O valor da lei

De Getúlio a Lula, a cubanização do Direito brasileiro

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13 de abril de 2010, 7h58

A morte por inanição de um dissidente do regime castrista ensejou pronunciamento do presidente Lula no sentido de que é legítimo a Cuba aplicar as suas leis. E é legítimo mesmo, porque é exatamente nisto que consiste a soberania. O problema, porém, não é aí que está. Este é apenas um recurso de retórica. Aliás, o único que Lula, de tanto usar, acabou aprendendo a fazer. O problema, é claro, está nas leis de Cuba. O que está em questão, o que está errado, são as leis de Cuba, como as de qualquer outro estado que não respeite os direitos humanos.

Característica marcante do pensamento de Lula, que nisto se identifica integralmente com o de Getúlio Vargas, é a invencível impossibilidade de dar algum valor à lei. A frase de Getúlio que se tornou famosa – “A lei, ora a lei” – é repetida diariamente por Lula, em pensamentos, palavras e obras.

Mas, no que se refere à lei, não é só nisto que os dois se identificam. Identificam-se por um outro aspecto, tão ou mais pernicioso do este, que é o de desprezarem as leis do seu país, na mesma medida em que estão sempre prontos a prestar vassalagem às leis do país dos outros, desde que autoritárias.

Para Getúlio, merecedoras de aplauso e adesão foram as leis fascistas, editadas sob o lema “Tudo no Estado, nada contra ou fora do Estado”, do mesmo modo que, para Lula nunca haverá nada de mais respeitável, do que as leis castristas.

Desses dois pontos de identidade entre Getúlio e Lula, é de se perguntar qual dos dois seria o pior. É o segundo, sem dúvida.

Ter pouco apreço pela lei é um defeito tão disseminado entre nós, que é até difícil catalogá-lo como um defeito do povo brasileiro. É um modo de ser, que inutilmente foi denunciado pelo Padre Vieira, no século XVII, quando disse que não somos “repúblicos”. De lá para cá, ao que se saiba, nada mudou, se é que não mudou para pior.

Valorizar, porém, leis contrárias às nossas, é outra coisa. É admitir que há, sim, leis que merecem respeito e obediência, e leis que não merecem nem uma coisa nem outra. É prática que desloca a questão do conceito de lei para a sua qualidade. Passa-se do campo da ontologia para o da axiologia do direito; do campo da objetividade concreta impessoal para o da subjetividade abstrata e personalista onde tudo caiba.

Aí se vê que o ponto em que se identificam Getulio e Lula não é o desapreço pela lei, mas o apreço pela ditadura, pela violência, pela opressão dos dissidentes, a cuja volta gravitam todos os mais infames dos defeitos que consomem e infelicitam os seres humanos. A ditadura é um celeiro em que medram e proliferam todas as piores distorções do caráter e nenhuma virtude, ao contrário da liberdade que é a fonte de tudo o que é belo e de tudo o que há de melhor que o homem já produziu no campo da ciência, das artes, da moral e da religião.

Assim como Lula, também Getúlio desfrutava de indiscutível apoio popular. O que lhes é comum, neste campo, no entanto (e poderia não ser), é a forma de granjeá-lo. É a ostentação do orgulho de se declararem opositores à lei, a que dão combate em tudo que os impeça de proteger os interesses diretamente contrários aos do país, mas diretamente favoráveis à promoção de sua popularidade, coincidentes em regra com o dos pobres e desvalidos, tão capazes estes de egoísmos como qualquer outra criatura, a quem a fortuna tenha reservado melhor sorte.

Não se identificam aos olhos do povo, nem Getúlio nem Lula, como tiranos, como tiveram a ousadia de fazer Adolf Hitler e Benito Mussolini. Não têm essa coragem. Ao contrário, escondem essa faceta até onde a possa abrigar a sombra da imagem de pais da pátria, pais dos pobres e dos oprimidos. Argutos, ultrapassadas as fimbrias desses limites, exsurgem democratas convictos. Democratas de fachada, na verdade. 

