Direitos humanos

O discurso do ódio e a liberdade de expressão

Autor

  • Fábio Martins de Andrade

    é advogado doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.

14 de outubro de 2009, 8h51

Em viagem recente ao Canadá pincei uma manchete que continha chamada sobre delicada decisão tomada a respeito dos limites necessários ao discurso do ódio e o alcance da liberdade de expressão. Naquela notícia, alguns aspectos me chamaram a atenção, sem prejuízo de quaisquer outros que os leitores sejam capazes de identificar.(1)

A matéria trazia a notícia de que o Tribunal de Direitos Humanos Canadense havia decidido que a Lei dos Direitos Humanos violava a Declaração de Direitos e Liberdades, ambos do Canadá. A decisão suscitava algumas questões, como o engajamento da Comissão Canadense de Direitos Humanos no controle do que as pessoas dizem no âmbito próprio da internet, ou ainda, o envolvimento da correspondente Corte na supervisão do conteúdo divulgado online, consoante dispõe a Seção 13 da Lei dos Direitos Humanos daquele País (Canadian Human Rights Act).(2)

O equilíbrio buscado é claro. De um lado, há no debate aqueles que advogam a necessidade de controle sobre o discurso do ódio na atual quadra de desenvolvimento tecnológico da internet, que propaga suas mensagens de maneira cada vez mais rápida e fácil, como mecanismo apto a coibir a proliferação de eventuais práticas discriminatórias, por exemplo. De outro, alguns defendem que tal controle nada mais é do que mera censura, que é incabível em uma sociedade livre e democrática.

Embora a decisão tomada pelo Tribunal de Direitos Humanos do Canadá seja ainda passível da interposição de recurso e, ao final, tenha alcance apenas no caso concreto, aquele parecia ser um importante passo para trazer ao escrutínio da sociedade — seus principais atores políticos — a discussão sobre que resposta dar a tal questão. Excluir qualquer elemento de ódio (discriminatório) do discurso público ou permiti-lo em nome da liberdade de pensamento e expressão? Em outras palavras: a liberdade de expressão pode ter tal alcance, quase ilimitado, ou encontra limite na proibição de práticas discriminatórias, por exemplo?

O que é e como funciona o Tribunal de Direitos Humanos do Canadá? A Corte é responsável pela aplicação da Lei dos Direitos Humanos daquele País. (3) O julgamento deve se basear nas evidências apresentadas e na jurisprudência pertinente. A decisão gira em torno da prova sobre se uma pessoa (física ou jurídica) está atuando de maneira discriminatória ou não. No caso de inconformismo de uma das partes, é possível que haja a interposição de recurso para o Tribunal Federal do Canadá, de onde cabe a interposição de recurso para o Tribunal Federal de Apelação e, em última instância, para a Suprema Corte do Canadá, sempre atendidos os requisitos recursais pertinentes.

Por meio da Comissão Canadense de Direitos Humanos, as reclamações conhecidas de possíveis violações à Lei dos Direitos Humanos são investigadas, instruídas e levadas ao conhecimento da correspondente Corte (que em razão de tal divisão de funções tende a se manter imparcial e independente no mister de julgar).

A jurisdição da Corte abrange as matérias tratadas tanto na seara legislativa pelo Parlamento, como também pelos departamentos de governo, pelas agências e até mesmo pelas empresas públicas. Além destas, submetem-se também à sua jurisdição os bancos, as companhias aéreas e outros empregadores regulados em nível federal que forneçam bens e serviços de maneira geral.

As discriminações proibidas pela Lei dos Direitos Humanos abarcam necessariamente qualquer um dos seguintes fundamentos: raça, origem nacional ou étnica, cor, religião, idade, sexo, estado civil e familiar, orientação sexual, deficiência física ou mental (de qualquer tipo) e até mesmo a condenação para a qual tenha sido assegurado perdão.

Examinando a decisão referida pela notícia, relatamos os seguintes fatos particularmente relevantes. (4) O autor, Richard Warman, questionou a comunicação reiterada pelo réu de mensagens de ódio (hate messages) através de website da internet. Tais mensagens discriminariam pessoas ou grupos de pessoas a partir de suas religiões, raças, cores, origens nacionais e étnicas, bem como de orientações sexuais. Alegou que havia clara exposição de italianos, mexicanos, porto-riquenhos, haitianos, negros, asiáticos, pardos, judeus e homossexuais. Enfim, tais práticas violariam a seção 13(1) da Lei dos Direitos Humanos do Canadá.


