Conselheiro tutelar

Entes municipais não podem outorgar direitos

Autor

  • Laura Mendes Amando de Barros

    é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris ex-controladora-geral do município de São Paulo e professora do Insper.

4 de abril de 2010, 6h40

A natureza da função de conselheiro tutelar e a inviabilidade de outorga de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários pelos entes municipais tem por justificativa primeira a inquestionável importância social da atividade dos conselhos tutelares, órgãos permanentes e estáveis, autônomos e não jurisdicionais de assessoramento do Juizado da Infância e da Juventude, que atuam junto a este como porta-voz da sociedade na incumbência de velar pelos direitos da criança e do adolescente.

Com relação à sua natureza jurídica, inquestionável se tratar de órgão público, vinculado diretamente aos entes municipais incumbidos da sua criação, ressalvada a ausência de personalidade jurídica.

Na esclarecedora lição de Liberati e Cyrino:

“Por ser criado por uma lei municipal, o Conselho fica vinculado, diretamente, ao Poder Executivo municipal, tornando-se, por conseguinte, um órgão público, devendo o órgão criador respeitar sua composição, estabilidade e autonomia funcional.

Embora a Lei 8.069/90 não seja explícita acerca da questão, a análise dos seus dispositivos permite concluir que o Conselho Tutelar, apesar de ser um órgão da Administração municipal, é destituído de personalidade jurídica, como é de praxe, tratando-se de órgão colegiado.

Com estas poucas considerações, já podemos concluir que a natureza jurídica do Conselho Tutelar é de uma instituição de direito público, de âmbito municipal, com características de estabilidade e independência funcional, desprovido de personalidade jurídica, que participa do conjunto das instituições brasileiras, estando, portanto, subordinado às leis vigentes no País.[1]

Tecidas essas considerações preliminares, passemos à discussão colocada propriamente dita, relativa à viabilidade de reconhecimento, ou criação, de benefícios que garantam aos exercentes dessa função – reconhecida como serviço público relevante pelo Estatuto da Criança e Adolescente[2] – o acesso a direitos sociais, trabalhistas e previdenciários de que gozam outras categorias de trabalhadores.

Nessa linha, cabe-nos tecer advertência de caráter formal, consistente no fato de que, pela natureza dos assuntos cuja disciplina se discute, a iniciativa para a propositura de eventual projeto legislativo seria exclusiva do Chefe do Executivo.

É o que se depreende da simples leitura do artigo 37, parágrafo 2º da Constituição Federal do Brasil:

São de iniciativa privativa do prefeito as leis que disponham sobre:

I – criação, extinção ou transformação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta, autárquica e fundacional;

II- fixação ou aumento de remuneração dos servidores;

III – servidores públicos, municipais, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria;

IV – organização administrativa, serviços públicos e matéria orçamentária;

V – desafetação, aquisição, alienação e concessão de bens imóveis.

E, é claro, a criação dos direitos em questão – aos quais devem corresponder obrigações e responsabilidades, vale dizer – deve se dar necessariamente por lei.

É o que determina o princípio da Legalidade, consagrado pela Carta Maior como um dos pilares do nosso Estado de Direito atual:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes o País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar e fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Até nesse aspecto, aparentemente pacífico, vislumbra-se espaço para a celeuma e a discussão.

Nesse sentido:

13. Sob o regime jurídico que lhes é próprio, a concessão de direitos a que eventualmente façam jus deve se conter em previsão legal específica, presentes os requisitos da prévia e suficiente dotação orçamentária, bem como da autorização específica na lei de diretrizes orçamentárias.

Excetuam-se destas condicionantes, entretanto, os direitos às férias remuneradas, acrescidas do terço (que permite repouso e lazer), e à licença gestante, direitos estes cujos fundamentos vinculados à família, lhes conferem caráter universal.[3]

O posicionamento supra transcrito, porém, não pode prosperar, sob pena de grave ofensa a uma das cláusulas pétreas de nosso ordenamento jurídico:

O princípio da legalidade pode ser sintetizado no aforismo: “a Administração Pública somente pode atuar em conformidade com a norma jurídica (secudum legem).”

O praeter legem e o contra legem não encontram lugar na atividade pública, ou seja, não podem justificar ou legitimar a atuação dos agentes públicos.

