Debate polêmico

Os limites da penhora sobre o salário

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11 de outubro de 2009, 8h57

O contrato de trabalho consiste no negócio jurídico bilateral pelo qual uma pessoa física (empregado) se obriga a prestar serviços de natureza pessoal e não eventual a outrem (empregador), com onerosidade e mediante subordinação jurídica. A expressão máxima desta onerosidade ínsita ao contrato de trabalho se traduz no direito assegurado ao empregado de receber parcelas dotadas de valor econômico em contraprestação ao trabalho realizado. Trata-se, neste contexto, de um contrato de atividade, de caráter sinalagmático e comutativo.

Ainda que não raro as expressões “salário” e “remuneração” sejam utilizadas como sinônimos, é certo que a legislação trabalhista pátria apresenta clara distinção entre as respectivas figuras nas normas contidas no artigo 457, caput, e parágrafo 1º, da CLT.

O salário consiste no conjunto de parcelas contraprestativas, dotadas de valoração econômica, que são devidas e pagas diretamente pelo empregador ao empregado no contexto de uma relação jurídica de emprego. Compreende não apenas a eventual importância fixa ajustada pelas partes (salário básico), como também as comissões, percentagens (adicionais), gratificações ajustadas, diárias para viagem (observado, neste último caso, o critério estabelecido no parágrafo 2º do artigo 457 da CLT) e abonos pagos pelo empregador.

O salário não se traduz, portanto, em uma única verba, mas em um complexo de parcelas. É o que se denomina “complexo salarial” ou “salário contratual”. Por sua vez, compreende-se na remuneração do empregado, além do salário pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço realizado, as gorjetas que vier a receber. Daí, a conhecida fórmula: remuneração = salário + gorjetas.

Entre as diversas características das parcelas salariais, destaca-se o seu caráter alimentar, ou seja, a finalidade do salário é proporcionar a subsistência do trabalhador e de sua família, atendendo a todas aquelas necessidade pessoais básicas, a fim de assegurar uma existência digna. Em razão desta natureza subsistencial é que a legislação pátria estabelece todo um sistema de garantias salariais, apresentando mecanismos de proteção jurídica do valor do salário contra possíveis abusos a serem cometidos pelo empregador, assim como contra credores deste último e do próprio empregado.

A irredutibilidade salarial, a correção automática de salários (enquanto foi perdurou em nosso sistema jurídico-econômico) e a fixação de patamares salariais mínimos obrigatórios são exemplos de mecanismos de proteção jurídica do valor do salário. Os critérios legais de pagamento do salário (tempo, lugar e modo), a irredutibilidade e a intangibilidade salariais exemplificam, por sua vez, mecanismos de proteção jurídica contra abusos do empregador.

O fenômeno da ampliação da responsabilidade trabalhista e as tutelas jurídicas na antiga concordata e na falência (a primeira extinta com o advento da Lei 11.101/2005, que instituiu a recuperação extrajudicial e judicial) concretizam autênticos mecanismos de tutela jurídica do salário contra abusos dos credores do empregador.

Por fim, a ordem jurídica também assegura um conjunto de garantias e proteções em favor das verbas salariais com relação ao assédio dos credores do próprio empregado. Além das restrições à compensação, da fixação de critérios de correção monetária e da invalidade da cessão deste crédito salarial, destaca-se, neste âmbito, a impenhorabilidade absoluta do salário.

Preconiza a norma prevista no inciso IV do artigo 649 do CPC que são absolutamente impenhoráveis os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal.

O fundamento desta proteção jurídica facilmente se justifica no já mencionado caráter alimentar destas parcelas, visto que, em tese, seriam indispensáveis à satisfação das necessidades vitais do destinatário e de seus familiares. A única exceção prevista expressamente no comando do parágrafo 2º deste mesmo artigo do diploma processual é a penhora para pagamento de prestação alimentícia.  Isso porque, assim como as verbas acima enumeradas pela lei, os valores pagos a título de pensão alimentícia e de alimentos provisionais também são dotados de inequívoca natureza subsistencial, o que autoriza, de plano, esta ressalva legislativa.

