Advogados e doutores

O doutor acadêmico é diferente do doutor profissional

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15 de setembro de 2009, 11h27

É impressionante como o tema ainda suscita polêmica diante do seu emprego multissecular e da clareza do uso na realidade do dia-a-dia. Impressiona mais ainda verficar como certos pesquisadores tendo obtido o seu título de “doutor” científico, agarram-se a ele passando a ostentá-lo e arvorar-se como únicos legitimados a seu uso, e asim voltam-se contra a realidade, querendo corrigir pessoas, ir contra vários dicionários, com a pretensão de impor-se a todos numa jactância arrogante e irrealista. Não querem o título só para si, mas curiosamente querem interditá-lo a outrem.

Todos dizem não se importar, mas se importam. Natural num tempo de pessoas acharem-se como “estampados num outdoor”… e talvez estejam mesmo, ou pelo menos em algo próximo, está aí o Orkut, Facebook etc.

Aliás, num epsódio, a meu ver, surrealista, o Conselho de Enfermagem editou a Resolução COFEN-256/2001 que autoriza o uso do título de Doutor pelos enfermeiros (http://www.portalcofen.gov.br/2007/materias.asp?ArticleID=7087&sectionID=34) . Um dos fundamentos da norma é que não poderia haver diferenciação entre os profissionais de saúde ! Ora, ora.

Votando ao tema, a despeito do apurado artigo publicado há alguns dias por um eminente articulsita, dizer que o tratamento “doutor” é privativo de quem efetuou o doutorado é inverter a realidade e ancorar-se em um entendimento raso, confundido as coisas. Pior ainda é chamar de “acepção ténica” uma utilização em relação a outra. Só se for técnica para titulação de pesquisa, o que é importante e obrigatório apenas para os pesquisadores.

A palavra, obviamente e como tantas outras, comporta mais de um significado.

Embora ligados pela idéia originária de autoridade para ensinar, o doutor do grau científico nada tem a ver com o doutor aplicado a profissionais, e este veio primeiro do que aquele. Esse termo é a versão latina do tratamento dado aos que conheciam ou ensinavam religião.

De um modo geral, o termo “doutor” empregado a advogados, juízes e promotores decorre de tradição, multissecular tradição. Surgiu na Europa aplicado primeiramente aos profissionais do Direito e somente com o decorrer do tempo foi estendido também aos médicos. O paralelo com os doutores da religião advém da idéia não só de conhecimento mas de autoridade nesse conhecimento.

O surgimento dessa história dá-se no Século 11. Com a complexidade crescente do comércio e das relações sociais nas cidades européias e principalmente italianas, começaram a despontar profissionais juristas, encarregados de interpretar as leis, costumes e regras à luz da compilação de textos autorizados do Direito Romano, e eles ensinavam essa sua ciência aos que queriam segui-la. Esses primeiros juristas apresentavam-se sob o titulo de “Doctor Legis”.

Podemos lembrar um trecho da peça “Mercador de Veneza, de Shakespeare (há outras passagens): his letter from Bellario “doth commend / A young and learned doctor to our court . A peça escrita provavelmente em 1594, teria como fonte o conto Il Pecorone de 1558; o jurista que soluciona o caso é tratado de Doctor ou Civil Doctor.

Na passagem do Século 11 a 12, como assinalam tratadistas, os primeiros títulos de doutor foram reconhecidos para juristas praticantes pela Universidade de Bolonha, primeiramente a Inerius, depois para os chamados “Quatro Doutores”, a saber Martinius, Bulgarus, Hugo e Jacobus, todos no Século 12 (entre outros textos de referência, ver http://www.cronologia.it/mondo38o.htm) .

Esses títulos não correspondiam ao equivalente da pesquisa moderna (mestrado ou doutorado), mas apenas de habilitação tanto à docência quanto à prática, visando principalmente à entrada do titulado para uma corporação de ofícios ou guilda (Guild, no texto original – conforme Reinildis van Ditzhuyzen, em http://ugle.svf.uib.no/svfweb1/filer/1309.pdf – esse texto é um estudo sobre o projeto Bolonha, tendente a unificar o os programas de doutoramento na Europa). Logo, tanto a Universidade de Bolonha quanto de Paris passaram a apresentar alguma sistemática para reconhecer o titulo.

Todavia, a idéia de doutorado enquanto pesquisa, tão cara a alguns, somente surge em Berlim, na Universidade de Humboldt em 1810 (http://ugle.svf.uib.no/svfweb1/filer/1309.pdf, pg. 2) .

Para os advogados brasileiros, nossas raízes remontam, obviamente, a Portugal. Podemos identificar que em 1400, o mítico jurisconsulto português João das Regras foi nomeado reitor na Universidade de Coimbra e já ostentava o titulo de doutor em leis, pela Universidade de Bolonha. Logo tratamento de doutor estendeu-se aos desembargadores, juízes e advogados em geral.

No Brasil, a literatura do século 19 , passando de Machado Assis até José de Alencar, reflete a prática do tratamento de doutor ao advogado.

Prática essa que diuturnamente se confirma até hoje, em bancas, congressos, tribunais e perante o público em geral. Basta ler as atas dos tribunais.

