Conflito de competência

A legitimidade da Defensoria Pública para propor ACP

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9 de abril de 2010, 22h11

Com o advento da Lei 11.448 de 2007, a Defensoria Pública tornou-se um dos legitimados para a propositura da Ação Civil Pública, previstos no rol do artigo 5º da Lei 7347/85. O mesmo caminho foi reafirmado com a nova redação conferida ao artigo 4º, VII, da Lei Complementar 80, conferido pela Lei complementar 132, levantando polêmicas e acusações de desvio de função ou até mesmo de usurpação de campo de atuação do Ministério Público, que, por meio de sua Associação Nacional, CONAMP, ingressou com Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI 3943), impugnando a legitimidade conferida pela Lei 7347/85 à Defensoria Pública, argumento que pretendemos analisar.

Em verdade, a Defensoria Pública é concebida, pela Constituição Federal de 1988 (artigo 134), como ente estatal essencial para garantir o reequilíbrio de forças dentro de um país socialmente desigual. Na conjuntura de um Estado liberal, o poder do dinheiro supera o equilíbrio de forças idealizado por Montesquieu, maquiando o ideal democrático e pervertendo as próprias garantias de justiça, é imperioso que um novo sistema de freios e contrapesos, por meio de um Estado interventor, garanta a isonomia processual e o resguardo preventivo e repressivo de interesses juridicamente tutelados. O caminho para isso é a fortificação de entes públicos destinados à defesa dos menos favorecidos, em especial nas relações de consumo, onde o ímpeto do poder econômico se mostra com mais força. Nessa missão, surge a instituição da Defensoria Pública.

Assim, no presente artigo pretendemos demonstrar que a junção da ação civil com a Defensoria (ambas públicas e expressão desse caminho interventor do Estado garante), conferindo a esta legitimação para a propositura da primeira, se revela como reafirmação do fortalecimento do caminho democrático trilhado por nossa Constituição.

2. Qualificação da legitimação
Excepcionalmente, pode ocupar posição processual pessoa diversa do titular do direito deduzido em juízo. Há situações em que o autor irá comparecer em juízo em nome próprio, mas no interesse alheio. Não se trata nesse caso de representação, pois está a se falar em nome próprio e não como representante do titular do direito pretendido. Para que isso ocorra, deverá haver autorização legal em vista de “uma relação em que se encontre com o sujeito desse direito”. Esta relação que há com o titular constitui, segundo CHIOVENDA, o interesse, como condição da substituição processual, que difere do interesse processual como condição da ação. [1]

Em matéria de direitos difusos e coletivos, NELSON NERY assevera que é mais correto falar-se em legitimação autônoma para a condução do processo (selbstandige prozeBführungsbefugnis) e não em substituição processual.[2] Nesse diapasão, podemos afirmar que tanto na Ação Civil Pública brasileira, ou nos países de tutela coletiva por meio da ação popular (como é o caso de Portugal e Itália), ou ainda no sistema da Class Action do sistema anglo-saxão, a legitimação será ordinária, quando se tratar de interesses difusos e coletivos.

Não será este o caso quando dos interesses individuais homogêneos, cuja legitimação do demandante (private attorney general na expressão americana) será em representação processual dos interesses dos demais interessados. A própria razão de existir dessa categoria de direito, que qualifica um interesse essencialmente individual em um grupo coeso de interesses ligados por uma origem comum, é a possibilidade de tal representação atender aos anseios da política processual que justifica a criação da categoria.[3] Cumpre frisar, por outro lado, que tanto no sistema anglo-americano como nos sistemas de tutela por Ação Popular poderá haver uma legitimação híbrida, pois, na medida em que se legitima o próprio titular do direito lesado a representar os interesses da classe, este estará postulando por direito próprio e alheio.

No campo dos direitos individuais, a substituição processual é regime de exceção e como tal deve ser interpretado restritivamente nos limites e nas hipóteses da Lei. Teori Zavasckl observa que a exigência de autorização dos membros da associação, para que esta possa de fato postular de forma coletiva, confere a patente natureza de representação e não de substituição. Disso retira que a defesa de direitos individuais, em regra, depende de autorização, ou do titular do direito ou de expressa disposição legal. Conclui que é possível assim afirmar que, em se tratando de direitos individuais homogêneos, o regime da representação é a regra e o da substituição processual a exceção.[4]

3. Argumentos da CONAMP na ADI 3943
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3943 de relatoria da ministra Carmen Lúcia), no STF, para contestar a constitucionalidade da Lei 11448/07, que acrescenta no artigo 5º da Lei 7347/85 dispositivo que legitima a Defensoria Pública a propor Ação Civil Pública (Lei 7.347/1985 em seu artigo 5º).
 