Todavia, questão que vem trazendo intenso debate doutrinário e jurisprudencial, à luz das disposições do artigo 649, inciso IV, e parágrafo 2º, do CPC e dos princípios constitucionais e legais que informam o direito trabalhista, é a possibilidade ou não de se proceder à penhora sobre salário, quando o exequente é credor de verbas trabalhistas, também dotadas, em sua grande maioria, da mesma finalidade alimentar que fundamenta a impenhorabilidade do salário do devedor.

Quando da elaboração das normas jurídicas, não se espera do legislador que este possa antever todas as possíveis situações conflituosas que possam a vir reivindicar uma composição futura. Desta sorte, é ordinária a existência de verdadeiras lacunas na legislação em face da transformação e evolução dos fenômenos sociais que terminam por ser o substrato da norma jurídica. Como é cediço, os fatos antecedem ao direito. E este fenômeno também alcança a disciplina do processo, como instrumento hábil à obtenção da tutela jurisdicional.

Na seara trabalhista, o parágrafo único do artigo 8º e o artigo 769 da CLT dispõem que, nos casos omissos, o direito material e processual comum serão fontes subsidiárias do direito material e processual do trabalho, exceto quando incompatíveis com as normas e os princípios informadores destes respectivos ramos jurídicos especializados. Logo, podemos afirmar serem dois os requisitos indispensáveis à aplicação do princípio da subsidiariedade no direito material e processual do trabalho: a) a existência de autêntica omissão do ordenamento trabalhista e a compatibilidade das regras do direito e do processo comum em face dos institutos e princípios aplicáveis ao âmbito trabalhista.

Quanto às espécies de lacunas do Direito, a melhor doutrina as classifica em:

a) lacunas normativas ou primárias: quando da efetiva ausência de norma jurídica a regular determinada situação fática;
b) lacunas ontológicas: quando, apesar de existente, a norma jurídica a ser aplicada não possui mais correspondência com os fatos sociais, implicando o “envelhecimento” da norma positiva.
c) lacunas axiológicas: quando a norma existente, se aplicada em toda a sua literalidade, acarretará uma solução insatisfatória ou injusta, no contexto da dimensão valorativa do fenômeno jurídico, por força dos princípios que informam o ramo do Direito correspondente.

Esta última espécie de lacuna encontra-se intimamente ligada à visão pós-positivista, que, no processo de aplicação do Direito, não se limita à adoção de mecanismos de subsunção da norma abstrata existente ao fato concreto, procurando aplicar a solução mais adequada e justa, em consonância com os princípios gerais de ordem constitucional e legal.

Conquanto seja certa a existência de autêntica lacuna normativa ou primária em nossa legislação trabalhista pátria com relação à disciplina do instituto da penhora, o que vem a justificar a utilização da fonte subsidiária do direito processual comum, não se deve negligenciar a necessidade de se atribuir a estas normas uma interpretação condizente com todos os institutos e princípios constitucionais e trabalhistas.

Assim, embora a única ressalva consignada no parágrafo 2º do artigo 649 do CPC, com nova redação dada pela Lei 11.382/2006, refira-se à penhora para pagamento de prestação alimentícia, é perfeitamente possível, dentro deste contexto, quando da aplicação subsidiária ao direito processual do trabalho, por força do artigo 769 da CLT, que se extraía interpretação ampliativa desta norma, a fim de atender aos seus fins sociais dentro de uma ótica trabalhista.

O estudo de uma ciência jurídica deve ser obrigatoriamente precedido da análise acerca dos princípios que estruturam a disciplina a que se pretende debruçar.  Isso porque a autonomia de um ramo do Direito se constrói a partir da efetiva constatação da existência de institutos e princípios próprios, que o diferenciam das demais espécies que integram o ordenamento jurídico, enquanto sistema orgânico e harmônico.