O réu, Marc Lemire, negou as alegações. Inicialmente, buscou demonstrar que a sua conduta não se enquadrava no tipo descrito pela norma. Assim, defendeu-se no sentido de que não havia dado origem às comunicações na maior parte das mensagens relacionadas na queixa do autor. Alegou. Ademais, que nenhuma daquelas mensagens continha qualquer conteúdo de cunho discriminatório. Além disso, sustentou que a seção 13 da Lei dos Direitos Humanos (e seus correspondentes remédios estabelecidos nas seções 54(1) e 54(1.1) eram inoperantes ante as seções 24(1) e 52(1) da Declaração Canadense de Direitos e Liberdades (Canadian Charter of Rights and Freedoms). (5)

Sob o ponto de vista defendido pelo réu, as liberdades de consciência, religião, pensamento, crença, opinião e expressão, asseguradas nas seções 2(a) e 2(b) da Declaração seriam violadas pela Lei dos Direitos Humanos. Esta lei, violaria também o direito à vida, à liberdade e à segurança da pessoa, bem como o direito de não ser privado de seus bens exceto de acordo com os princípios de justiça fundamentais, consoante dispõe a seção 7 da Declaração. Enfim, defendeu-se alegando que tanto a seção 13 como também as 54(1) e 54(1.1) da Lei dos Direitos Humanos violavam as seções 1(d), 1(f) e 2 da Declaração de Direitos e Liberdades, ambas do Canadá.

A decisão parte da análise detalhada da seção 13 e a evolução histórica de suas interpretações tanto pela Corte como pelos demais tribunais. Neste contexto, insta salientar que, no âmbito do Tribunal dos Direitos Humanos do Canadá, o requerente deve estabelecer o caso da prática discriminatória prima facie. Em outras palavras, deve comprovar as alegações que faz de modo verossímil, a ponto de demonstrar que são suficientes e completas para justificar uma decisão favorável, na hipótese de o réu abster-se de se defender ou ser considerado revel. (6)

Em seguida, a decisão examina o conteúdo do material delimitado como objeto do litígio, veiculado através da internet, com vistas a determinar qual (ou quais) constitui mensagem de ódio consoante a previsão legal mencionada. A alegação foi de que o réu postava no quadro de mensagens (message board) do website de que era proprietário materiais de cunho discriminatório.

No tocante ao website JRBookonline.com, embora ele não constasse desde o início do material listado pelo autor na sua queixa, foi acrescentado posteriormente como evidência adicional em contato telefônico do autor com a representante da Comissão de Direitos Humanos. Inicialmente, o réu se defendeu explicando que todo o conteúdo do material ali veiculado era imputado a partir do Freedomsite, cujo funcionamento será destacado adiante. Na ocasião, esclareceu que meses antes de receber a notificação por suposta violação dos direitos humanos, todo o quadro de mensagens do referido website havia sido retirado do ar, exceto um único artigo remanescente que foi retirado com a notificação. (7)

Não havia evidência relacionando o réu com o referido website, exceto pela pesquisa do “quem-é” (who-is), que sabidamente não fornece informação segura. Ainda que considerada, tal evidência é insuficiente para sustentar as alegações feitas pelo autor. Portanto, a Corte decidiu que o réu não se engajou na prática discriminatória alegada pelo autor no tocante ao JRBooksonline.com.

Quanto ao material contido no website Stormfront.org, o réu teria postado no quadro de mensagens específico do Canadá (e dentro da matriz reservada à “Comunidade Nacionalista Branca – Internacional”) o texto intitulado “Poema do Imigrante Canadense”, no qual tece severas críticas à política imigratória do País e ao elevado número de beneficiários vindos do exterior, com ênfase aos paquistaneses. (8)

Em interpretação sistemática que abrange as seções 5 a 11 e 14, em contraposição à seção 12, todas da Lei dos Direitos Humanos, a Corte verificou que a prática discriminatória proibida refere-se a qualquer notícia, sinal, símbolo, emblema ou outra representação que expresse ou implique de qualquer modo em discriminação ou nesta intenção, ou ainda, incite a tal, consoante estabelecem os dispositivos mencionados, desde que dirigida a uma pessoa ou a um grupo de pessoas. Deste modo, faltou o requisito contido na referida lei de que a mensagem de ódio seja dirigida a uma pessoa ou a um grupo de pessoas, razão pela qual o poema postado pelo réu não foi considerado ofensivo.