Alega a impetrante que a possibilidade da Defensoria Pública propor, sem restrição, Ação Civil Pública “afeta diretamente” as atribuições do Ministério Público. A norma impugnada afrontaria também os artigos 5º, inciso LXXIV e 134, caput, da Constituição da República, que versam sobre as funções da Defensoria Pública de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos que não possuem recursos suficientes.

Argumenta a postulante que:
“a inclusão da Defensoria Pública no rol dos legitimados impede, pois, o Ministério Público de exercer, plenamente, as suas atividades, pois concede à Defensoria Pública atribuição não permitida pelo ordenamento constitucional, e mais, contrariando os requisitos necessários para a Ação Civil Pública, cuja titularidade pertence ao Ministério Público, consoante disposição constitucional” (fl. 5).

E pondera que, nos termos dos artigos constitucionais citados:
“a Defensoria Pública foi criada para atender, gratuitamente, aos necessitados, aqueles que possuem recursos insuficientes para se defender judicialmente ou que precisam de orientação jurídica. Assim, a Defensoria Pública pode, somente, atender aos necessitados que comprovarem, individualmente, carência financeira. Portanto, aqueles que são atendidos pela Defensoria Pública devem ser, pelo menos, individualizáveis, identificáveis, para que se saiba, realmente, que a pessoa atendida pela Instituição não possui recursos suficientes para o ingresso em Juízo. Por isso, não há possibilidade alguma de a Defensoria Pública atuar na defesa de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, como possuidora de legitimação extraordinária” (fl. 6).

A tese principal da Conamp, de que a legitimidade para a propositura da Ação Civil Pública pertence exclusivamente ao Ministério Público, não se sustenta após uma análise meramente superficial. Simplesmente ignora que, há muito tempo, já compartilhava de forma concorrente tal atribuição com outras instituições públicas da administração pública direta e indireta, entes estatais e até mesmo privados (como é o caso das associações), todos previstos na mesma Lei 7347/85 e no Código de Defesa do Consumidor (Lei 8078/90).parquet não exclui a de terceiros, ainda que nas mesmas hipóteses e mesmo que estipulada por norma infraconstitucional, conforme parágrafo primeiro do mesmo artigo.

Por outro lado, caso o legislador constitucional desejasse conferir legitimação exclusiva ao Ministério Público, teria colocado no inciso III, do artigo 129, que elenca dentre suas funções institucionais a propositura de Ação Civil Pública, a locução “privativamente”, como fez no inciso I para a ação penal pública, essa sim exclusiva do parquet.

Quanto ao argumento de que, para atuar, deveria comprovar estar agindo em favor daqueles que não têm condições de custear um advogado e demais encargos processuais e que isso seria impossível em razão dos lesados não poderem ser identificados, também não pode prevalecer. Primeiro, porque tal indeterminação de sujeitos só existe para os direitos coletivos e difusos e não para os individuais homogêneos. Em segundo lugar, porque a massa de pessoas carentes em nosso país é imensa e a dificuldade verdadeira é conseguir excluir a possibilidade de uma Ação Civil Pública não vir a beneficiar qualquer hipossuficiente jurídico-economicamente[5].
 

Por outro lado, têm argumentado doutrina e jurisprudência que o Ministério Público só tem legitimidade para propor Ação Civil Pública para tutelar direitos individuais homogêneos quando o interesse for indisponível, que, por sua vez, tem sido definido como aquele em que o titular não pode decidir, por si só, se pleiteará ou não seu direito em juízo, visto que há outra pessoa legitimada para tanto, tornando-se indivisível e impossível se determinar a dimensão jurídica parcial pertencente a cada um.
 

Ora, tendo em vista que, como já dito, nos direitos individuais homogêneos há sempre determinação dos sujeitos e divisibilidade do objeto, sendo perfeitamente identificável o dano sofrido por cada um, havendo plena capacidade dos sujeitos individuais pleitearem por si só tais direitos (do contrário não seriam individuais), não há de se falar, então, em legitimação do Ministério Público para a propositura de Ação Civil Pública quando se tratar da tutela de tais direitos.