(…) Ao passo que, para os agentes públicos, a solução é inversa: a relação entre eles e a lei é de subordinação (de conformidade): é permitido ao agente público somente aquelas condutas que forem previamente autorizadas pela lei. A observância do princípio da legalidade é dever do agente público e prévia condição para ele atuar licitamente. A Administração Pública, portanto, é limitada em sua atuação pelo princípio da legalidade: o que as normas jurídicas não contemplam ou não permitem está vedado aos agentes públicos.[4]

Superados esses aspectos prejudiciais, cumpre-nos aprofundar a questão da natureza da função exercida pelos Conselhos Tutelares.

Suas atividades, em síntese, podem ser assim descritas:

(…) o Conselho Tutelar caracteriza-se por um espaço que protege e garante os direitos da criança e do adolescente, no âmbito municipal. É uma ferramenta e um instrumento de trabalho nas mãos da comunidade, que fiscalizará e tomará providências para impedir a ocorrência de situações de risco pessoal e social de crianças e adolescentes.

(…) o Conselho Tutelar tem a característica de ser permanente porque desenvolve uma ação continua e ininterrupta.

(…) Por ser autônomo, em matéria técnica de sua competência, o Conselho delibera, ou seja, toma decisões e age, aplicando medidas práticas sem qualquer interferência externa.

(…) o Conselho Tutelar é, também, um órgão da sociedade que dividirá com o Estado e a família a responsabilidade de execução da política de atendimento social da criança e do adolescente.[5]

De se notar, de plano, que o Estatuto da Criança e do Adolescente as qualifica como “serviço público relevante”.

E, em assim dispondo, já cria uma certa celeuma, vez que o próprio conceito de serviço público não é, ainda hoje, pacífico na doutrina.

Existem, nesse sentido, os defensores de um conceito mais amplo, como Mário Masagão, segundo quem seria “toda a atividade que o Estado exerce para cumprir seus fins”[6].

Nesse sentido, veja-se ainda:

(…) Amplo também é o conceito de José Cretella Júnior, para quem serviço público é “toda atividade que o Estado exerce, direta ou indiretamente, para a satisfação das necessidades públicas mediante procedimento típico de direito público.”

Hely Lopes Meirelles define o serviço público como “todo aquele prestado pela Administração ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade, ou simples conveniências do Estado.” O conceito é um pouco mais restrito do que o de Cretella Júnior, porque, ao fazer referência à Administração e não ao Estado, exclui a atividades legislativa e jurisdicional. No entanto, ainda é amplo, porque não distingue o poder de polícia do serviço público. Vale dizer, abrange todas as atividades exercidas pela Administração Pública. [7]


Há, ainda, o conceito estrito de serviço público, defendido inclusive pelo mestre Celso Antonio Bandeira de Mello, quem, conforme relata Maria Sylvia Zanella di Pietro:

(…) considera dois elementos como integrantes do conceito: o substrato material, consistente na prestação de utilidade ou comodidade fruível diretamente pelos administrados; e o substrato formal, que lhe dá justamente caráter de noção jurídica, consistente em um regime jurídico de direito público, composto por princípios e regras caracterizadas pela supremacia do interesse público sobre o particular e por restrições parciais. Para ele, “serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material fruível diretamente pelos administrados, prestado pelo Estado o por quem lhe faça as vezes, sob um regime de direito publico – portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais – instituído pelo Estado em favor dos interesses que houve definido como próprios no sistema normativo.”[8]

Maria Sylvia, aliás, traz um conceito próprio, construído a partir de uma análise evolutiva da questão, segundo o qual serviço público seria:

Toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que a exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente às necessidades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público.[9]

Importa frisar, portanto, que a qualificação de determinado serviço como público relevante nenhuma implicação necessária traz no que tange aos responsáveis por sua execução.

Muito pelo contrário, nada impede que o serviço público seja prestado indiretamente pelo Estado, de forma descentralizada que, portanto, não exija a participação de nenhum servidor púbico propriamente dito.

Afastadas, dessa forma, quaisquer conclusões que se pudessem pretender extrair do fato de a Lei qualificar a atividade dos Conselheiros Tutelares como serviço público.