No concernente ao conteúdo proveniente do Freedomsite.org, a questão colocada foi mais complexa e delicada. (9) Em outras ocasiões o envolvimento direto do réu com este website foi reconhecido por ele próprio. Focado ao debate sobre as políticas imigratórias adotadas e às restrições ao livre discurso (free speech) no Canadá, o Freedomsite.org poderia ser visto como uma fonte alternativa de notícias e comentários, já tendo contabilizado (em 2004 quando completava dez anos no ar) mais de dez milhões de visitas. (10)

O conteúdo das mensagens postadas no message board do Freedomsite.org podem ser divididos entre aqueles postados por Craig Harrison, por terceiros e pelo réu. Na primeira situação, a Corte já reconheceu que tais postagens foram ofensivas à seção 13 da Lei dos Direitos Humanos. Não havia qualquer evidência, no entanto, de que o réu tivesse promovido ou participado da divulgação das mensagens postadas por Craig Harrison. Ademais, não houve qualquer evidência de que o réu sequer tivesse conhecimento das postagens de Craig Harrison, mesmo na condição de mediador ou administrador do quadro de mensagens. Assim, como administrador responsável pelo controle do website não divulgou o material, não consentiu com a sua divulgação e tampouco tomou conhecimento dele, ainda que presente no sítio eletrônico. (11)

De fato, na situação específica, o Tribunal entendeu que esta não é a dicção da seção 13(3), que foi desenhada em 1977 e deve ser compreendida à luz das relevantes mudanças tecnológicas experimentadas nos últimos anos, especialmente no tocante à internet. (12) Portanto, a alegação de que o réu comunicou ou deu causa à comunicação das mensagens de Craig Harrison em suposta violação da seção 13 não foi reconhecida pelo Tribunal, nem mesmo no modo prima facie.

O segundo grupo de mensagens destacado no caso referiu-se àquelas postadas por terceiros, que não Craig Harrison e tampouco o réu. Na linha do que foi decidido nos tópicos anteriores, o Tribunal entendeu que não há qualquer evidência de que o réu tenha comunicado ou dado causa à comunicação na condição de administrador do website em foco. (13)

O terceiro grupo de mensagens destacadas do Freedomsite.org compõe-se daquelas postadas pelo próprio réu. Destacaram-se algumas mensagens. No campo do website dedicado ao Heritage Front, o réu postou um comunicado à imprensa (press release) que cuidava de audiências legislativas sobre imigração. Com tal postagem constou trechos de uma carta escrita por Wolfgang Droege sobre a reforma da política imigratória. Estes trechos foram questionados pelo autor como violadores da seção 13. (14)

Para o Tribunal, o material em foco não pretendeu fortalecer qualquer emoção ou sentimento de repulsa e tampouco usou qualquer linguagem inflamatória. Enfim, o tom da carta fora relativamente civil e, ainda que se apresente numa visão pessimista da coexistência pacífica de pessoas diversas, não atinge qualquer grupo particular ou raça. Portanto, decidiu que o material não expõe pessoas na forma da seção 13 da Lei dos Direitos Humanos.

Em campo próprio dedicado a “História e Revisionismo Histórico”, o réu postou um artigo escrito por Ian V. Macdonald sobre as estatísticas do holocausto (em resposta a outro publicado anteriormente, que se referia ao esforço do Congresso Judeu Mundial para reaver a propriedade retirada dos judeus durante a II Guerra Mundial). O libelo contra os judeus foi entendido pelo autor como uma mensagem de ódio, particularmente quando eles são expostos como uma poderosa ameaça que estaria tomando o controle de grande parte das instituições na sociedade e privando outros de sua subsistência, segurança, liberdade de expressão e bem-estar geral. (15)

Para concretizar tal violação, contudo, a Corte decidiu que seria necessário que houvesse mais ódio no teor, mais direcionamento. Este seria o contexto no qual poderia surgir a necessidade de ponderação entre a eventual prática discriminatória e a liberdade de expressão. No caso específico, embora o artigo demonstrasse claro ressentimento em relação ao povo judeu, o Tribunal decidiu que as declarações ali contidas não satisfaziam a interpretação da seção 13.