4. Legitimidade do Ministério Público
A legitimação do Ministério Público para a propositura da Ação Civil Pública está prevista não só nas referidas leis, mas deriva da própria Constituição Federal, que prevê como uma de suas funções institucionais a promoção da Ação Civil Pública.[6]

É indiscutível a opção constitucional brasileira de se conferir legitimação ao parquet para a tutela coletiva. O mesmo não ocorre, todavia, em outros países do mundo. No direito Anglo-americano, da Common Law, sequer há legitimação ministerial para a propositura da chamada Class Action.[7] No ordenamento jurídico português, o regime legal sobre ação popular (que faz as vezes da ACP no sistema brasileiro) só atribui legitimidade ao Ministério Público nos casos em que ele represente o Estado, os ausentes, menores e demais incapazes (artigo 16, 1, da Lei 83/95) ou seja autorizado por lei específica a representar outras pessoas coletivas públicas (artigo 16, 2, LPPAP). Ainda, acrescenta a lei uma legitimação subsidiária, ao permitir a substituição do autor pelo Ministério Público no caso de aquele desistir da lide ou celebrar transação com o demandado ou assumir comportamentos lesivos dos interesses em causa (artigo 16, 3, LPPAP).[8]

Na Itália, VIGORITI, já na década de 70, tecia duras críticas à legitimação do Ministério Público, ponderando que a atribuição da tutela de interesses coletivos (lato sensu) ao Ministério Público é reflexo de uma doutrina jurídica liberal já superada, fundada na idéia de que o particular deteria legitimidade para a tutela de seus próprios interesses e aqueles que tocassem uma dimensão maior da esfera individual deveriam ser defendidos por um órgão do Estado. Para o autor, a agregação de interesses individuais não se encontra mais na esfera individual, mas é elemento novo, não condizente com o modelo em que se insere a concepção do Ministério Público. Atribuir competência da tutela e interesse coletivo ao Ministério Público significaria, na realidade, desconhecer a efetiva consistência do fenômeno e implicitamente negar alcance à novidade, recaindo na velha contraposição entre o privado, entendido como meramente singular, e o público, catalisador de tudo quanto transcende ao individual.[9]

Não pretendemos nesse artigo negar a importância ministerial no sistema de ações coletivas, muito menos desconsiderar a missão que lhe é atribuída por nosso texto constitucional, ainda que não com exclusividade. Contudo, devemos ressaltar a notória divergência doutrinária quanto à legitimidade do Ministério Público para tutela especificamente do interesse individual homogêneo em nosso ordenamento, com o único e exclusivo propósito de demonstrar a relevância da atuação da Defensoria Pública como supridora de tal lacuna.

Argumenta a doutrina que, para que o órgão ministerial seja legitimado, deve haver prova de interesse social relevante. Para Carvalho Filho, o parquet só terá legitimidade para a propositura de ACP, quando os interesses forem indisponíveis, já que a própria CF, em seu artigo 127, definiu como missão institucional do MP a defesa de tais direitos.[10] Quando o mesmo eminente doutrinador define o que seriam tais direitos indisponíveis, acaba por deixar clara sua posição de exclusão da legitimação do Ministério Público para a defesa de direitos individuais homogêneos. Assim, para Carvalho Filho, indisponível é aquele direito em que:

1) O titular não puder decidir, por si só, se deve, ou não, adotar as providências necessárias para sua defesa, e isso porque, queira ou não, haverá outra pessoa ou órgão a quem a ordem jurídica confere legitimação para fazê-lo;

2) tiver a qualificação de transindividual, porque sendo indivisível, não há como identificar a dimensão jurídica parcial pertencente a cada integrante do grupo, tornando-se, pois, irrelevante a vontade individual. [11]

Vejamos então que, se o Ministério Público só se encontra legitimado para a propositura de Ação Civil Pública quando o interesse for indisponível (e indisponível é aquele que tiver qualificação de transindividual, de natureza indivisível, em que o titular não possa decidir sobre a propositura de ação individual), impossibilitada estará sua intervenção como parte quando se tratar de interesses individuais homogêneos. Nestes o interesse é divisível, é possível identificar a dimensão jurídica parcial pertencente a cada integrante do grupo, características diversas das apontadas por Carvalho Filho.