Os princípios são as diretrizes fundamentais, as proposições básicas que informam uma determinada ciência. São os alicerces de um fenômeno científico. Na seara jurídica, os princípios constituem aquelas ideias estruturais que sustentam todo arcabouço inerente a um ramo do Direito. Segundo a doutrina clássica, os princípios inerentes a uma dada ciência jurídica possuem três finalidades básicas: orientar o legislador, auxiliar o intérprete e integrar as lacunas do ordenamento jurídico pátrio.

De certo, o processo legislativo deve sempre levar em conta os princípios que informam a ordem jurídica à qual se inserirá a norma jurídica a ser editada. Não se pode aceitar (ao menos, não se deveria) a produção de leis que sejam incompatíveis com os princípios estruturantes do ramo jurídico correlato.

Da mesma forma, quando da aplicação da lei ao caso concreto, o operador do Direito deve saber interpretar a norma em conformidade com estas mesmas proposições básicas informadoras da ciência jurídica em foco, para que a aplicação da regra jurídica não se proceda em descompasso com estas diretrizes fundamentais. E, por derradeiro, os princípios também funcionam como importantes meios de integração das lacunas da lei. Em não havendo norma jurídica a regular uma determinada situação fática, poderá o operador do Direito utilizar-se dos princípios que estruturam a ciência jurídica, de modo que se possa achar a solução mais condizente com estes preceitos básicos.

No entanto, resta atualmente superada esta visão periférica dos princípios, quando em cotejo com as regras de conduta que compõem o sistema jurídico. Hoje não há mais dúvida de que estes preceitos essenciais possuem efetiva força normativa, sendo considerados verdadeiros comandos deônticos de conduta, a partir dos quais são estruturados todos os alicerces de um ramo jurídico.

Por outro lado, não mais subsiste a adoção do modelo positivista clássico no processo de composição dos conflitos sociais, o qual vislumbrava mero mecanismo de subsunção da regra abstrata ao fato concreto, indiferente a esta força normativa principiológica. E entre os diversos princípios constitucionais que se projetam no âmbito trabalhista, aquele que se destaca, tendo sido erigido a fundamento da República Federativa do Brasil, enquanto Estado Democrático de Direito (CF/88, artigo 1º, III), é o da dignidade da pessoa humana, que vem a informar todo o sistema jurídico constitucional brasileiro.

Todavia, muitas vezes a aplicação deste mesmo fundamento de ordem constitucional pode vir a ser reivindicada em favor de sujeitos que se encontram em situações diametralmente opostas em uma dada relação jurídica processual. É o que ocorre no tema em debate, quando se discute a possibilidade e, se for o caso, os limites da penhora no salário do devedor, quando o exeqüente é credor de verbas contratuais trabalhistas, senão vejamos.

De um lado busca-se a tutela da dignidade da pessoa humana do trabalhador-credor, que depende da concretização do comando contido no título judicial condenatório para a subsistência de sua família e a manutenção de uma condição digna de vida.  De outro lado, também se mostra necessária a proteção da dignidade da pessoa humana do próprio devedor, que assim como o credor trabalhista, tem no seu salário o esteio à satisfação de suas necessidades pessoais e familiares básicas.

Nesta hipótese, far-se-á necessária a realização de verdadeira ponderação de interesses por parte do magistrado, resguardando, à luz dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a preponderância de um destes enfoques, sem, contudo, esvaziar a efetividade de qualquer deles. Trata-se, in casu, da aplicação do método de interpretação constitucional da harmonização ou da concordância prática, em busca da unidade de nossa Carta Maior.

Registre-se, ainda, que este conflito também se configura no âmbito de outras normas (regras e princípios), notadamente as de índole processual, que, em dado aspecto, preconizam a persecução da efetividade das decisões judiciais e a própria celeridade e duração razoável do processo, promovendo a ampliação da responsabilidade a todos que se beneficiaram do extinto contrato de trabalho, e que, de outro, asseguram o prosseguimento da execução da forma menos gravosa ao devedor.