Acerca de um comunicado à imprensa do Heritage Front sobre um artigo do Toronto Star, que cuidou de “Alerta sobre a Saúde”, destacava-se que mulheres naturais do Congo estavam sendo tratadas em certo hospital como doentes do vírus Ebola. Tal artigo foi reproduzido e distribuído em folhetos, com dizeres que chamavam a atenção para o “alerta de saúde da comunidade” e também advertia que “a imigração pode matar você!”. Contra o artigo originário do Toronto Star foram tomadas providências no sentido de proteger as minorias visíveis e combater o racismo. (16)

Embora a temática fosse propensa ao fomento de pensamentos xenofóbicos, o Tribunal não reconheceu que quaisquer pessoas estariam submetidas às violações da seção 13. Não vislumbrou, portanto, qualquer engajamento em ações violentas contra o grupo almejado. Além disso, a Corte seguiu a linha de pensamento expressa no sentido de que o réu não seria responsável — e mais ainda, culpável — pelas postagens de Craig Harrison. Deste modo, tal alegação do autor não subsistiu contra o réu.

No concernente à seção de “Colunistas Controversos” do website Freedomsite.org, três diferentes artigos foram incluídos na alegação de suposta violação da seção 13 da Lei dos Direitos Humanos, todos que não foram de autoria do réu. Cabe assinalar que, diversamente do que ocorre no quadro de mensagens (message board) do website em questão, no qual cada pessoa individualmente é capaz de inserir a postagem de sua mensagem, na seção dedicada aos “Colunistas Controversos” apenas e tão somente o réu poderia postar as mensagens e artigos. (17) Deste modo, consoante determina o teor da seção 13, o Tribunal adiantou desde logo que o réu deu causa à comunicação de tais artigos.

O primeiro foi escrito por Doug Collins e intitulava-se “Freedom is as Freedom Doesn’t”. Embora este artigo não tenha sido referido pelo autor na sua queixa, foi mencionado pela Comissão em outra investigação do gênero. Depois de tal investigação, o réu retirou do ar o artigo referido. (18)

Como reconhecido anteriormente, mesmo que tal mensagem pudesse ser considerada exagerada ou dolorida para quem viveu ou se relacionou de algum modo com a experiência do Holocausto, ainda assim não os expõem necessariamente na forma da seção 13, especialmente ante a ausência de qualquer calúnia ou vilipêndio de judeus ou outros. Decidiu, portanto, que o artigo não é “tão malevolente” na sua descrição de judeus a ponto de constituir mensagem de ódio, consoante dispõe a Lei dos Direitos Humanos.

O segundo artigo foi escrito por um tal John de Vancouver e intitulava-se “Ottawa está perigosa”. A exemplo do anterior, este artigo não constou na reclamação inicial do autor. (19) O tom do artigo não se ergueu ao nível da malevolência, histeria ou intemperança que pretende ser combatida pela seção 13, já que não houve qualquer incitação à ação, poucos epítetos foram usados, não objetivou atingir grupos específicos e tampouco invocou ofensas históricas. Deste modo, a alegação a respeito deste artigo também não subsistiu.

O terceiro artigo intitulava-se “Os Segredos da AIDS: O que o Governo e a Mídia não querem que você saiba” e corresponde a um discurso de Kevin Alfred Strom num programa de rádio norte-americano em 10 de julho de 1993. Constou dos autos que referido artigo foi retirado do ar no dia 09 de abril de 2004 (poucas semanas depois de o réu ter recebido a notificação a respeito da queixa do autor), informação confirmada pelo réu em suas manifestações.

O conteúdo do material impugnado revelou-se chocante e perturbador, levando os leitores ao desespero por seus entes acometidos pela AIDS, já que há referências expressas ao termo “assassino” (para designar o HIV), “morte lenta e horrível” e “com agonia” e sem nada que pudesse ser feito para salvar as vítimas que a contraíram (para caracterizar o percurso certo das vítimas que contraem a doença). (20)


A Corte acatou a alegação do autor, corroborada pela Comissão, no sentido de que o artigo referente aos “Segredos da AIDS” realmente expôs os homossexuais, os negros e os imigrantes do Terceiro Mundo, em razão do fato de que eles são identificáveis com base na orientação sexual, cor e raça, que são consideradas discriminações proibidas pela seção 13 da Lei dos Direitos Humanos. (21)

Levando em consideração que o artigo denigre ou vilipendia de modo extremo pessoas ou grupos de pessoas de maneira francamente proibida, o material em foco deixa de ser tolerável (permissible), nos termos do teor expresso na seção 13. Com efeito, deixa de ser considerado validamente como um “discurso eminentemente político”. (22)

Pelo exposto, o Tribunal considerou que o artigo sobre os “Segredos da AIDS” contém material que possivelmente expõe homossexuais e negros ao ódio ou desprezo, e que o réu comunicou referido material no sentido da seção 13 da Lei dos Direitos Humanos do Canadá. Neste aspecto, a queixa do autor foi substanciada.