Importante considerar se porventura assumiriam eles, ainda que em decorrência de outros fatores, a qualificação de agentes públicos – que, conforme esclarecedora lição de Maria Sylvia, seria “toda pessoa física que presta serviços ao Estado e às pessoas jurídicas da Administração Indireta.”[10]

Em explicação mais detida, e em maior consonância com a temática do presente estudo, tem-se:

(…) E ainda há as pessoas que exercem função pública, sem vínculo empregatício com o Estado.

Daí a necessidade de adoção de outro vocábulo, de sentido ainda mais amplo do que servidor público para designar as pessoas físicas que exercem função pública, com ou sem vínculo empregatício.

De alguns tempos para cá, os doutrinadores brasileiros passaram a falar em agente público nesse sentido amplo.[11]

Estabelecida a premissa de se tratarem os conselheiros tutelares de agentes públicos, cumpre ressaltar que não seriam eles, de forma alguma, servidores públicos estrito sensu, como adiante se verá.

Isso porque somente podem ser assim qualificados aqueles agentes que se enquadrem em uma das seguintes categorias:

1. os servidores estatutários, sujeitos ao regime estatutário e ocupantes de cargos públicos;

2. os empregados públicos, contratados sob o regime da legislação trabalhista e ocupantes de emprego público;

3. os servidores temporários, contratados por tempo determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público (art. 37, IX, da Constituição); eles exercem função, sem estarem vinculados a cargo ou emprego público.[12]

Ora, não podem os Conselheiros Tutelares ser considerados estatutários (titulares de cargos públicos, portanto), posto que não admitidos mediante concurso público; não gozam de empregos públicos, visto que ingressam no exercício da função a partir de eleição, e não de contrato de trabalho e, finalmente, não exercem função temporária, vez que não estão presentes, no caso, os requisitos constitucionalmente exigidos para a configuração de função pública estrito sensu:

A Constituição de 1988 restringiu ainda mais, pois, de um lado, previu o regime jurídico único (hoje não mais exigido, em decorrência da Emenda Constitucional nº 19/98), regime esse que poderia ser estatutário ou contratual, a critério de cada unidade da federação; de outro lado, previu, em caráter de excepcionalidade, para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público, a possibilidade de contratação por tempo determinado. Esses servidores exercerão funções, porém, não como integrantes de um quadro permanente, paralelo ao dos cargos públicos, mas em caráter transitório excepcional.

Portanto, perante a Constituição atual, quando se fala em função, tem-se que ter em vista dois tipos de situações:

1. a função exercida por servidores contratados temporariamente com base no artigo 37, IX, para a qual não se exige, necessariamente, concurso público, porque, às vezes, a própria urgência da contratação é incompatível com a demora do procedimento;

… 2. as funções de natureza permanente, correspondentes a chefia, direção, assessoramento ou outro tipo de atividade para a qual o legislador não crie o cargo respectivo; em geral, são funções de confiança, de livre provimento e exoneração; a elas se refere o art. 37, V, ao determinar, com a redação da Emenda Constitucional nº 19, que ‘as funções de confiança serão exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento.[13]

Registre-se, nesse ponto, porém, posicionamento do E. Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, que admitiu a nomeação de Conselheiros Tutelares na condição de ocupantes de cargos em comissão criados por lei:

ASSUNTO: Nomeação de membros do Conselho Tutelar e respectiva nomeação. Sentença 98/99. Considerando que os cargos em comissão foram instituídos por meio de lei municipal e que a matéria em apreço já foi apreciada nos autos do TC 800024/285/01, JULGO REGULARES as nomeações em apreço e as despesas dela decorrentes. Quito o responsável e determino o arquivamento dos autos. Publique-se.[14]

