O Câncer e o Paciente

Estado patina para conseguir gestão eficiente na saúde

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3 de abril de 2010, 7h20

Nos EUA ao ficar doente, buscar um tratamento é como ir ao mercado. Na feliz imagem do escritor Martin Amis, derrames, ataques cardíacos e todo tipo de enfermidade vêm acompanhados de uma etiqueta de preço e médicos agem como locadores de barracos em favelas ou criminosos que lucram com guerras. Para o cidadão norte-americano receber atendimento médico exige-se, nas palavras de John Updike, comprovantes a serem fornecidos de sua capacidade financeira de estar doente.

Assim, lá o paciente terá todo tratamento que puder comprar. Por isso que “todos os americanos têm seguro. Com a exceção dos milhões que não têm, é claro”. Diminuir o número destas exceções é a maior batalha política do presidente Obama, que luta para tentar aprovar no Congresso estado-unidense seu plano de reforma da legislação que visa permitir ao Estado americano custear o tratamento das pessoas sem acesso ao mercado privado de saúde. Tal plano sofre ferrenha e virulenta oposição, pois grande parte da sociedade norte-americana admira esse peculiar barbarismo, onde a desigualdade persiste até o leito de morte. Repudiam os americanos o que eles chamam de “Estado-babá”, pois o cidadão que não consegue ganhar dinheiro o bastante para comprar atendimento médico deve arcar com as consequências de sua “incompetência”. Eis um bom exemplo prático do que seja o famoso capitalismo selvagem.

Então, neste aspecto, o Brasil poderia ser comparado com um paraíso na Terra, pois desde 1988 a Constituição mais do que permitir, obriga o Estado brasileiro a fornecer tratamento universal e integral à saúde de toda população (artigo 196). O ordenamento jurídico brasileiro absolutamente não tolera que possam existir pacientes de primeira classe, atendidos pela rede hospitalar privada, e de pacientes de segunda classe, atendidos pelo Estado, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) ou mesmo desassistidos em razão da demanda reprimida.

Poderia, mas não é.

Principalmente no que diz respeito ao tratamento do câncer, a garantia da igualdade no acesso ao atendimento de saúde dada pela Constituição ainda é uma promessa, estando em curso uma deterioração progressiva das condições do atendimento ao paciente oncológico pelo SUS.

As políticas adotadas para a inclusão de procedimentos médicos no SUS, na área de oncologia, excluem o uso de drogas como anticorpos monoclonais, que, em várias indicações (como câncer de mama e linfoma não-Hodgkin), têm o seu uso consagrado há vários anos, com aumento significativo da taxa de cura. Como alertaram os especialistas Roberto Porto Fonseca e Enaldo Lima, a grande maioria dos procedimentos terapêuticos possíveis de ser utilizados têm defasagem de até 20 anos (!) com relação à melhor tecnologia disponível e e há um atraso de mais de 10 anos (!) na inclusão de procedimentos sabidamente curativos, que teriam salvo a vida de milhares de pacientes, a despeito de sucessivos alertas das Sociedades de Especialidades ao Ministério da Saúde.

Mesmo o atendimento inicial do paciente oncológico deixa em muito a desejar, pelo enorme atraso e, em grande número de casos, pela perda da possibilidade curativa com cirurgia ou radioterapia, dada a dificuldade para a realização de exames básicos ou que muitas vezes acarretam também mutilações possíveis de ser evitadas.

Como advogado militante na área de direito à saúde, tal discrepância é facilmente percebida no dia a dia em que surgem vários casos em que a receita médica não encontra resposta na rede pública ou no mínimo há uma grande demora no fornecimento do medicamento ou procedimento indicado, restando apenas o caminho da ação judicial para salvar a vida do paciente ou mesmo amputações.

Por isso seria cômico, não fosse revoltante, as críticas que são tecidas contra o trabalho dos advogados e da consequente resposta da Justiça sob argumento tão ao gosto dos burocratas que o cumprimento deste mandamento constitucional gera comprometimento dos gastos públicos e uma indevida intromissão do Poder Judiciário na gestão do orçamento pelo Poder Executivo.

A Judicialização da Saúde só existe porque o Estado brasileiro ainda patina quando se trata de efetuar uma uma gestão racional, eficiente e honesta da coisa pública.

Se a nação brasileira resolveu por meio da Constituição consagrar o direito à vida e à dignidade como valores supremos, não se pode solapá-los por meio de gestões de duvidosa eficiência e moralidade. É necessário que esses direitos venham a ser respeitados e implementados pelo Estado, destinatário do comando Constitucional. Se não o fez, se pretexta a retórica com argumentos destituídos de significação, como a impossibilidade orçamentária, assiste ao cidadão o direito de exigir do Estado, via Judiciário, a implementação de tais direitos, consistente no fornecimento de medicamentos atualizados que impedem vidas sejam ceifadas ou corpos sejam deformados.

Quem se posiciona contra as ações judiciais que determinam o fornecimento de tais medicamentos e procedimentos terapêuticos para o câncer que tenha então a coragem de, assim como fazem atualmente os americanos, dizer e estipular qual o preço de uma vida e assumir que com ela cobiça obter lucro. E depois que vá para os EUA fazer oposição ao governo Obama.

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