O réu pleiteou a declaração de inoperância das seções 13, 54(1) e 54(1.1), todas da Lei dos Direitos Humanos, baseando-se em fundamentos constitucionais, especialmente no concernente à sua liberdade de expressão assegurada pela seção 2(b) da Declaração dos Direitos e Liberdades. Sucessivamente, alegou também violação à sua liberdade de consciência, assegurada pela seção 2(a) e os direitos à vida, liberdade e segurança de sua pessoa, estabelecidos na seção 7, ambas da referida Declaração, dentre outras.

Quanto à defesa do réu no sentido de que a seção 13(1) da Lei violaria a sua liberdade de expressão, cabe registrar que não seria a primeira vez que tal dispositivo seria questionado sob fundamentos constitucionais. A despeito dos questionamentos formulados no passado, o entendimento prevalecente da Suprema Corte do Canadá a respeito tem sido no sentido de que o dispositivo coloca um limite razoável à liberdade de crença, opinião e expressão assegurada pela seção 2(b) da Declaração, tendo sido em variadas oportunidades reconhecido como constitucional.

O precedente da Suprema Corte a respeito da compatibilidade da seção 13(1) da Lei dos Direitos Humanos com a seção 2(b) da Declaração dos Direitos e Liberdades estabeleceu dois aspectos que devem ser respeitados. O objetivo a ser atendido pelas medidas que limitam o direito ou a liberdade da Declaração deve ser suficientemente importante para garantir que seja substituído. Além disso, a parte que invoca a seção 1 deve demonstrar que as medidas são razoáveis e justificadas.

Isto envolve o teste triplo da proporcionalidade, ou seja, as medidas devem: ser racionalmente conectadas ao objetivo, impedir o direito ou a liberdade tão minimamente quanto possível e devem guardar proporcionalidade entre os efeitos das medidas limitadoras e o objetivo – neste sentido, quanto mais severos os efeitos deletérios da medida mais importante o objetivo deve ser.

Depois de exame minucioso sobre a composição da seção 13 e de suas principais interpretações, o réu não lograria demonstrar que tal precedente restaria superado diante de nova interpretação, de modo a viabilizar o seu pleito de inaplicação da seção 13 da Lei. Em sua argumentação não vinha conseguindo justificar eventual nova interpretação daquele precedente, fosse à luz da legislação subseqüente, fosse à luz das eventuais particularidades do caso concreto.

Contudo, o Tribunal reconheceu o acerto da conduta do réu quando, sabendo da impugnação a respeito do material que postou no website em questão, tratou de retirá-lo do ar. Neste sentido, o precedente estabelecido pela Suprema Corte diferenciava-se do caso concreto. Além disso, diante do caso concreto, parece que não poderia mais ser dito que pela ausência de intenção da seção 13(1) não haveria qualquer problema quanto ao mínimo prejuízo e tampouco impinge tão deleteriamente a liberdade de expressão da seção 2(b) que torna intolerável a sua existência numa sociedade livre e democrática.


Deste modo, o Tribunal entendeu que os testes estabelecidos pelo precedente acima mencionado da Suprema Corte não foram satisfeitos. Neste caso, a seção 13(1) vai além do que pode ser defendido como um limite razoável à liberdade de expressão prevista na seção 1 da Declaração.

Em decorrência disso, o terceiro componente necessário para o teste triplo da proporcionalidade não foi atendido, isto é, com a introdução da pena prevista na seção 54(1)(c) a seção 13(1) passou a desempenhar um papel muito mais significante e maior do que o papel anterior de mínima imposição de sanções financeiras e morais. Com isso, restou desatendida a proporcionalidade entre os efeitos da medida limitadora e o objetivo.

Pelo exposto, o Tribunal decidiu que a seção 13(1) infringiu a liberdade de expressão garantida ao réu pela seção 2(b) da Declaração dos Direitos e Liberdades. Tal violação não é justificada ou justificável à luz da seção 1 deste diploma. Ademais, não havia qualquer evidência de que o réu ou qualquer outro tivesse postado mensagens com cunho de prática religiosa ou de consciência. As demais alegações do réu de violações constitucionais, referentes à garantia da vida, da segurança e do direito do devido processo legal foram consideradas rudimentares e superficiais, razão pela qual foram prontamente negadas.

