Duas medidas

O pré-sal, o inferno e a guitarra na dívida ativa

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16 de outubro de 2009, 12h57

Antes que o leitor se pergunte, apresso-me em esclarecer que o pré-sal, o inferno e a guitarra só entram nesta história para dar liga, como a gema de ovo na receita de bife tártaro. Assim, se seu interesse for apenas geológico, religioso ou musical, pode abandonar a leitura, pois meu assunto é o desprezo ao bom contribuinte.

É que o estado de São Paulo é titular de uma reserva que, pela grandiosidade de seus números e pela dificuldade de sua exploração, bem que pode ser equiparada às jazidas de petróleo acumuladas nas profundezas do pré-sal, que nossa maior estatal recentemente descobriu e, espera-se, em breve comece a explorar. Essa reserva chama-se dívida ativa.

Para o leitor não familiarizado com questões jurídico-contábeis, explico que a dívida ativa é como o inferno, ou seja, o lugar para onde vão os maus: contribuintes no primeiro caso, cristãos no segundo. Mas é um inferno à brasileira.

Na teoria, quanto o contribuinte tem seu débito inscrito no cadastro da dívida ativa, torna-se passível de uma cobrança forçada, feita judicialmente dentro de um processo chamado execução fiscal.

Assim como o pecador do inferno brasileiro não se vê atormentado pelos rigores do tratamento que, em tese, sua condição exigiria para expiação dos pecados, também o devedor não se vê seriamente ameaçado pela cobrança executiva. E tanto não é que o governo tem procurado fugir da cobrança judicial valendo-se de outros meios coercitivos, como o protesto de Certidão de Dívida Ativa e a inclusão do nome do contribuinte faltoso no Cadin, após o que não mais poderá ele transacionar com a Administração.

Paralelamente ao emprego do protesto da CDA e da inscrição no Cadin, a partir do Convênio Confaz 104/02, o governo começou a gestar uma inovadora — e altamente desrespeitosa para com os contribuintes pontuais —, ideia para tornar possível a exploração da grande reserva financeira que é a dívida ativa, acumulada ao longo dos anos nas profundezas da contabilidade pública. Trata-se da securitização.

E aqui entra a tal da guitarra aludida no título do artigo, não como instrumento musical como é vulgarmente conhecida, mas na acepção, hoje em desuso, mas dicionarizada, de “máquina de fazer dinheiro”. Não que eu esteja acusando o governo de falsificar moeda, não é isso; apenas tomo por empréstimo a figura da guitarra para melhor enfatizar a facilidade com que, na visão governamental, essa engenhoca financeira fará jorrar dinheiro em suas burras, sem enfrentar todos os duros percalços das execuções fiscais.

O assunto agora já migrou para o Projeto de Lei 749/09, enviado pelo governador à Assembleia Legislativa e aprovado em 23/09, com o propósito de autorizar o Poder Executivo a ceder, a título oneroso, os direitos creditórios originários de créditos tributários e não-tributários, objeto de parcelamentos administrativos ou judiciais. O direito a esse fluxo financeiro passa a ser tratado como direito autônomo e distinto do direito ao crédito tributário: um autêntico malabarismo argumentativo.

O mecanismo dessa securitização consiste em repassar, mediante cessão onerosa, a sociedade de propósito específico, ou à Companhia Paulista de Parcerias – CPP, ou, ainda, a fundo de investimento em direitos creditórios, o fluxo financeiro assegurado pelos parcelamentos acima aludidos, para posterior captação de recursos em dinheiro de investidores interessados na aquisição de valores mobiliários emitidos com suporte nesse mesmo fluxo que, se é de natureza certa, é de entrada imprevisível, representando, portanto, lastro com a consistência da fumaça.

Ademais, a base que servirá à securitização vem do programa de parcelamento incentivado (PPI), pacote de favores fiscais pelo qual o governo abriu mão de boa parte dos encargos financeiros sobre as dívidas tributárias e ainda dividiu-a em 120 prestações. Esse generoso desconto de dívida que já deveria estar paga e quitada há muito tempo é um desrespeito ao contribuinte pontual que muito suou para honrar seu compromisso para com o fisco.

Uma vez aprovado o projeto, nada impede que a técnica seja reutilizada, e com certeza o será. Ou seja, o governo descobriu um modo de por em movimento a ciranda que fará jorrar dinheiro vivo em suas burras à custa de receita diferida e incerta, comprometendo o orçamento dos anos vindouros em detrimento das futuras administrações.

Então, a pergunta que fica é: valerá a pena ser pontual no cumprimento das obrigações tributárias para com o estado de São Paulo? Nada disso. O governo estará incentivando a interrupção dos recolhimentos espontâneos, essa é que é a mais pura verdade.

A sociedade deve inquietar-se com o fato de que, montada essa guitarra, estará definitivamente pavimentado o caminho para novas reedições do programa de parcelamento incentivado.

Com operações dessa natureza, o governo se exime de investir no aprimoramento da cobrança judicial para torná-la o verdadeiro temor daqueles que invadem a seara da dívida ativa. Adeus ao melhor aparelhamento dos órgãos de cobrança da Procuradoria-Geral do Estado.

Inspirado por simples necessidade de caixa, sempre a pior conselheira, o governo impôs ao projeto a tramitação em regime de urgência e atropelou a chance de realização de debates mais aprofundados sobre a polêmica propositura, de modo a que prevaleça sua decisão unilateral.

Pois é, mais uma vez prevalece aquele velho adágio: façam o que eu digo, mas não façam o que eu faço, pois não foi justamente em nome do amplo debate que nosso governador defendeu a derrubada da urgência na tramitação dos projetos do pré-sal?

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