É neste contexto que se indaga: é possível a penhora sobre o salário do devedor? E, em caso positivo, quais seriam os limites a serem observados?

Com relação à possibilidade ou não de determinação de penhora sobre salário do devedor, cumpre salientar que a jurisprudência uniformizada na Orientação Jurisprudência 153 da SBDI-2 do C. Tribunal Superior do Trabalho assim se posiciona, in litteris:

“MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO. ORDEM DE PENHORA SOBRE VALORES EXISTENTES EM CONTA SALÁRIO. ART. 649, IV, DO CPC. ILEGALIDADE (DJe divulgado em 03, 04 e 05.12.2008)

Ofende direito líquido e certo decisão que determina o bloqueio de numerário existente em conta salário, para satisfação de crédito trabalhista, ainda que seja limitado a determinado percentual dos valores recebidos ou a valor revertido para fundo de aplicação ou poupança, visto que o artigo 649, IV, do CPC contém norma imperativa que não admite interpretação ampliativa, sendo a exceção prevista no artigo 649, parágrafo 2º, do CPC espécie e não gênero de crédito de natureza alimentícia, não englobando o crédito trabalhista”.

Verifica-se, portanto, que a mais alta Corte Superior Trabalhista cristalizou entendimento no sentido de violar direito líquido e certo do devedor a decisão que deflagra ato de constrição judicial sobre numerário existente em sua conta salário, inviabilizando que se atribua interpretação extensiva à exceção contida no parágrafo 2º do artigo 649 do CPC.

Conforme se infere desta mesma orientação jurisprudencial, a imperatividade inerente à norma do inciso IV do mesmo artigo 649 do CPC impediria qualquer hermenêutica ampliativa, firmando tese no sentido de que a prestação alimentícia a que se reporta a ressalva legal se traduz em espécie, e não em gênero, de crédito de natureza alimentícia.

Contudo, conforme notícia veiculada no site do Tribunal Superior do Trabalho referente ao dia 15 de abril de 2009, a 2ª Turma desta Corte, nos autos do processo AIRR 1027/2005-01303-40.7, julgado em 27 de março de 2009, manteve decisão que determinou a penhora de 50% dos salários de sócios de um hospital, para fazer frente ao pagamento de dívidas trabalhistas, rejeitando a alegação da defesa de que seus vencimentos seriam impenhoráveis por força de dispositivos legal e constitucional que dispõem sobre a impenhorabilidade de salário e sobre a dignidade da pessoa humana.

Este recente posicionamento vem a reacender todo o debate que gira em torno da questão. Por sua vez, comungando com o entendimento consubstanciado no verbete jurisprudencial acima transcrito, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do REsp 978689/SP, julgado em 06 de agosto de 2009, posicionou-se pela inadmissibilidade da penhora dos valores recebidos a título de verba rescisória de contrato de trabalho e depositados em conta corrente destinada ao recebimento de remuneração salarial (conta salário), ainda que tais verbas estejam aplicadas em fundos de investimentos, no próprio banco, para melhor aproveitamento do depósito.

Também encontramos remansosa jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça aduzindo que o ato que determina o bloqueio de saldo em conta corrente em que o servidor público recebe seus vencimentos é manifestamente ilegal, nos termos do inciso IV do artigo 649 do CPC. Neste sentido, por exemplo, a decisão proferida nos autos do processo RMS 26937/BA, julgado em 07 de outubro de 2008.

Todavia, a 3ª Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça, nos autos do RMS 25397/DF, julgado em 14 de outubro de 2008, firmou a seguinte tese sobre a matéria, in verbis:

Em princípio é inadmissível a penhora de valores depositados em conta-corrente destinada ao recebimento de salário ou aposentadoria por parte do devedor. Entretanto, tendo o valor entrado na esfera de disponibilidade do recorrente sem que tenha sido consumido integralmente para o suprimento de necessidades básicas, vindo a compor uma reserva de capital, a verba perde seu caráter alimentar, tornando-se penhorável”.