Portanto, de um lado a decisão reconheceu que o réu violou sim a seção 13 da Lei dos Direitos Humanos em apenas uma das alegações formuladas pelo autor (no tocante ao artigo referente aos “Segredos da AIDS”); de outro, reconheceu a incompatibilidade da seção 13 (que cuida do discurso do ódio), combinada com as seções 54(1) e (1.1) da Lei dos Direitos Humanos, em relação ao dispositivo contido na seção 2(b) da Declaração de Direitos e Liberdades, que assegura a liberdade de expressão, todas do Canadá. É que aquelas restrições estabelecidas à liberdade de pensamento, crença, opinião e expressão não seriam limites razoáveis dentro do significado da seção 1 da Declaração.

Diante disso, e atendendo as particularidades do sistema jurídico canadense, a Corte deixou de aplicar os dispositivos da Lei dos Direitos Humanos no tocante à alegação do autor contra o réu, bem como não expediu qualquer ordem contra ele.

Referências
1.
KRASHINSKY, Susan. Canadian Human Rights Tribunal: Hate speech law ‘violates’ charter. The Globe and Mail. Canadá, p. A5, 03.09.2009. Disponível na internet:
http://www. theglobeandmail.com/news/national/hate-speech-law-violates-charter-rights-tribunalrules/article1273956/ [04.09.2009].
2. A referida lei amplia a vedação às práticas discriminatórias. Divide-se em quatro partes principais: as discriminações proibidas, a Comissão de Direitos Humanos Canadense, as práticas discriminatórias e disposições gerais, e a aplicação. Logo na primeira parte, que compreende as seções 5 a 25, destaca-se a 13 sobre as mensagens de ódio (hate messages): “13. (1) It is a discriminatory practice for a person or a group of persons acting in concert to communicate telephonically or to cause to be so communicated, repeatedly, in whole or in part by means of the facilities of a telecommunication undertaking within the legislative authority of Parliament, any matter that is likely to expose a person or persons to hatred or contempt by reason of the fact that that person or those persons are identifiable on the basis of a prohibited ground of discrimination”. Em seguida, traz a exceção: “(2) Subsection (1) does not apply in respect of any matter that is communicated in whole or in part by means of the facilities of a broadcasting undertaking”. O próximo dispositivo dispõe: “(3) For the purposes of this section, no owner or operator of a telecommunication undertaking communicates or causes to be communicated any matter described in subsection (1) by reason only that the facilities of a telecommunication undertaking owned or operated by that person are used by other persons for the transmission of that matter”. Disponível na internet:
http:// www.efc.ca/pages/law/canada/canada.H-6.part-1.html#5 [04.09.2009]. Para informações didáticas sobre a lei, consultar: http://en.wikipedia.org/wiki/Canadian_Human_Rights_Act [04.09.09].
3. Disponível o sítio de tal tribunal na internet:
http://www.chrt-tcdp.gc.ca/ [04.09.09].
4. A decisão (2009 CHRT 26, Warman v. Lemire, j. 02.09.2009) contabiliza 107 laudas e pode ser encontrada no seguinte sítio:
http://chrt-tcdp.gc.ca/search/ files/t1073_5405chrt26.pdf [04.09.09].
5. O dispositivo contido na seção 24(1) estabelece que: “Anyone whose rights or freedoms, as guaranteed by this Charter, have been infringed or denied may apply to a court of competent jurisdiction to obtain such remedy as the court considers appropriate and just in circumstances”. Disponível na internet:
http://laws.justice.gc.ca/en/charter/ [04.09.09].
6. Uma vez estabelecido o caso prima facie, aí o ônus argumentativo e da prova passa ao réu, que deve fornecer uma explicação razoável para o seu comportamento supostamente discriminatório. Se o réu logra fornecer a tal explicação razoável, aí o autor ou requerente tem a obrigação de demonstrar que a explicação dada não passa de simples pretexto e que a motivação real por detrás das ações do réu foi, de fato, discriminatória.
7. Depois de aprofundado exame acerca da propriedade e responsabilidade pelo conteúdo do referido website, inclusive com a oitiva de especialista versado no assunto, o Tribunal decidiu que havia evidência insuficiente para estabelecer, mesmo que prima facie, que o réu (ou um grupo de pessoas no qual ele se incluísse) divulgou ou deu causa à divulgação do material encontrado no JRBooksonline.com, consoante prevê a seção 13.
8. Neste particular, o Tribunal lembrou que o conteúdo de tal material postado, a exemplo do anterior, não foi mencionado no requerimento inicial do autor, tendo sido postado depois de iniciado o processo e retirado do ar antes da decisão. Cuidando-se da postagem do Stormfront.org, no entanto, a decisão reconheceu que foi colocada no ar pelo réu, em violação à referida seção 13.
