Benesse aos sonegadores

A “função social do crime” em terrae brasilis

Autor

11 de outubro de 2009, 14h01

Há um filme sobre uma peça de teatro que pretende contar a Revolução Francesa. Na primeira cena, o Rei e a Rainha fogem da França e são recapturados na fronteira. Alguém reclama, dizendo que a Revolução deve ser contada de outro modo. Na nova cena, aparece uma bacia com água quente, uma camponesa pronta para dar à luz e a parteira. Na sequência, entra um aristocrata, que voltava da caçada. Vendo aquela água límpida lava as suas botas sujas na bacia destinada ao parto. Desdém, deboche e desprezo. Pronto: é assim que se conta a origem da Revolução. Assim se resgata a capacidade de indignação.

Pois vendo o projeto de lei federal, que pretende conceder anistia a quem tenha remetido dinheiro ao exterior de forma ilegal (criminosa), penso no despudor do caçador aristocrata. O que mais falta fazer em terrae brasilis? Que somos pré-modernos, Raimundo Faoro já de há muito comprovara, mostrando como ainda somos governados por estamentos. Weberiamente, ele explicou as raízes do nosso amor ao nepotismo e ao patrimonialismo.

Bilhões de dólares foram sonegados, lavados e remetidos à socapa e à sorrelfa ao exterior. É tanto dinheiro para retornar, que já se teme uma queda no câmbio (o que é ruim para as exportações). O que não está dito é que a pesada máquina pública se mostrou ineficiente para punir os criminosos (afinal, la ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos…, e, é claro, as leis desfuncionais colaboraram para esse mau resultado). Então, qual é a solução? Ora, vamos anistiar os criminosos do colarinho branco; e, na sequência, um bom discurso para criarmos mais cargos públicos para o combate à sonegação e à evasão de divisas; e, na sequência, outra anistia…! Lembremos sempre do Dr. Pangloss, do Cândido (Voltaire): vivemos no melhor dos mundos.

Na verdade, somos bons nisso. De há muito perseguimos com êxito ladrões de galinha e de sabonetes, mas não somos tão bons para “pegar” sonegadores e lavadores de dinheiro. Por todos, lembremos do “grande” Marcos Valério, que, recentemente, mesmo já condenado à prisão, pagou o valor sonegado e teve extinta a sua punibilidade (a seu favor, a bondosa Lei 10.684 e uma generosa interpretação dada ao artigo 9º.). Se não fosse trágico, seria engraçado, porque, ao mesmo tempo, milhares de ladrões (sic) continuam encarcerados (lembremos que temos mais de trezentos mil presos no Brasil por crimes contra o patrimônio individual e pouquíssimos por crimes de sonegação ou evasão de divisas).

Veja-se: pelo projeto “anistiador”, que já passou no Senado (que surpresa!), basta que o “cidadão” declare o valor que remeteu ao exterior, pague o imposto de 6% e estará anistiado. Portanto, vale a pena remeter dinheiro ilegal para o exterior, pois não? Ou seja: o crime compensa. E, atenção: o sigilo será preservado (ainda bem… imagine-se que o povo saiba o nome dessas pessoas…!)! É a função social do crime! Já imagino adesivos em automóveis (de valor acima de U$ 200 mil, é claro) do tipo: tenho consciência social: trouxe meu dinheiro de volta! De minha parte, já aviso que, com base no princípio da igualdade, passarei a propor, em todos os processos criminais da “patuléia”, anistia a todos aqueles que devolverem o valor furtado, apropriado indevidamente, etc. Afinal, se vale para o “estamenteiros”, por que não estender a benesse à turma res-do-chão?

De todo modo, há uma boa notícia: acaso aprovada a anistia, cabe a declaração de sua inconstitucionalidade (tenho a convicção de que há juízes nas “Berlins” de terrae brasilis). Assim como já propus várias vezes (embora derrotado) em relação à benesse dada aos sonegadores (pagamento em troca da extinção do crime), penso que esse tipo de anistia é absolutamente inconstitucional, porque fere o princípio da proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) e à isonomia (é claro que a extinção da punibilidade de que trata a Lei 10.684 não é uma “anistia”; o que estou a tratar é de tratamentos equânimes na República!). Parece evidente que o Estado não pode discriminar na descriminalização… (ou o nome que se dê a essa extinção de punibilidade)!

Em suma: permitamos que todos se locupletem ou restauremos a moralidade, já se disse um dia. Talvez esteja faltando o que Mario Benedetti cobrava dos uruguaios no livro “A Trégua”: um autoenojamento. Ou estoquemos comida! Logo.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!