De acordo com este precedente, a partir do momento em que o valor depositado na conta salário do devedor não é utilizado integralmente para satisfação de suas necessidades básicas, vindo a integrar uma reserva de capital, este perde o caráter subsistencial ou alimentar, sendo passível de penhora. Vislumbra-se, desta forma, a existência de julgados de nossos Tribunais Superiores que apresentam posicionamentos diversificados sobre o mesmo tema, tornando ainda mais instigante a sua abordagem.

Ressalte-se, por outro lado, que a intenção inicial do legislador, com a redação originalmente atribuída pela Lei  11.382/2006 ao parágrafo 3º do artigo 649 do CPC, era autorizar a penhora em até 40% daqueles valores que ultrapassassem vinte salários mínimos. O dispositivo vetado assim dispunha:

“Parágrafo 3º Na hipótese do inciso IV do caput deste artigo, será considerado penhorável até 40% (quarenta por cento) do total recebido mensalmente acima de 20 (vinte) salários mínimos, calculados após efetuados os descontos de imposto de renda retido na fonte, contribuição previdenciária oficial e outros descontos compulsórios”.

Nas razões de veto, frisou-se que a proposta parecia razoável, porque seria difícil defender que um rendimento líquido de vinte vezes o salário mínimo vigente no país fosse considerado como integralmente de natureza alimentar. Contudo, foi contraposto que a tradição jurídica brasileira converge para a impenhorabilidade absoluta e ilimitada da remuneração. Dentro desse quadro, entendeu-se pela conveniência de opor veto ao dispositivo para que a questão voltasse a ser debatida pela comunidade jurídica e pela sociedade em geral.

Aproveitando-se destas mesmas considerações expostas nas razões de veto da norma prevista no parágrafo 3º do artigo 649 do CPC, podemos questionar se, em todos os casos, deve ser atribuída esta natureza de cunho alimentar à totalidade do crédito depositado na conta salário do devedor, pelo simples fato de ser fruto do seu trabalho. Vislumbramos que não. Mas antes de passar à discussão acerca destes limites, questão prejudicial que se apresenta é a possibilidade ou não de penhora sobre o salário deste devedor.

Para fundamentar nosso posicionamento, cumpre ressaltar que as normas previstas no direito processo civil foram elaboradas para servirem de instrumento à efetividade do direito comum, e não do trabalhista (haja vista, inclusive a inequívoca autonomia do direito processual do trabalho). Logo, não haveria razão (e nem qualquer sentido) que constasse, de forma expressa, na exceção contida no parágrafo 2º do artigo 649 do CPC a penhora para pagamento de créditos trabalhistas. Enquanto que na esfera do direito comum o exemplo típico de parcela de caráter subsistencial se concentra na prestação alimentícia, a maior parte dos créditos decorrentes de uma relação empregatícia também apresenta esta mesma natureza.

Em sendo assim, e diante da omissão legislativa trabalhista, não há razão para que, quando da aplicação subsidiária do direito processual comum, deixarmos de proceder à interpretação ampliativa mais adequada à realidade laboral, possibilitando também, e a título excetivo, a penhora no salário do devedor de créditos trabalhistas.

Trata-se, a nosso ver, do único modo de se atingir o fim social desta norma, quando devidamente inserida, de forma supletiva, na seara do direito processual do trabalho, na esteira da visão pós-positivista que deve permear a aplicação desta regra instrumental. Superada a controvérsia que gira em torno da possibilidade da penhora sobre o salário de devedor de crédito trabalhista, outra questão que exsurge são os seus exatos limites.

Ainda que defendamos a validade do ato de constrição judicial nestes casos, é certo que esta expropriação não pode, e nem deve, alcançar a totalidade dos valores depositados na conta salário do devedor, sob pena de promovermos, no contexto da já explicitada ponderação de interesses, verdadeiro atentado à dignidade da pessoa humana do executado, obstando a própria subsistência deste e de seus familiares.

