Esther Ferraz

Professora Esther. Para mim, Tetê.

Autor

  • Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade

    é advogada graduada pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Direito Empresarial pela USP ex-conselheira da OAB-SP durante 12 anos membro do Instituto dos Advogados de SP da Academia Paulista de Letras Jurídicas e da Academia Paulista Direito do Trabalho ex-vice presidente Aliança Francesa de SP conselheira da AATSP palestrante e debatedora sobre temas jurídicos.

25 de novembro de 2009, 16h24

A primeira lembrança que tenho de minha tia Esther, da Tetê, remonta ao ano de 1963, quando eu, ainda menina, vim com minha mãe Pituca, sua irmã caçula, de São José do Rio Preto para morar em São Paulo, na casa de meus avós maternos.

E ela ainda morava lá no casarão da Avenida Rodrigues Alves número 315, na Vila Mariana, prestes a se mudar para seu apartamento da Rua São Carlos do Pinhal, gesto que entendo como seu primeiro grito de independência perante meus avós, muito especialmente perante minha avó Julieta, cuja braveza e rigor eram públicos e notórios na pacata São Paulo de então.

Lembro-me bem da Tetê, com seu fusquinha bege-claro do ano, colocando-me no banco de trás para me levar até a loja Sears da Praça Oswaldo Cruz, onde me presenteou com meu primeiro maiô, uma peça meio azulada que eu gostei tanto que ela deixou que voltássemos para casa vestida com aquele maiô de helanca e com as indefectíveis botinhas ortopédicas do Dr. Scholl, que eu já usava.

Da Tetê que passeava feliz da vida com a sobrinha “caipira” vestida de maiô e com botinhas do Dr. Scholl, recém chegada do interior, São José do Rio Preto, até a Tetê de 2008, ano em que ela nos deixou, décadas de feliz convivência e enorme privilégio se passaram, marcando em definitivo tanto minha vida pessoal quanto minha vida profissional.

Na verdade, tive duas mães, Pituca e a Tetê, que após aquele triste agosto de 1985, veio preencher o vazio sentido.

FACULDADE – Largo de São Francisco
Quando a FUVEST publicou o resultado da 2ª fase em janeiro de 1977, minha mãe estava em nossa fazenda de Lins, e assim, quem foi comigo comemorar a entrada nas Arcadas foi a Tetê, que me levou para jantar naquela noite no restaurante do Terraço Itália. Ia me falando de nomes de Mestres cuja sonoridade musical eu já conhecia de tanto ouvir comentários a respeito em nossa casa, onde se respirava Direito.

Nomes como Prof. Dr. Alexandre Correia, (pai e filho: o filho, colega da Turma de 1947 de minha mãe), Miguel Reale, (pai e filho), Waldemar Moniz da Rocha Barros, Goffredo da Silva Telles Jr., Cesarino Jr., Octávio Bueno Magano, Cássio de Mesquita Barros Jr., Paulo José da Costa Jr, também da Turma de 1947, Ivette Senise Ferreira, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, José Cretella Jr., Basileu Garcia, Alfredo Buzaid, Waldemar Mariz de Oliveira, Mário Sérgio Duarte Garcia, Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, Márcio Thomás Bastos, Arnaldo Malheiros Filho, Cid Vieira de Souza, Modesto de Souza Barros Carvalhosa, Silvio Rodrigues, Washington de Barros Monteiro, Marota Rangel e Drenadir Coelho, então secretária da Faculdade, já me eram familiares. Na verdade, eu cresci ouvindo “a musicalidade ” destes nomes fundamentais para o ensino do Direito e para quem, como eu, desejava seguir a carreira da qual me orgulho tanto.

Estes Professores e Advogados, cujos nomes já a mim soavam tão familiares, passaram a ser personagens de nossas conversas frequentes, pois quando ingressei na Faculdade, ela ainda lecionava Direito Penal no 5º ano da Especialização e passei a frequentar a Sala dos Professores, acompanhando-a sempre.

Teté era queridíssima na Faculdade: alunos e pares sempre a distinguiam muito. Querida, aliás, também na Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde foi a primeira Reitora, e na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, onde também lecionava Direito Judiciário Penal.

Quando ela era Reitora do Mackenzie, eu, ainda muito pequena, costumava acompanhá-la em seu mesmo fusquinha que ficava estacionado em frente ao auditório do Mackenzie. Já no prédio da Reitoria, Teté me deixava com uma paciente secretária, que me ensinava a “bater a máquina” enquanto resolvia “assuntos de alta indagação”.

Quando íamos embora, éramos inevitavelmente paradas e rodeadas pelos “seus alunos” no caminho e, para cada um deles jamais deixou de ter uma palavra de estímulo, de carinho, de entusiasmo.

Não sem razão, costumava dizer que o período do Mackenzie havia sido o “melhor de sua vida”.

Na época do famoso confronto político havido entre a Universidade Mackenzie e a Faculdade de Letras da USP na Rua Maria Antonia, os dirigentes do Mackenzie entenderam por bem arranjar-lhe um “segurança”, alguém que me lembro muito baixinho e que usava gravatinha borboleta. Pois bem, a Teté teve de ficar com o tal “gravatinha” todo o dia e, à noite, ela o levava a São Bernardo, onde dava aula. E como tivesse pena de deixar seu fiel segurança após o término de suas aulas noturnas no ABC, via de regra, entendeu ela dar carona a seu segurança “gravatinha” até a casa dele, isto altas horas da noite. Ficava aflita, dizia ela, de deixá-lo voltar sozinho para casa.