Assunto: apartado das contas anuais – exercício de 2003 (Nomeação de membros do Conselho Tutelar). Sentença. A colenda Primeira Câmara, à margem do parecer favorável à aprovação das contas do prefeito do município de Echarporâ, exercício de 2003, determinou a formação de autos apartados para tratar do pagamento do décimo terceiro salário e férias aos membros do Conselho Tutelar. A instrução processual apontou pagamento de vantagens intrínsecas aos servidores do município (décimo terceiro salário e 1/3 de férias) para Conselheiros Tutelares que exercem temporariamente função pública e não se submeteriam à relação trabalhista com a Administração. (…) Os autos revelam que mediante a lei municipal n. 1.152/97, foram criados 05 (cinco) cargos de Conselheiro tutelar em comissão com vencimento igual ao de menor valor pago ao funcionalismo. Assim, claro se afigura que as despesas em análise (décimo terceiro salário e férias pagas aos membros do Conselho Tutelar) encontram amparo na lei municipal bem como nos dispositivos constitucionais vigentes (Capítulo II), já que se tratam de cargos em comissão, o que lhes faculta o direito de perceberem mencionadas remunerações. Aliás, neste sentido as decisões proferidas nos processos TC 800024/285/01 – Conselheiro Eduardo Bittencourt e TC 800132/285/02 – Conselheiro Robson Marinho, referentes à análise dos procedimentos nos exercícios de 2001 e 2002, respectivamente. Assim, considero REGULAR a matéria apreciada nos presentes autos.[15]


Referido posicionamento guarda consonância com a recomendação constante da Resolução Conanda nº 75/01, segundo a qual

Embora não exista relação de emprego entre o conselheiro tutelar e a municipalidade que gere vínculo, a ele devem ser garantidos em lei os mesmos direitos conferidos pela legislação municipal aos servidores públicos que exercem em comissão, para cargos de confiança, neste caso vinculado ao Regime Geral de Previdência Social.

Ora, referida sugestão, data máxima vênia, e em princípio, não pode prevalecer, posto que dissonante do regramento jurídico pátrio, como acima se demonstrou.

Ainda que assim não fosse, trata-se de mera recomendação, a qual em momento algum teria o condão de vincular a Administração Municipal:

Ora, “recomendações”, ainda que provenientes de um Conselho Nacional, não podem impor regramento ao Município naquilo que respeita, em especial, à organização da vida funcional de seus servidores. Isto, de um lado, em razão da autonomia que a Constituição Federal defere ao ente municipal e, de outro, porque os chamados cargos em comissão são aqueles de livre nomeação e exoneração, “próprios para a direção, comando ou chefia de certos órgãos, onde se necessita de um agente que sobre ser de confiança da autoridade nomeante, se disponha a seguir sua orientação ajudando-a a promover a direção superior da Administração.”

Resta claro, a nosso ver, que a natureza do cargo em comissão difere substancial e profundamente da natureza do mandato de que são detentores os conselheiros tutelares. Estes podem ser equiparados aos agentes políticos detentores de mandato eletivo ou aos agentes de colaboração com o Poder Público, dado o caráter de transitoriedade de que se reveste sua atuação, visto que exercem um mandato por tempo determinado, para o desempenho de atribuições de excepcional e relevante interesse público definidas em lei federal – Estatuto da Criança e Adolescente.[16]

Com relação à inviabilidade de adoção dessa tese, já teve oportunidade de se manifestar essa Douta Procuradoria Geral do Município de São Paulo:

Verifica-se, portanto, que, conquanto percebam remuneração pelo exercício da função, com recursos provenientes do FUMCAD, os Conselheiros Tutelares não mantêm vínculo com a Administração Municipal.[17]

À parte dos servidores públicos, não podemos deixar de considerar, ainda, as categorias relativas aos agentes políticos e aos particulares em colaboração com o Poder Público.

Com relação aos primeiros, Hely Lopes Meirelles assim se manifestou:

São os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou delegação para o exercício de atribuições constitucionais.[18]

Considere-se, ainda, a posição de Celso Antonio Bandeira de Mello:

Agentes políticos são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, ou seja, ocupantes dos que integram o arcabouço constitucional do Estado, o esquema fundamental do Poder…. O vínculo que tais agentes entretêm com o Estado não é de natureza profissional, mas de natureza política. Exercem um múnus público. Vale dizer, o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas, e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da Sociedade.[19]

Ora, a função dos Conselheiros Tutelares, apesar de sua inquestionável importância e relevância, não integra o supra referido arcabouço constitucional estrutural do Estado brasileiro:

Os conselheiros tutelares prestam serviços que constituem um múnus público, porém, não se enquadram no conceito de agente político, vez que, apesar de “eleitos” pela comunidade para mandato de três anos, suas funções não compõem o esquema fundamental do Poder Público.[20]