Inicialmente, ao contrário do entendimento contido na OJ 153 da SBDI-2 do Tribunal Superior do Trabalho, vislumbramos que o numerário existente em fundos de investimento ou poupança são passíveis de penhora, posto configurarem uma autêntica reserva de capital, o que faz perecer o seu caráter alimentar ou subsistencial. Até porque a nova redação do artigo 655, inciso I, do CPC, dada pela mesma Lei 11.382/2006, estabelece que a penhora observará, preferencialmente, na ordem de gradação, o dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira.

Consoante as diretrizes traçadas pelo novel artigo 655-A do CPC e seus parágrafos 1º e 2º, a fim de possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exequente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indicado na execução.

Estas informações limitar-se-ão à existência ou não de depósito ou aplicação até o valor indicado na execução, competindo ao executado comprovar que as quantias depositadas em conta corrente referem-se à hipótese do inciso IV do caput do artigo 649 do CPC ou que estão revestidas de outra forma de impenhorabilidade.

Em não havendo valores consignados em fundo de investimento ou poupança, ou caso estes sejam insuficientes à satisfação da totalidade do crédito exequendo, a penhora pode vir a alcançar um percentual do valor do salário. Esta possibilidade vai depender do exame do caso contrário, à luz do princípio da razoabilidade, que deve orientar o juiz quando da decisão, em autêntica ponderação de interesses.

Aspectos relacionados ao montante da execução e dos valores consignados na conta salário do devedor, além da efetiva existência ou não de outros bens, dotados de efetiva liquidez, que possam ser passíveis de penhora, devem ser analisados pelo magistrado, a fim de que possa adotar a decisão necessária, adequada e mais equânime ao caso específico.

Num primeiro plano, e a título exemplificativo, não se mostra razoável, nem mesmo condizente com o fundamento da dignidade da pessoa humana (CF/88, artigo 1º, III), a determinação de penhora no salário do devedor trabalhista, quando o numerário depositado é parco ou dentro de um limite em que se presuma a utilização de sua integralidade à satisfação das necessidades básicas do executado e de sua família.

De outra sorte, não há como se deixar de proceder à penhora na remuneração do devedor empregado, quando esta se mostre vultosa, ou bem acima daquele valor mínimo perfeitamente hábil a atender à finalidade subsistencial. Nesta hipótese, o percentual a ser fixado pelo juiz no ato de constrição judicial também deve observar o princípio da proporcionalidade em cotejo com as circunstâncias que envolvam a situação fática apresentada.

Concluindo o estudo a que ora nos propomos, defendemos tese no sentido de ser perfeitamente possível a penhora sobre salário do devedor de crédito trabalhista, atribuindo às regras instituídas no artigo 649, inciso IV, e parágrafo 2º, do CPC, quando da aplicação supletiva ao direito processual do trabalho (CLT, art. 769), interpretação condizente com os princípios e com a própria realidade que cerca a esfera trabalhista.

Em franca ponderação de interesses, muita das vezes a tutela conferida ao devedor empregado pelo fundamento da dignidade da pessoa humana deve ser mitigada (mas não rechaçada) em favor da subsistência e da própria dignidade do credor trabalhista, que, em sua essência, já traz o estigma da hipossuficiência econômica.

Os limites desta expropriação no patrimônio remuneratório do executado devem ser fixados à luz da proporcionalidade e da razoabilidade pelo juízo da execução, a fim de atribuir efetividade à decisão exequenda, no contexto de um processo célere e com razoável duração, mas sem perder de vista a dignidade da pessoa humana do devedor e o regramento contido no artigo 620 do CPC, que assegura a execução da forma menos gravosa ao executado, quando por vários meios o credor puder promovê-la.

Imbuído da certeza de que o presente estudo está muito longe de esgotar os instigantes e profícuos debates que podem ser desencadeados pela apreciação da matéria, almejamos apenas levar a nossa contribuição ao enriquecimento da discussão, estando sempre abertos a novas considerações e aos sempre respeitáveis pontos de vista em contrário.

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