Justiça no cárcere

Promotor questiona competência dos mutirões

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17 de outubro de 2009, 8h57

Está muito claro para o promotor Mozart Brum Silva, do Ministério Público de Goiás, que os mutirões promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça — para agilizar julgamento de processos judiciais no país — ferem o princípio do juiz natural. A opinião de Silva veio a público depois que deu seu parecer num pedido de Habeas Corpus para libertar um preso. Detalhe: o parecer foi solicitado por um juiz convocado para atuar no mutirão do CNJ, que ainda está em andamento no estado.

O promotor registrou em seu parecer contrário ao mutirão que a decisão deveria ser “proferida pela juíza titular da 10ª Vara Criminal daquela Comarca, juíza Maria das Graças Carneiro”. Ele disse que não há qualquer ato conferindo competência ao subscritor do despacho, no caso o juiz convocado.

“Para tanto, sendo certo que, não estando aquela magistrada em gozo de férias ou qualquer outro afastamento, tampouco havendo designação para o ilustre ‘juiz substituto’ em mutirão atuar de forma genérica, em auxílio àquela, o que seria bem vindo, não há como reconhecer a sua competência para apreciar este requerimento. Do contrário, haverá verdadeiro juízo de exceção, o que é vedado pela Constituição Federal, uma vez que na espécie, há a escolha de determinados processos para serem apreciados por um órgão anômalo ao Judiciário e desprovido de competência legal", escreveu o promotor ao se referir ao CNJ.

Não é a primeira vez que o princípio do juiz natural é invocado para questionar a atuação de mutirões judiciais. Em 2005, o presidente do TJ do Amazonas recorreu ao CNJ, com procedimento administrativo, para questionar a força-tarefa feita pelo Conselho para julgar processos. Na consulta, o presidente fez a mesma argumentação: o mutirão fere o principio do juiz natural e traria como conseqüência um juízo de exceção. O Conselho, baseado em jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, entende que não.

Na época, o então conselheiro Paulo Schmidt registrou que nos mutirões não se cogita o afastamento de juízes titulares das varas beneficiadas. Ao contrário, esses titulares somam seus esforços aos do grupo de magistrados designados para o auxílio e “não raro os coordena”. Também destacou que o ato de designação não vincula quaisquer dos juízes a determinado processo.

Já no Espírito Santo, estado onde o CNJ encontrou presos em contêiner durante o mutirão carcerário, alguns advogados também questionaram a validade das decisões proferidas por juízes substitutos. As queixas não foram registradas formalmente. Vale destacar, ainda, que nos dois meses de mutirão naquele estado 578 presos foram colocados em liberdade por ter algum tipo de benefício vencido. Um deles, estava preso há 11 anos sem ir a julgamento. Mesmo com sua formalidade jurídica contestada, o mutirão já comprovou sua efetividade.

Caso semelhante, discutindo o princípio do juiz natural, foi encaminhado ao Plenário do Supremo Tribunal Federal, que está incumbido de pacificar o tema. No pedido de Habeas Corpus (HC 6.477-SP), a defesa pede a nulidade de julgamento  contestando a composição da câmara de julgamento do réu, composto por juízes de primeira instância convocados para atuar no Tribunal de Justiça de São Paulo. O pedido está em tramitação. O ministro Ricardo Lewandowski é o relator.

A Procuradoria-Geral da Republica já deu parecer contrário ao pedido. Argumenta que, de acordo com entendimento do próprio Supremo, o procedimento de substituição dos desembargadores no Tribunal de Justiça de São Paulo, é compatível com a Constituição e “revela-se plenamente convivente com o princípio fundamental do juiz natural”. O precedente citado pelo PGR está num voto do ministro Celso de Mello de 1992.

Ponto e contraponto
O promotor Mozart Brum falou à ConJur e voltou a criticar os mutirões. Segundo ele, é prejudicial o fato de os juízes convocados chegarem diretamente nas varas criminais, antes de verificar a situação dos presos in loco. “Eles [juízes] foram lá para pegar os processos com objetivo específico de conceder liberdade. A legislação não tem essa previsão legal. O juiz natural, antes de o processo existir já está designado para o processo. O que o CNJ faz é exceção e fere a Constituição”, reclamou.

Brum defende que os juízes do estado sabem muito bem o motivo pelo qual os presos provisórios não foram libertados e que a interferência deste tipo é desnecessária. Ele também reclamou que não foi assinado um ato conjunto do TJ goiano com o CNJ, solicitando a força-tarefa. “Esse ato não existe e se existisse seria ilegal. É como se o juiz caísse de pára-quedas para atuar num processo. Ele atua como se fosse um corregedor”, protestou ao dizer que os juízes convocados para o mutirão pegaram todos os processos e simplesmente começaram a despachar. Para ele, os designados não têm competência para falar no processo.

Silva explica que é uma questão de competência: “uma coisa é pegar o processo para analisar, a outra é começar a decidir”. Por fim, o promotor destacou que se essa forma de atuação for permitida, se permitirá que amanhã qualquer juiz pegue um processo e decida nele. “Temos regras que definem o princípio do juiz natural justamente para garantir a imparcialidade e independência do magistrado”, argumentou. O promotor só não faz menção em suas alegações à situação dos cidadãos presos indevidamente e que tiveram seus direitos resgatados pelos mutirões.

O Contraponto
O juiz auxiliar da presidência do CNJ, Erivaldo Ribeiro do Santos, rebate todas as críticas ao trabalho desenvolvido pelo Conselho. Ele diz que as reclamação do promotor não procedem e que sua tese não tem menor cabimento, pois a designação de juiz é histórica. Logo, não contraria a Constituição Federal.

Ele contesta a afirmação de que a força-tarefa do CNJ tem como único objetivo  despachar os processos. Erivaldo destaca que são feitas inspeções nos presídios também. “É assim [visitando as varas] que descobrimos se existem presos com benefícios vencidos”, destacou. Ele conta que no estado goiano foram encontrados 100 casos de penas vencidas.

O juiz cita outro caso no Espírito Santo em que um inquérito tramitou três anos sem denuncia do Ministério Público. Ate hoje, o CNJ já finalizou seis mutirões e existem 15 em andamento. Já foram concedidos 20 mil benefícios, sendo que em 12 mil foram concedidas liberdade provisória. Foram analisados 67,3 mil processos. Em percentual (liberdade/processo) o registro é de 17,8%.

Jeferson Heroico
Tabela - Balanço Geral dos Mutirões - Jeferson Heroico

Erivaldo conta que a tônica que se repete em todos os estados é carência de Defensoria e falhas do MP, da Justiça e do sistema carcerário. “A proposta do CNJ não pode ser vista como paliativa, temos projetos para acompanhamentos do trabalho realizado pelos mutirões e também digitalização de todas as varas criminais para facilitar o processo de execução penal. O Conselho também tem projeto de reinserção social”, diz.

O juiz também lembrou que o Conselho Nacional do Ministério Público trabalhará junto com o CNJ nos mutirões carcerários. O Plenário do CNMP aprovou a proposta de integração no dia 29 de setembro para trabalharem na revisão periódica das prisões em todo o país. “Isso é prova que a tese do promotor não tem pertinência”.

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