Liberdade em jogo

STF deve adotar rito que beneficia Battisti

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23 de setembro de 2009, 1h17

Não é atribuição do Supremo Tribunal Federal julgar o refúgio concedido pelo ministro da Justiça Tarso Genro ao italiano Cesare Battisti. A opinião é do constitucionalista e professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Celso Bandeira de Mello. Em parecer encomendado pelo advogado de Battisti e entregue nesta segunda-feira (21/9), o também constitucionalista Luís Roberto Barroso, Bandeira de Mello afirma que a concessão de refúgio político é ato discricionário e não poderia ser discutida pelo Poder Judiciário. Se o Supremo insistir em julgar o caso, segundo o professor, deve aplicar a mesma regra usada nos julgamentos de Habeas Corpus, ou seja, o presidente da corte não vota e o empate favorece o acusado.

Em 1993, Battisti foi condenado à prisão perpétua em seu país pela suposta autoria de quatro assassinatos ocorridos entre 1977 e 1979, período compreendido nos chamados “anos de chumbo” na Itália. O italiano integrou o movimento armado de esquerda, Proletários Armados pelo Comunismo, que se opunha ao regime então vigente na Itália.

O governo italiano pediu a extradição de Battisti depois que ele foi preso no Brasil em março de 2007. Ele está na Penitenciária de Brasília, onde aguarda a decisão do STF. Em janeiro deste ano, o ministro da Justiça, Tarso Genro, concedeu status de refugiado político ao italiano, sob a alegação de que ele não teve direito a ampla defesa no seu país de origem e de que um eventual retorno colocaria em risco a sua integridade física e o sujeitaria a perseguição política. A decisão de Tarso, que contrariou o entendimento do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), foi duramente criticada por autoridades italianas, que definem Battisti como “terrorista”.

Em defesa do refúgio, Melo defende que “naquilo que estiver em causa aspecto discricionário, só cabe juízo administrativo, não havendo espaço, então, para juízo de legalidade”. Para ele, os “fundados temores de perseguição”, condição para a concessão do refúgio político na Lei 9.474/97, não têm definição absoluta que se justifique indiscutivelmente, mas “enseja o prosperar de intelecções contraditórias”. Segundo o constitucionalista, isso impede o julgamento de extradição que corre na Suprema Corte.

No parecer, Mello justifica o “temor” pelo “rancor atualmente evidentíssimo em diversas manifestações provenientes de autoridades italianas”. “O que impressiona na verdade, além do fato de que foi julgado em período notoriamente de grande conturbação, no qual era extremamente exacerbado o sentimento de repúdio e repressão aos participantes do movimento de esquerda ao qual era filiado, é a circunstância de ainda hoje, décadas depois daqueles eventos, inexistir um clima de mínima serenidade em relação a eles”, afirma.

Mello é ácido ao citar um exemplo desse “rancor”. “Um parlamentar italiano, da base de apoio ao governo do primeiro ministro Berlusconi, como noticiam elementos acostados à consulta, manifestou-se em relação ao refúgio concedido afirmando: ‘Não me parece que o Brasil seja conhecido por seus juristas (entre os quais pelo menos nós brasileiros teríamos de incluir os ministros do Egrégio STF) mas sim por suas dançarinas’. Por mais críticas que se faça a nossos legisladores, dificilmente se imaginaria um parlamentar brasileiro, dizendo — salvo se inspirado por um fortíssimo ódio e desequilíbrio emocional — que os parlamentares italianos eram mais conhecidos pela presença da atriz "Cicciolina" em seus quadros do que pelo descortínio político.” Segundo ele, “esta foi apenas uma dentre muitas manifestações expressivas de um estado de espírito destemperado e flagrantemente desproporcional em relação ao caso”.