9. O Tribunal mencionou o caso em que o mesmo autor acionou Craig Harrison pela postagem de mensagens ofensivas e cujas violações à seção 13 foram reconhecidas quando julgado pela Corte. A decisão (2006 CHRT 30, Warman v. Harrison, j. 15.08.2006) contabiliza 32 laudas e pode ser encontrada no seguinte sítio: http://chrt-tcdp.gc.ca/search/files/t1072_5305ed15aug06.pdf [04.09.09].
10. No interior da divisão do mapa do website, que contava com dezesseis diferentes seções, a impugnação do autor dirigiu-se apenas e tão somente ao quadro de mensagem (message board) e ao quadro de colunistas (“controvertidos”).
11. Não subsiste a alegação de que o réu deu causa à comunicação de mensagens de ódio porque ele desenvolveu um website que pode naturalmente incitar outros, como Craig Harrison, a engajar-se na prática discriminatória pela postagem de mensagens do quadro de mensagens próprio do website que podem, aí sim, constituir mensagens de ódio. Ora, dar causa à comunicação é situação distinta de incitar, como se verifica pelo cotejo entre as seções 13 e 12 da Lei dos Direitos Humanos. É que o réu tomou os cuidados recomendáveis na situação específica, isto é, advertiu sobre as leis aplicáveis e colocou-se à disposição, como administrador do quadro de mensagens, para retirar qualquer conteúdo considerado por qualquer um como impróprio ou ofensivo. A Comissão de Direitos Humanos do Canadá, contudo, defendia que o administrador do website deveria ser responsabilizado sim pelo seu conteúdo, na medida em que deve mantê-lo sempre de acordo com a Lei dos Direitos Humanos, independentemente de reclamação que lhe chegue a respeito. Neste sentido, a Comissão traz aos autos uma série de precedentes nos quais o Tribunal reconhece a responsabilidade do administrador do website nos termos da seção 13 quanto às mensagens de ódio encontradas em tais websites.
12. Deste modo, pela distinção (distinguishing) dos fatos e das evidências daqueles casos com este, o Tribunal não se viu obrigado a segui-los desta vez. Quanto às mensagens postadas por Craig Harrison, não subsiste qualquer responsabilidade para o réu como administrador do website, vez que não foi comprovada a sua intenção de dar causa à comunicação e ela não pode ser inferida ou presumida.
13. Para relacioná-lo às mensagens de terceiros que foram postadas, seria necessária a demonstração, ao menos prima facie, de que o réu sabia ou tinha conhecimento delas. Não tendo participado ativamente do quadro de mensagens, descabe relacioná-lo à postagem de tais mensagens no message board.
14. Em síntese, o comunicado à imprensa sugere que se tenha uma “moratória” sobre a questão imigratória até a extensão de apoio ou desaprovação necessária para o estabelecimento da política imigratória atual. Segundo o autor, consoante a mensagem de ódio apontada destaca-se o caráter ameaçador do imigrante, que parece privar os canadenses de sua subsistência, segurança, liberdade de expressão e bem-estar geral. De modo particular, os imigrantes não brancos são apresentados como uma preocupação devido às questões de criminalidade e saúde, bem como uma ameaça aos trabalhos e salários dos canadenses brancos.
15. A despeito de trazer semelhanças com outros casos julgados anteriormente pela Corte, inclusive nos quais foram reconhecidas violações à Lei dos Direitos Humanos, aqui a postagem do réu foi considerada com espectro mais abrangente do que a crítica dirigida exclusivamente à posição dos judeus a respeito do holocausto e com teor menos denso e agressivo do que aqueles anteriormente enfrentados pelo Tribunal. Deste modo, o artigo postado soa mais como sujeito à discussão histórica sobre a II Guerra Mundial antes de se limitar a um ataque ao grupo particular de judeus. De fato, antes disso, trata-se de um ataque contra todos, desde os comunistas, Stálin, a Inglaterra, a União Soviética, até mesmo Churchill e outros. Embora o artigo ofenda e até magoe aqueles que foram pessoalmente afetados pela guerra e pelo nazismo, bem como pelo holocausto, colocando em dúvida os números conhecidos, não houve qualquer exortação a tomada de qualquer ação ou comparações grotescas que justificassem a violação frontal da seção 13.
16. Apesar de conter uma mensagem negativa para a convivência pacífica, não seria correto dizer que a idéia de banimento, segregação ou erradicação do grupo de pessoas não brancas e imigrantes poderia salvar as demais, que presumivelmente seriam brancos e canadenses.