Ora, tendo em vista que nos direitos individuais homogêneos há sempre determinação dos sujeitos e divisibilidade do objeto, não há de se falar em legitimação do Ministério Público para a propositura de Ação Civil Pública quando se tratar da tutela de tais direitos. Outrossim, o próprio Hugo Nigro Mazzili, respeitável membro do Ministério Público, com muitas obras publicadas sobre o tema, assevera:

"a defesa dos interesses de meros grupos determinados de pessoas (como consumidores individualmente lesados) só se pode fazer pelo Ministério Público quando isto convenha à coletividade como um todo (…); se é extraordinária a dispersão de lesados; se a questão envolve defesa da saúde ou da segurança dos consumidores; se a intervenção ministerial é necessária para assegurar o funcionamento de todo um sistema econômico, social ou jurídico. Não se tratando de hipótese semelhante, a defesa de interesses de consumidores individuais deve ser feita por meio de legitimação ordinária, ou, se por substituição processual, por outros órgãos e entidades que não o Ministério Público, sob pena de ferir-se a destinação institucional deste último."[12]


[1] CHIOVENDA, Giusepe. Instituzioni di diritto processuale civile, Tomos I e II. Napoli: Nicola Jovene & C. Editori, 1933, p. 230.

[2] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor’. São Paulo: RT, 1999, p. 249.

[3] Cfr. Cintra, Antonio Carlos Fontes. Interesses individuais homogêneos: natureza da coletivização dos interesses individuais. In Revista de direito do consumidor, no 72 (2009), pp. 9-40.

[4] ZAVASCKI, Teori Albino. Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos. In: Revista Forense, n° 329, 1995, p. 151.

[5] A democratização dos instrumentos de acesso à Justiça, antes de dividir, deve ser vista como um fator de soma na busca de uma sociedade mais livre, justa e solidária, efetivando dessa forma um dos mais importantes objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previsto na Constituição Federal.

A Defensoria Pública não busca a exclusividade na propositura da Ação Civil Pública, mas que, isto sim, essa ação seja um meio para atacar e corrigir as violações de direitos, em especial de direitos sociais, sofridas pela população carente.

 […]Texto publicado na Folha de São Paulo de 03/09/07 e disponível no site da ADPERJ: http://www.adperj.com.br/artigos_detalhes.asp?matID=%7BB557C1A7-2DF2-4924-AC01-A2E4F25F0EA1%7D . Acesso em 07/10/2007.

[6] “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (…)

III – promover o inquérito civil e a Ação Civil Pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;”

[7] O instrumento da Class action surgiu no direito inglês, através do Bill of Peace, no fim do século XVII. Com o advento do Court of Judicature Act, de 1873, a class action foi estruturada com vertentes mais modernas, passando a ter uso também nos demais países da common law. A regra 10 desse diploma dispunha que, havendo multiplicidade de partes comungando do mesmo interesse em uma controvérsia, uma ou mais partes podem acionar ou ainda terem autorização da Corte para litigar em benefício de todas as demais. Nos Estados Unidos, a Federal Rules of Civil Procedure, na esfera de competência dos Tribunais Federais americanos (atualmente de competência genérica), conferiu importância ao sistema da class action com o texto de sua regra 23.

[8] Apesar de não se tratar propriamente de Ação Popular, cumpre lembrar que o artigo 13, c da Lei 24/96 reconhece legitimidade ao Ministério Público para instaurar uma ação inibitória em matéria de consumo, sempre que sejam atingidos interesses individuais homogêneos, coletivos e difusos. Ainda o art. 26, n. 1, c, do Decreto Lei 446/85 confere legitimidade a esse mesmo órgão quanto à ação inibitória destinada a coibir o uso de cláusulas contratuais gerais.

[9] VIGORITI, Vicenzo. Interessi Collettivo e Processo, la legittimazione ad agire. Milão: Dott. A Giuffrè, 1979, p. 239-240.

[10] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública – Comentários por artigo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 127.

[11] Idem, p. 128.

[12] Hugo Nigro Mazzili. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 7ª ed.. São Paulo: Ed. Saraiva, 1995, p. 83.

 

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