A lista de exemplos continua: “o ex-presidente da República Italiana Francesco Cossiga afirmou que ‘o ministro da Justiça do Brasil disse umas cretinices’, e que o presidente Lula era do tipo chamado na Itália de ‘cato-comunista’. O vice-prefeito de Milão propôs um boicote aos produtos brasileiros ‘como forma de pressionar o Brasil a reconsiderar a decisão’ de refúgio a Cesare Battisti. O vice-presidente de Relações Exteriores do Senado da Itália, senador Sergio Divina defendeu o ‘boicote turístico ao Brasil’. O ministro da Defesa Ignazio La Russa declarou que a decisão ‘coloca em risco a amizade entre a Itália e o Brasil’, ameaçou ‘se acorrentar à porta da embaixada brasileira em Roma’ e saiu à frente de uma passeata de protesto em Milão contra o refúgio. Aliás, o próprio presidente do Conselho de Ministros Italiano, Romano Prodi, enviou carta pessoal ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva encarecendo a importância ‘para o governo e a opinião pública da ltália’ que a extradição fosse deferida pelo Supremo Tribunal Federal”. Para Mello, esses são exemplos claros de “descontrolada fúria”.

No entanto, para o relator do processo de Extradição contra o italiano ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, o ato de concessão de refúgio é vinculado a uma lei, daí a possibilidade de o Supremo intervir. “O reconhecimento da condição de refugiado tem ato vinculado aos requisitos da lei. A decisão do Ministério da Justiça não escapa ao controle jurisdicional dos requisitos de legalidade”, disse.

Peluso afirmou em seu voto que o refúgio político só vale se partir de uma premissa legal, e isso não impede o Supremo Tribunal Federal de analisar um caso. Segundo ele, o ato do Ministério da Justiça foi ilegal, já que não foi provada a perseguição política alegada por Battisti. “A insinuação de que o estado italiano, para reprimir o movimento, se valeu de leis de exceção não pode ser considerada causa atual de perseguição. O regime na Itália não é arbitrário hoje”, disse em seu voto.

Se o Supremo continuar o julgamento, segundo o professor, deve aplicar o mesmo procedimento adotado nos Habeas Corpus, ou seja, o presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes, não votaria, e o empate favoreceria Battisti. O raciocínio pode livrar o italiano da extradição, já que o julgamento foi interrompido no dia 10 de setembro por um pedido de vista do ministro Marco Aurélio. Durante o julgamento, ele deu sinais claros de votar contra a Extradição. Caso isso aconteça, a votação empata em quatro votos para cada lado, restando apenas a manifestação do ministro Gilmar Mendes.

A regra, prevista no artigo 146, parágrafo único, do Regimento Interno do STF, teria de ser aplicada por uma questão de interpretação, segundo o professor. “Seria rnanifestarnente descabido que, existindo um empate quanto à questão de confirmar ou infirmar o refúgio, fosse negada a opção favor libertatis, suposta no parágrafo único do art. 146 do RISTF, pois em tal caso dita negativa traria implicada consigo não apenas a perda da liberdade de um extraditando, mas além disto uma perda até mesmo maior do que a admitida pelo direito brasileiro: a prisão perpétua.”

Batalhão de peso
Battisti já havia ganhado o reforço do jurista Paulo Bonavides em sua defesa. Segundo o professor de Direito Constitucional, o italiano sofre perseguição do governo italiano, o que justifica a sua permanência no Brasil como refugiado político. Segundo o professor, o primeiro julgamento feito na Itália contra o ex-militante de esquerda não envolvia agressões físicas, mas apenas atos “subversivos”. Foi só depois que Battisti fugiu da prisão que foi novamente julgado, à revelia, e condenado por quatro assassinatos, com base em um depoimento de outro ex-militante beneficiado pela delação premiada.

“As circunstâncias do segundo processo impediram uma defesa adequada, havendo forte suspeita de que a sentença seja injusta. Condenar uma pessoa que já fora anteriormente julgada – sem ter sido sequer acusada de homicídio – em um segundo julgamento, baseado em delação premiada e sem que se tenha defendido pessoalmente, parece-me inaceitável”, diz Bonavides.

O jurista também defende não haver culpabilidade passados trinta anos do caso. “Passadas as décadas, no entanto, já não há mais lugar para esse acerto de contas com o passado, uma espécie de revanche histórica contra os perdedores da guerra fria”, opinou. “A reação exacerbada da Itália bem revelam que, ainda hoje, passados tantos anos, os ânimos políticos continuam exacerbados e os riscos de perseguição ainda subsistem.”

Clique aqui para ler o parecer.

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