17. Neste sentido, ao final de cada um dos três artigos lia-se uma anotação incentivando o leitor a enviar suas peças para o administrador do website, isto é, o réu. Tal identidade entre ambos foi admitida pelo réu em diferentes oportunidades durante o julgamento. Deste modo, o Tribunal entendia, ainda que prima facie, que cada um dos três artigos que serão vistos em seguida dependiam do envolvimento pessoal e direto do réu para que fossem postados no website. Daí pode ser razoavelmente inferido que ele conhecia o conteúdo de tais artigos. O próprio réu não buscou em momento algum provar ou demonstrar que não detinha o conhecimento de tal material.
18. Desde então não houve qualquer alegação de que o artigo permanecesse no ar ou não tivesse sido efetivamente retirado de lá. Ao material que foi impugnado em outra investigação, trazida para os autos em questão quando da instrução, foi imputada pela Comissão possível discriminação sob as formas de raça, religião ou origem étnica. O réu, de sua parte, sustentou que o artigo constituiu um comentário essencialmente político que denunciava restrições à sua liberdade de expressão e de outros, mesmo que se cuidasse do Holocausto.
19. Foi trazido como decorrência daquela outra investigação mencionada anteriormente. De igual modo, na ocasião do julgamento já havia sido retirada do ar pelo réu. O artigo teceu considerações sobre os resultados da eleição de 2000, na qual o articulista claramente se desapontou com a vitória do Partido Liberal, especialmente observando-se as tendências eleitorais do Oeste do País, inclusive levando-se em conta a divisão que há entre os cidadãos de língua inglesa e francesa. Precisamente jogando com os elementos históricos e estatísticos a respeito de tais dados é que o articulista teceu a sua crítica ao governo da situação de então e assinalou o aumento da criminalidade. Ainda que os juízes do tribunal tenham concordado que os termos usados não foram gentis e se orientaram no sentido de que a presença de novos imigrantes no Canadá não seria bem-vinda, o artigo em questão não expressa as emoções profundas de ojeriza, calúnia e vilipêndio contemplados pela seção 13.
20. O sistema médico (medical establishment) e as autoridades de saúde pública receberam duras críticas pela falha na sua prevenção, enquanto dedicaram seus esforços na proteção da identidade dos contaminados. De acordo com o artigo, a razão subjacente a tal “traição” ou “mentira” seria o “tremendo poder dos homossexuais organizados” que seriam “muito ajudados pelos órgãos controlados da mídia”. As “mentiras” divulgadas pelo governo e pela mídia foram citadas em tom igualmente crítico. Dentre tais mentiras, o artigo exemplificou a divulgação recorrente de que o sexo seguro pode prevenir a transmissão do HIV e a doação de sangue é segura. Muitas críticas foram explicitadas pelo artigo referido, culminando com o estereótipo das pessoas mais infectadas pela doença: negros.
21. Afastá-los, de acordo com o artigo, buscaria interromper a progressão desta epidemia mortal entre as pessoas. A necessidade de segregação de tais pessoas dos demais (heterossexuais brancos) seria a mensagem claramente deixada. Ademais, o artigo contava com uma linguagem altamente inflamatória no sentido de que os homossexuais seriam descritos como uma minoria pervertida e de sexualmente desviados. Em sua contestação, o réu defendeu que o artigo se baseava em fatos verdadeiros que foram comprovados pela origem das referências feitas. Durante a etapa de instrução do processo, juntou cópia dos estudos e das estatísticas que o artigo mencionava. Além disso, o réu sustentou que o artigo escrito pretendeu colocar em discussão a ameaça representada pelo HIV/AIDS, de acordo com a pesquisa realizada pelo articulista e de modo a colocar os leitores a salvo, bem como evitando o contato próximo com aqueles grupos de alto risco.
22. Neste caso, pouco importa se os pontos de vistas ali expostos se baseiam em “fatos” ou não, já que a Declaração de Direitos e Liberdades não estabelece qualquer exceção às declarações verdadeiras. Consoante o relator do caso, o material encontrado no artigo sobre os “Segredos da AIDS” expressa de modo incomum e forte o sentimento profundo de ojeriza e calúnia em relação aos homossexuais. Linguagens extremas são usadas para caluniá-los e aos seus estilos de vida. Longe de utilizar dados científicos e estatísticos de modo desapaixonado, o artigo adota tom alarmista, quase histérico.

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