Um conhecido texto do advogado Júlio Cardella afirma que a matéria foi objeto de normatização: o Alvará Régio de D. Maria 1ª, a Pia. Verdadeiro ou não, isso só reflete a idéia de prática secular (http://www.vrnet.com.br/oabeunapolis/artigo-doutor.html). Esse autor cita Pedro Nunes (Dicionário de Tecnologia Jurídica):

BACHAREL EM DIREITO – Primeiro grau acadêmico, conferido a quem se forma numa Faculdade de Direito. O portador deste título, que exerce o ofício de Advogado, goza do privilégio de DOUTOR (aos que gostam de pesquisar citamos as fontes dessa definição: Ord. L. 1° Tit. 66§42; Pereira e Souza, Crim. 75. e not. 188; Trindade, pág. 157, nota 143 in fine, e pág. 529 § 2°; Aux. Jur., pág. 355 Ass93)
. O doutor Júlio Cardella é enfático: "esse titulo constitui adorno por excelência da classe advocatícia".

Aliás, isso não ocorre só no Brasil, por longa tradição e deferência especial é costume em muitos países dar-se um título diferenciado a juristas, seja no trato com a população seja nos tribunais, e esse título nem sempre de doutor, como veremos.

Ostentam o titulo de doutor os advogados em Portugal, Argentina, Chile, Áustria, e Uruguai, entre outros.

Aliás, em Portugal assinalam dicionaristas autorizados, como Cândido de Figueiredo, que esse titulo estende-se aos licenciados e bacharéis em geral – embora a praxe popular costume reserva-los apenas advogados e médicos.

Na Itália o titulo de doutor é outorgado a todos formados nas faculdades, o que leva os advogados a adotarem como titulo diferenciador a própria palavra Avvocato (v.g. Avv. Fulano – como atesta a deliciosa obra Eles, os juízes, Vistos por Um Advogado, de Piero Calamandrei), ainda na Itália há, para pesquisadores, o título de “dottore di ricerca”.

Na França, Mônaco, Canadá francófono e Bélgica o titulo dado aos profissionais do direito (avocat ou avoué) é “Maître” (“mestre”).

Nos Estados Unidos, em juízo, o titulo usual a advogados na maioria das cortes é “Counselor”, externamente adotam “Esquire” (algo semelhante a “Cavaleiro” ou “Escudeiro”, um certo título de nobreza). Entretanto, atualmente as escolas de direito americanas concedem o titulo de “Juris Doctor” ou “Doctor of Jurisprudence” (J.D.) a todos os seus formados, que não se confude nem equivale o “Ph.D” (este mais equivalente ao nosso doutorado em pesquisa) .

Embora não seja absolumente usual o tratamento de doutor para advogados, a American Bar Association modificou sua opinião no sentido de que os advogados podem usar tal título (http://www.abanet.org/media/youraba/200709/ethics.html)

A ritualística, titulação e formalidades históricas na Inglaterra, País de Gales, Hong Kong e assemelhados, dispensam maiores comentários e fazem parecer simplório o tratamento de doutor, já que muitos deles são nobremente chamados de “Sir” ou “Lords”.

Como expus no início desse artigo, é diferente esse tratamento profissional de doutor, fundado em multissecular prática, e o titulo científico.

Maria Helena Diniz no seu Dicionário Jurídico, indentifica duas acepções para a palavra “doutor” (1) a de tratamento honorífico a juízes, promotores, delegados, advogados e médicos, e (2) titulo daquele que defendeu tese de doutorado em universidade.

Ou seja, o melhor entendimento é de que a titulação científica difere do título profissional (seja ele originário no costume, de caráter coloquial ou na própria denominação da láurea de graduação, como é o caso da Itália e Estados Unidos).

Como se está vendo, essa diferenciação repete-se nos demais paises comentados, distinguindo o tratamento dispensando a profissionais (sejam médicos, advogados ou demais profissionais, aonde a praxe existir) e o conferido como titulo científico.

No Brasil, matéria não deveria suscitar grande debate, diante da imensa prátida e tradição acima apontada. Nem deve-se confundir o doutorado de pesquisa com o título dado a profissionais.

De qualquer maneira, reconheço que o assunto não deveria ter grande relevo, mas convém tratar por dois motivos: o primeiro é relembrar aos iniciantes a importância e força da história e da tradição, não só no Brasil mas em todos paises do mundo, principalmente esta como fonte de Direito. O segundo é constatar como estamos perdendo memória, ignorando a necessidade de pesquisar, o que nos tem levado a manter debates superficiais e, portanto, inconsistentes, ainda mas para quem deveria ser, ou gaba-se de ser, pesquisador.

Como já disse antes, não tenho o hábito de exigir esse tratamento por parte de ninguém, nem de funcionários, colegas ou estagiários, ou mesmo de clientes, na verdade, até dispenso inclusive o tratamento de senhor. Sempre achei que, num breve futuro, quem sabe não iríamos como o tempo dispensar os rídiculo tratamentos de “excelência” , “meretíssimo” , etc , mas, pelo contrário, hoje temos até “desembargadores regimentais”.


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