Entendo que possivelmente, a despeito das aparências, nosso povo não ame a ditadura. Uns dela já se esqueceram, alguns dela se beneficiaram momentaneamente e talvez voltem a beneficiar-se ainda hoje; mas a maioria, de tão pobre ou ignara, não chegou a dar-se conta do que acontecia, nem na época do Getúlio, nem na do regime militar, nem agora. Ao lado disto, sempre haverá multidões de paranóicos que clamem pela vinda de um bom ditador. No Brasil, porém, e talvez não só aqui, o virtual ditador que aspire ao comando do estado nunca se apresentará como tal, mas sim como impávido defensor das “verdadeiras” liberdades públicas contra o farisaísmo legalista dos defensores da ordem constituída. Atrás de toda a violência, lembra-nos Soljenitsen, há sempre uma mentira.

Esse fenômeno indica a presença de outra característica do mesmo tipo de pessoa. A baixa ou nenhuma estima pela noção de patriotismo, ou melhor, pelos valores que nessa idéia se contém. Conseguem ser, no máximo, bairristas. Jamais patriotas. Nada há de mais contrário ao patriotismo do que a preferência pela lei estrangeira autoritária, antes que a opção pelo aprimoramento da lei nacional democrática. A falta de patriotismo, em Getúlio, era sinônimo de falta de apreço pela história do país, no que respeitava o nascente federalismo de corte norte-americano. Em Lula é sintoma, apenas, de sua orgulhosa ignorância assim da história como de qualquer outro ramo do conhecimento humano. Patriotismo é respeito pelos costumes em torno dos quais os homens iguais se aglutinam em prol do desenvolvimento comum e da defesa do território.

A relutância de Getúlio em declarar guerra aos países do Eixo, encontra correspondência na recusa de Lula em aderir ao esforço mundial contra a ameaça da ampliação do poder nuclear no oriente médio, histórico barril de pólvora.

De Getúlio a Lula, decorreram cinqüenta anos, interrompidos é bem verdade pelos vinte anos de regime militar, sem nenhum avanço nessa área. A cada vinte ou trinta anos, o Brasil está condenado, parece, a recomeçar sua história republicana. É como se nunca aprendêssemos nada com o nosso passado. Temos tido que carregar o fardo dessa ignorância por não tomarmos conhecimento da advertência de que, quem se esquece dos erros do passado está condenado a repeti-los. O sangue derramado pelos ditadores, como foi o derramado por Vargas e Adolf Hitler, suicidando-se, ou Mussolini, linchado, não significa necessariamente o fim dos dias da sua violência; pode constituir, antes, a seiva que irá nutrir as raízes da próxima ditadura, até que se lhe sobreponha, na consciência do povo, criando uma nova e prolongada história, o conhecimento dos males que as ditaduras infligem ao povo, tanto durante como depois de encerrado o seu predomínio.

A interrupção desses ciclos não começa pela substituição dos governantes. Começa pela percepção clara da nossa realidade histórica cujo conhecimento é pressuposto da aquisição, pelo povo, da consciência da imprescindibilidade política do império do Direito. Ainda não chegamos lá; ao contrário, estamos bem longe disto. Aspirar por esta transformação, no entanto, já é o primeiro passo para conquistá-la. É preciso não perder de vista a advertência contida nos Sertões: “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos” (1981, p. 52).

O passo seguinte é obter a compreensão de que este ideal é um bem que só pode sobreviver vivendo no plano coletivo, jamais no particular. De nada adianta que existam pessoas, ou grupos de pessoas que acreditem nele, se o povo, em massa, nele não confiar. Este é, a meu ver, o problema que temos pela frente. 

Em face desse panorama, o atual revival da fé totalitária não pode ser descurado. Não dá para fazer de conta que se não o vê, porque está introduzindo publicamente, não à sorrelfa, alterações nitidamente autoritárias no ordenamento jurídico, cuja característica mais saliente são as restrições às liberdades fundamentais.

É o que se nota em três planos distintos: o do Governo federal, o do Ministério Público e o da Justiça. No primeiro, propõe-se a atribuição de poderes totalitários à Fazenda Pública, em matéria tributária, a sugerir o retorno aos antecedentes da Magna Carta. No segundo, são as alterações na lei da ação civil pública, mortas é bem verdade, mas ainda não sepultadas, para afeiçoá-la, o quanto possível, às ações do Tribunal do Santo Ofício. No terceiro, a criação de um novo processo de grande velocidade (PGV), à custa da supressão de direitos fundamentais processuais, como o que se fez célebre no processo penal, o paredón que marcou início do regime castrista. Em outros termos, estamos assistindo a cubanização do direito e, em particular, do processo civil brasileiro.

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