E:

Portanto, a conclusão inarredável é da que os conselheiros tutelares não são agentes políticos, nem na visão ampla e tampouco na restrita do conceito. Sob o prisma reducionista, não são agentes políticos por não integrarem uma instituição fundamental para a conformação política do País, eis que o Conselho Tutelar não encontra previsão constitucional, estando vinculado ao organograma administrativo do Poder Executivo municipal. Também não se encaixa no conceito dilatado de agente político, pois não atuam com independência funcional, nem exercem funções constitucionais (…).[21]

Atente-se, ainda, para a esclarecedora lição de Maria Sylvia Zanella di Pietro:

São, portanto, agentes políticos, no direito brasileiro, porque exercem típicas atividades de governo e exercem mandato, para o qual ao eleitos, apenas os Chefes dos Poderes Executivos federal, estadual e municipal, os Ministros e Secretários de Estado, além de Senadores, Deputados, Vereadores. A forma de investidura é a eleição, salvo para Ministros e Secretários, que são de livre escolha do Chefe do Executivo e providos em cargos públicos, mediante nomeação.[22]

Excluída, assim, e da mesma forma, a viabilidade de sua consideração na categoria dos agentes políticos.

Há quem defenda serem os Conselheiros Tutelares particulares em colaboração com o Poder Publico, posto integrarem essa categoria “as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado, sem vínculo empregatício, com ou sem remuneração.”[23]

Nesse sentido, atente-se para as palavras de Alice Gonzalez Borges:

Que são, afinal, os conselheiros participantes de um órgão colegiado público? É preciso definir: são apenas particulares em colaboração com o Estado, não possuindo com este nenhum vínculo, quer político, quer de subordinação administrativa, gozando, por isso mesmo, de independência em suas manifestações.[24]

Daí resultaria, inclusive, a inviabilidade de outorga de quaisquer benefícios, tais como pretendidos, aos Conselheiros:

Prefeitura Municipal. Órgão Municipal. Conselho tutelar. Os conselheiros tutelares não têm vínculo funcional ou trabalhista com a Administração Municipal. São particulares colaborando com o Poder Público, não lhes sendo devidos quaisquer direitos trabalhistas ou estatutários, uma vez que não ocupam cargo ou emprego na Administração local, mas, sim, são eleitos para um mandato cuja duração – três anos – é determinada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.[25]

Tal entendimento, porém, e em princípio, não poderia da mesma forma prevalecer, tendo em vista a forma de ingresso desses agentes na função respectiva:

Por outro lado, não se enquadram na classe de particulares em colaboração com a administração, eis que se submetem à eleição e são empossados para exercício de mandato, podem receber remuneração do Estado mas não de outra fonte pelo serviço realizado e por fim, não realizam as funções por conta própria.[26]

Saliente-se, nesse ponto, que a supra referida Procuradoria Geral do Município de São Paulo já deixou claro o seu entendimento a respeito da natureza jurídica da relação entre a Administração Municipal e os Conselheiros Tutelares:

O que ocorre, com efeito, é que o Conselho Tutelar NÃO PRESTA SERVIÇOS AO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO. Também NÃO POSSUI VÍNCULO ESTATUTÁRIO COM O MUNICÍPIO. É agente honorífico, eleito pela comunidade para o exercício de relevante função pública e que, por determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente e de lei municipal, é remunerado pelo exercício de suas funções.


A remuneração é decorrência lógica da exigência de dedicação exclusiva em sua atuação, mas não implica – repita-se – em prestação de serviços ou em vínculo ou subordinação para com o Município, tanto que os mesmos sequer estão submetidos ao Estatuto dos Funcionários Públicos do Município de São Paulo.[27]

 

Assentados os pontos de divergência, tem-se que a eventual concessão dos direitos aventados pelos Conselheiros Tutelares não contaria, hoje, com qualquer fundamento jurídico-legal, motivo pelo qual não se lhe considera possível.

