Corrupção e precatórios

Cultura do calote gera insegurança jurídica

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14 de abril de 2010, 16h27

A corrupção custou R$ 380 bilhões ao país no ano de 2004, segundo a revista Exame, ou 2% do PIB. Outros pesquisadores indicam que 0,5 se refira a corrupção na atividade pública = R$ 95  bilhões.

O calote público das dívidas judiciais (os precatórios) é estimado em “apenas” R$ 100 bilhões, inexistindo informações daqueles em gestação no Judiciário (iniciativas louváveis do CNJ e também do Min. Aires Britto, relator de duas ADINs – Ações Declaratórias de Inconstitucionalidade no STF, procuram um diagnóstico).

Uma conta simples, mas de fácil compreensão, indica que a redução na corrupção pública em alguns anos já seria uma grande fonte de financiamento para liquidação dos precatórios: o dinheiro em cuecas, meias, sacos de lixo e contas fantasmas iria para velhinhas, pensionistas, aposentados, desapropriados e credores em geral do Poder Público.

Historicamente, o calote crônico dos precatórios tem sido administrado via moratórias inconstitucionais, imorais e, ainda assim, solenemente descumpridas pela grande maioria de Estados e Municípios (a União cumpre as ordens do Judiciário). A primeira foi em 1988 – 8 anos de moratória, a segunda em 2000 + 10 anos, e, agora em 2009, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 62/09, dando no mínimo mais 15 anos para pagamentos. Nesta última versão aperfeiçoada de calote, limitaram o pagamento de dívidas judiciais públicas passadas, presentes e futuras a um percentual mínimo – 1 a 2% das receitas anuais líquidas (Prefeitos e Governadores somente precisarão cumprir a Constituição, leis e contratos até um teto…),  eliminaram a ordem cronológica, criaram leilões (onde o devedor é o único comprador e quem der o maior desconto, recebe primeiro…) e conciliação (sem regulamentação, o Prefeito ou Governador poderá fazer acordos a seu bel prazer). 5 anos em média de processo na Justiça + 8 anos + 10 anos + 15 anos = 38 anos de sofrimento e moratória…

Os credores desesperados ficarão mais do que nunca nas mãos dos inquilinos do Poder, com a faca e o queijo na mão para pagar o que entenderem para dívidas passadas e presentes, e também livres para romper contratos, negar aumentos a funcionários e pensionistas, desapropriar direta ou indiretamente bens de terceiros (desde o jornaleco da cidade pequena, à Vale, Rede Globo, bancos, empresas de saneamento, comunicação, fazendas, indústrias, casas do adversário político, etc). Prefeitos e Governadores estão livres para o bem ou o mal, blindados pela Emenda 62/09. Conclusão: manutenção da cultura do calote e porteira aberta para corrupção, chantagem e insegurança jurídica total.

A irresponsabilidade legislativa pode, entretanto, ter chegado a seu limite absoluto, e o STF, agora julgando a Emenda Constitucional nº 30, de 2000, que deu 10 anos de moratória, está prestes a declarar a inconstitucionalidade destes esquemas viciados de calote e desrespeito ao Poder Judiciário. Um cansaço institucional, talvez na linha emblemática das ordens de prisão contra a cleptocracia do Distrito Federal.

Corrupção e má gestão pública, desobediência a ordens judiciais, sabotagem à eficiência do Poder Judiciário (o Poder Público é parte em mais de 70% das ações em andamento), chegam juntos neste momento histórico a uma mesma encruzilhada, um nó górdio que poderá ser desatado pelo STF.

No campo específico dos precatórios, o esperado reconhecimento pelo STF da inconstitucionalidade dos sucessivos calotes produzirá um choque imediato e mesmo perplexidade (“depois de tantas décadas, Estados e Municípios – sem aviso prévio, terão que pagar suas dívidas”?). Adoradores do Estado dirão que isto causará o caos nas contas públicas, mas caos já existe há décadas, sem solução, e a repetição de um modelo falido e inconstitucional nada resolverá, como já está provado. Alegar que o pagamento de ordens judiciais por entes públicos é um assunto administrativo e não estaria sujeito a interpretações judiciais poderia (por absurdo) ser aceito se pessoas físicas e jurídicas gozassem do mesmo benefício (pagar ou atrasar impostos, por razões “administrativas”…).

A evidente injustiça, irracionalidade e dificuldades operacionais dos calotes, mesmo com a vigência da EC 62/09, tem levado Estados como o RJ a abrir janelas de solução prática, neste caso com uma lei permitindo a compensação de dívidas ativas tributárias com precatórios. Uma iniciativa  que poderia ser repetida em todo o país.

Fundos de infra-estrutura, lastreados em precatórios (o dinheiro recebido será obrigatoriamente reinvestido no território do ente devedor), o pagamento de financiamento da casa própria – Nossa Casa Nossa Vida, com precatórios, a contribuição para fundos de aposentadoria com precatórios alimentares, compra de máquinas e equipamentos com precatórios via FINAME, são todas medidas simples, práticas, insistentemente apresentadas pela OAB e outras instituições no Congresso, que preferiu ficar com o calote.

A intervenção do Governo Federal na reestruturação dessas dívidas de Estados e Municípios é imprescindível, atuando simplesmente como fiador ou garantidor (tem os repasses constitucionais para se proteger), sem qualquer desembolso ou aumento de seu endividamento. A União poderia até garantir títulos municipais e estaduais de longo prazo, que seriam emitidos em substituição a precatórios.

Enfim, o resgate do comportamento ético para governantes (voluntariamente ou via cadeia, exigindo-se a devolução do dinheiro roubado) pode ser o detonador de uma mudança histórica no Brasil com relação às dividas públicas, o respeito ao Judiciário e a segurança jurídica para investimentos.

A OAB jamais poderá ser condenada por omissão e conivência com práticas históricas condenáveis ou leniência com poderosos de plantão. A Justiça faz parte da cesta básica da cidadania, como saúde, transporte, educação, segurança e outros bens constitucionais e a melhor maneira de acabar com os precatórios (no futuro) será exigir o cumprimento das leis, contratos e ordens judiciais.

Diversos projetos em andamento na administração pública e Congresso imaginam dar até poder de polícia ao fisco para cobrança de impostos, deixando claro que no Brasil só existe uma coisa pior do que ser credor do Poder Público: é ser devedor… Aguardemos os pronunciamentos da mais alta Corte do país.

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