralidade administrativa consiste no conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração’… A lei pode ser cumprida moral ou imoralmente. Quando sua execução é feita, por exemplo, com o intuito de prejudicar alguém deliberadamente, ou com o intuito de favorecer alguém, por certo que se está produzindo um ato formalmente legal, mas materialmente comprometido com a moralidade administrativa".

De modo semelhante argumenta Marçal Justen (73) ao se referir ao princípio da moralidade aplicado à Lei de Licitações e que, portanto, compreende as hipóteses de inexigibilidade da licitação aqui discutidas:

“É vedado ao administrador superpor um interesse particular (próprio ou de terceiro) ao interesse coletivo. Diante de conflito de interesses, o administrador deve sempre agir com lealdade para com o interesse coletivo. A moralidade e a probidade acarretam a impossibilidade de vantagens pessoais serem extraídas pelo administrador. Por igual, estão proibidas vantagens ou prejuízos decorrentes de preferências pessoais dos titulares de funções públicas. Mesmo que não retirem, direta ou indiretamente, qualquer benefício, os administradores praticam atos inválidos quando interferem no destino da licitação para beneficiar ou prejudicar concorrente.”

De qualquer forma, entendimento semelhante ao do STF parece ser esposado pelo STJ, embora o tema não tenha sido desenvolvido suficientemente para permitir uma conclusão segura. Assim, embora entenda serem requisitos do texto legal para a inexigibilidade da licitação a singularidade do serviço e a notória especialização do profissional, o STJ aparentemente entende que, presentes tais requisitos, a escolha final se dá com base na discricionariedade do administrador. Implícita nesse entendimento está, mais uma vez, o entendimento comum da expressão “notória especialização”, que nos parece distinto daquele que o legislador quis emprestar à expressão.

EMENTA: “RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATO PARA REALIZAÇÃO DE SERVIÇOS TÉCNICOS ESPECIALIZADOS, MAS NÃO SINGULARES. ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA. LICITAÇÃO. DISPENSA. 1. Os serviços descritos no art. 13 da Lei n. 8.666⁄93, para que sejam contratados sem licitação, devem ter natureza singular e ser prestados por profissional notoriamente especializado, cuja escolha está adstrita à discricionariedade administrativa. 2. Estando comprovado que os serviços jurídicos de que necessita o ente público são importantes, mas não apresentam singularidade, porque afetos à ramo do direito bastante disseminado entre os profissionais da área, e não demonstrada a notoriedade dos advogados – em relação aos diversos outros, também notórios, e com a mesma especialidade – que compõem o escritório de advocacia contratado, decorre ilegal contratação que tenha prescindido da respectiva licitação. 3. Recurso especial não-provido.” (Recurso Especial nº 436.869 – SP, 2ª T., rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ de 01.02.2006, p. 477)

Diferente entendimento na questão da subjetividade do STF e do STJ tem o Tribunal de Contas da União, ao exigir a adoção de critérios objetivos para a seleção do profissional, mesmo nos casos em que for inexigível a licitação. Nesse sentido, o voto condutor do Acórdão 116/2002-P do Ministro Relator Marcos Vinicios Vilaça:

3. A contratação de serviços advocatícios por inexigibilidade de licitação é uma exceção à regra geral. Apenas em situações excepcionais, dada a singularidade do serviço a ser prestado e a necessidade de conhecimento técnico específico, é admissível a contratação direta. Não foi esse o caso da Ceron, visto que a empresa contratou advogados para atuar em processos trabalhistas corriqueiros e sem nenhuma complexidade que exigisse profissionais com conhecimentos extraordinários. 4. Mesmo no caso de ficar demonstrada a inviabilidade de competição, o Tribunal tem entendido que os órgãos e entidades devem realizar a pré-qualificação dos profissionais aptos a prestarem os serviços, adotando sistemática objetiva e imparcial de distribuição de causas entre os pré-qualificados, de forma a resguardar o respeito aos princípios da publicidade e da igualdade, conforme já proferido nas seguintes deliberações: Decisão Sigilosa nº 69/93 – Plenário (Ata nº 22/93, DOU de 22.06.93); Decisão Sigilosa nº 494/94 – Plenário (Ata nº 36/94, DOU de 15.08.94); Decisão nº 244/95 – Plenário (Ata nº 23/95, DOU de 21.06.95).”

Embora a sistemática de adoção de critérios objetivos e imparciais pareça a mais correta em respeito aos princípios da isonomia, da publicidade e da motivação, a situação descrita no acórdão, tal como no acórdão do STF acima citado, não nos parece se referir à hipótese de inviabilidade da concorrência, para a qual são satisfeitos os requisitos de singularidade do serviço e de notória especialização do profissional. Ao revés, o caso descrito parece se adequar à hipótese em que seria necessária a contratação de serviços externos à Administração em função da singularidade do serviço, mas para cuja prestação existiria mais de um profissional qualificado. Entendimento semelhante parece ter o Ministro do Tribunal de Contas da União, Augusto Sherman Cavalcanti, conforme acórdão abaixo:

A contratação de serviços advocatícios por inexigibilidade de licitação sob o argumento da confiança entre o contratante e o contratado carece de amparo legal ou regulamentar. 2. Para a caracterização da situação de inexigibilidade de licitação na contratação de serviços advocatícios, é necessária a comprovação da singularidade do serviço a ser prestado, além da notória especialização, devendo-se demonstrar cabalmente a inviabilidade da competição . 3. Quando os serviços advocatícios contratados se referem a atividades rotineiras de assessoria jurídica, tem-se por afastado o requisito de singularidade necessário para caracterizar a inviabilidade da competição. Acórdão 2/012/2007, Plenário, rel. Min. Augusto Sherman Cavalcanti)

A análise da questão da inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços jurídicos por parte dos municípios mostra que a contratação direta é exceção dentro do sistema que regula as contratações da Administração Pública. Logo, para os serviços jurídicos regulares, que não sejam dotados de nenhum atributo que os tornem, no dizer da lei, singulares, a única alternativa para os municípios parece ser a manutenção de um quadro próprio de advogados, integrado à própria Administração.

Como visto acima, entretanto, a singularidade do serviço é condição necessária, mas não suficiente, para a inexigibilidade da licitação, cujo fundamento é a impossibilidade de competição. Isso porque, ainda que singular o serviço, mas havendo mais de um advogado habilitado a prestá-lo, estarão teoricamente presentes as condições para a competição e, portanto, segue sendo obrigatória a licitação.

Finalmente, em se tratando da situação em que estejam presentes os requisitos de singularidade do serviço e de notória especialização do seu prestador, sendo este último conforme a definição expressa do legislador, tem-se configurada a inviabilidade da competição, o que torna inexigível, portanto, o procedimento licitatório. Neste caso – e somente neste caso – resta à Administração apenas o caminho da contratação direta, mas sempre adstrita e pautada pelos princípios que regem a Administração Pública em geral e a Lei de Licitações, em particular.

5. Bibliografia
Direito Administrativo, Maria Sylvia Zanella
Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva
Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, Marçal Justen Filho

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