Não se pode vislumbrar o reconhecimento de tais benefícios ante a inexistência de lei que expressamente os reconheça:

Vistos, relatados e discutidos os autos. Acorda o E. Plenário do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (…), na conformidade das correspondentes notas taquigráficas, preliminarmente, conhecer do pedido de reexame e, quanto ao mérito, dar-lhe provimento, para o fim de, reformando-se o R. parecer recorrido, outro ser emitido, em sentido favorável à aprovação das contas da Prefeitura Municipal de Pirassununga, exercício de 1998, recomendando-se ao atual prefeito, cessar, se ainda estiver ocorrendo, o pagamento de décimo terceiro salário ao Conselho Tutelar dos Direitos da Criança e Adolescente se não houver amparo legal; (…) Publique-se.[28]

E:

Assunto: apartado para tratar do pagamento de 13º salário aos membros do Conselho Tutelar sem autorização legislativa ou vínculo empregatício.

(…)DECIDO. Acolho as manifestações unânimes dos órgãos técnicos. Efetivamente os pagamentos descritos não encontram amparo legal. Desta forma, JULGO IRREGULARES as despesas em análise, ocorridas durante o exercício de 1999, condenando o senhor (…) Prefeito à época dos fatos a recolher à Fazenda Pública Municipal, em valores de janeiro de 2003, a importância de (…).[29]

Tamanha discussão, esclareça-se, encontra escopo no fato de que a eventual disciplina legal a ser outorgada aos benefícios pretendidos pelos Conselhos Tutelares deste Município dependerá fundamentalmente do enquadramento que se lhes reconheça.

Repercussões haveria, inclusive, quanto à esfera de competências do Legislador municipal para tratar da matéria em razão, por exemplo, do disposto no artigo 22, I, XXIII da Constituição Federal, segundo o qual:

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico e do trabalho;

XXIII – seguridade social

Com relação a esse específico aspecto, observe-se:

A teoria subjetiva toma por base os tipos de trabalhadores a que se aplica o Direito do Trabalho. Não se pode conceber, porém, que qualquer trabalhador será amparado pelo Direito do Trabalho, como ocorre como o funcionário público e o trabalhador autônomo, que são espécies do gênero trabalhadores, não sendo assistidos por nossa matéria. O Direito do Trabalho vai estudar uma espécie de trabalhador: o empregado, que é o trabalhador subordinado ao empregador, que não tem autonomia em seu mister. As teorias objetivistas partem do ângulo da matéria a ser analisada e não das pessoas. O Direito do Trabalho estuda não o trabalho autônomo, mas o trabalho subordinado.[30]

Registre-se, por fim, o posicionamento por muito defendidos, segundo o qual, à parte de quaisquer discussões, a concessão de eventuais direitos ou benefícios tais como os ora considerados seria absolutamente inviável:

Por essa razão os conselheiros jamais terão vínculo trabalhista ou funcional reconhecido: são particulares em colaboração com o Poder Público, jamais comparecendo como servidores perante a Administração Pública.

Portanto, não há que se falar em férias, décimo terceiro salário, aviso prévio, FGTS ou quaisquer outros direitos conferidos aos trabalhadores, sejam públicos ou privados.

(…) Se, eventualmente, os conselheiros tutelares de mandatos já findos percebiam férias, décimo terceiro salário, cesta básica, tíquete-alimentação ou qualquer outro tipo de benefício ou vantagem concedida aos servidores locais, cumpre-nos advertir que os valores a esses títulos percebidos pelos conselheiros foram pagos indevida e ilegalmente, devendo ser restituídos aos cofres públicos por caracterizar enriquecimento ilícito daqueles em detrimento ao erário público.

Por outra parte, se tais despesas foram autorizadas pelo Chefe do Executivo, poderá esta autoridade ver-se enquadrada no crime de responsabilidade (…).[31]

A essa corrente, ainda não consideravelmente numerosa, em razão da própria novidade do tema, nos filiamos.

Não há, dessa forma, e considerado o ordenamento pátrio vigente, alternativa juridicamente viável para a outorga dos direitos trabalhistas e sociais aos conselheiros tutelares.

BIBLIOGRAFIA

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[1] Liberati, Wilson Donizeti e Cyrino, Públio Caio Bessa. Conselhos e fundos no estatuto da criança e do adolescente.  2. ed. São Paulo : Malheiros, 2003. p. 130.

[2] Art. 135 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

[3] TCE – RS. Parecer nº 75/97.

[4] PAZZAGLINI FILHO, Marino. Princípios constitucionais reguladores da administração pública. 2º edição. Atlas. Pp. 23-24.

[5] Liberati, Wilson Donizeti e Cyrino, Públio Caio Bessa. Conselhos e fundos no estatuto da criança e do adolescente. 2. ed. São Paulo : Malheiros, 2003 p. 103, 104, 105.

[6] MASAGÃO, Mário. Curso de direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1968. p. 252.

[7] DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. 19ª edição. Atlas. P. 111.

[8] DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. 19ª edição. Atlas. P. 111/112.

[9] DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. 19ª edição. Atlas. P. 112.

[10] DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. 19ª edição. Atlas. P. 499.

[11] DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. 19ª edição. Atlas. P. 499.

[12] DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. 19ª edição. Atlas. 19ª Edição. P 499.

[13] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. DIREITO ADMINISTRATIVO. São Paulo: Atlas. 19ª Edição. pág. 507-508.

[14] TCE-SP. Processo TC nº 800132/285/02. Relator Conselheiro Robson Marinho (31.08.2005).

[15] TCE-SP. Processo TC 800124/285/03. Relator Substituto de Conselheiro Sérgio Ciqueira Rossi. 20.05.2006.

[16] GASPARINI, Diógenes, Direito Administrativo, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1992, p. 201, in MOURÃO, Laís de Almeita. Parecer elaborado em 15.08.07, em resposta a consulta formulada ao CEPAM, in Boletim de Direito Municipal n. 04/2008, p. 270. Ed. NDJ.

[17] Parecer ementado sob o número 10.777.

[18] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 75.

[19] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO, pág. 230. Malheiros. 17ª edição.

[20] GARCIA, Elaine Maria Barreira. Conselho tutelar e a impossibilidade de concessão de licença remunerada para atividades políticas. In http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_infancia_juventude/doutrina/doutrinas_artigos/CONSELHEIRO.doc. Consulta em 17/02/2009.

[21] SILVA, Augusto Reis Bittencourt. Eleição para o cargo de conselheiro tutelar. Flagrante burla ao princípio do concurso público. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1708, 5 mar. 2008. Disponível em:

[22] PIETRO, Maria Sylvia Zanella. DIREITO ADMINISTRATIVO. São Paulo: Atlas. 19ª Edição. pág. 501.

[23] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. DIREITO ADMINISTRATIVO. São Paulo: Atlas. 19ª Edição. pág. 505.

[24]BORGES, Alice Gonzalez; DEMOCRACIA PARTICIPATIVA – REFLEXÕES SOBRE A NATUREZA E A ATUAÇÃO DOS CONSELHOS REPRESENTATIVOS DA SOCIEDADE CIVIL, in Boletim de Direito Municipal nº 05/2006, pág. 370; NDJ.

[25] MOURÃO, Laís de Almeita. Parecer elaborado em 15.08.07, em resposta a consulta formulada ao CEPAM, in Boletim de Direito Municipal n. 04/2008, p. 270. Ed. NDJ.

[26] GARCIA, Elaine Maria Barreira. Conselho tutelar e a impossibilidade de concessão de licença remunerada para atividades políticas. In http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_infancia_juventude/doutrina/doutrinas_artigos/CONSELHEIRO.doc. Consulta em 17/02/2009.

[27] Parecer ementado sob o número 11.338.

[28] TCE-SP. Processo nº 5924/026/98. Relator Conselheiro Renato Martins Costa.

[29] TCE-SP. Processo nº 800140/618/99. Relator Conselheiro Eduardo Bittencourt Carvalho. (21.02.04).

[30] MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 16ª edição. Atlas. P. 45.

[31] MOURÃO, Laís de Almeita. Parecer elaborado em 15.08.07, em resposta a consulta formulada ao CEPAM, in Boletim de Direito Municipal n. 04/2008, p. 272. Ed. NDJ.

[Título alterado em 6 de maio de 2010, às 14h10.]

Autores

  • Brave

    é procuradora do Município de São Paulo; especialista em Direito Público pela Escola Paulista da Magistratura e em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; mestranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – Largo São Francisco

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