Essa era a minha tia: generosa, solidária, simples, simpática, grande, gigante em seus gestos.

O amor da Teté ao Mackenzie era uma constante e se revela em quase todos seus escritos, e é o que se vê, aliás, do trecho de sua entrevista ao Jornal do Advogado, em 2001, quando, perguntada pelos jornalistas Gaudêncio Torquato e Solange Barreira sobre qual teria sido o mais marcante dentre todos os cargos que exercera, respondeu: O de reitora da Universidade Mackenzie. Foi a melhor fase da minha vida. Lá, passei como professora de 1961 a 1965. Depois, de 1965 a 1971, fui reitora. Mas me apeguei muito aos meus alunos.“

Também seu amor por seus alunos mackenzistas se revela em seu discurso aos diplomandos de 1962 da Faculdade de Direito, verbis:

“Se tudo isso foi feito, se esse imenso trabalho, do qual, confesso-o sem tergiversar, fui eu a maior beneficiária, chegou a ser concretizado, devo-o exclusivamente aos meus alunos. Jamais me criaram eles um problema, pessoal ou mesmo disciplinar. Nunca me negaram sua atenção ou regatearam sua colaboração. Envolveram-me sempre numa atmosfera de respeitosa ternura, que deu as nossas relações um colorido íntimo e familiar, facilitando-nos os contactos e elevando a um grau superlativo o rendimento escolar. E, quando, ao fim de dois anos, atingimos a reta da chegada, rompendo ofegantes a fita simbólica que indicava o término de nosso esforços conjugados, aplaudiram-me delirantes como se fosse eu só a vencedora, chegando a brindar-me com as honras de um paraninfo. Esqueceram-se de que, sem eles, sem aquela vibração jovem que eu sentira ininterruptamente ao meu lado; sem aquela ardente chama de entusiasmo que só a mocidade sabe e pode manter acesa sem desfalecimento; sem aquele irriquieto espírito de aventura que os levava — e a mim com eles — a tudo tentar, a muito ousar, a nada temer, sem isso provavelmente eu teria fracassado em minha missão, ou no máximo teria atravessado, de maneira inglória e melancólica, sem deixar lembranças ou saudades, o cenário de suas vidas universitárias” (Discurso pronunciado no Teatro Municipal, ao paraninfar a turma de diplomandos da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, de 1962).

Não fui sua aluna na graduação das Arcadas, somente no curso de Especialização Lato Sensu na disciplina “Metodologia do Ensino Jurídico”, e seu rigorismo era sobremaneira notado quando, ao não ter outra opção senão a de me atribuir a nota máxima, explicava-se aos demais colegas de classe: “a Gilda é minha sobrinha, teve nota 10, mas eu corrigi sua prova por último!”

Assim se passaram os cinco anos de faculdade, pena que muito rapidamente. Quando ela me dava carona para chegarmos juntas, logo cedinho — suas aulas eram sempre as primeiras — íamos comentando no trajeto as notícias recentemente por ambas lidas no Estadão do dia. Lembro-me bem quando, em 1977, ouvimos pelo rádio de seu carro que o presidente Geisel havia fechado o Congresso. Ela, triste e preocupada, comentou que teríamos pela frente períodos “dificílimos”, e o quanto seria complicado lecionar Direito em um estado de exceção.

Desvendando Brasília – Setembro de 1981
Quando foi nomeada Ministra, minha tia foi entrevistada pela jornalista Marília Gabriela, que à época apresentava um jornal matinal na TV Globo. Eu a acompanhei e me diverti muito quando ouvi, ao vivo, a resposta à seguinte pergunta da jornalista:

“Ministra, por que a senhora não se casou?”

Ela respondeu rápido: “Porque ninguém quis se casar comigo…”

Por ocasião da homenagem que o Conselho Federal de Educação lhe prestaria em Brasília quando de seu compulsório desligamento, a Tetê me levou para que eu representasse sua família na futura sessão solene do Conselho. Assim, e nessa ocasião, vim a conhecer nossa Capital.

Não demorou muito para que, naquele mesmo ano, 1982, ela fosse indicada para ocupar, como primeira mulher e como pioneira, as funções de Ministro de Estado da Educação e Cultura.

Infelizmente mesmo, e por compromissos profissionais inadiáveis à época, não compareci nem à cerimônia de posse nem à de transmissão de cargo em Brasília, mas fui brindada pela Teté com a caneta de ouro com que ela assinou seu termo de posse como Ministra, caneta esta que guardo muito carinhosamente dentre muitas lembranças da querida tia.

Quando de mudança para Brasília, convidou-me para com ela morar, pois não pretendia lá permanecer sozinha, longe dos irmãos e sobrinhos, em uma cidade até então desconhecida, mas que se revelou extremamente aprazível e hospitaleira, a ponto de lá ficarmos nos finais de semana para podermos usufruir da conhecida qualidade de vida proporcionada pela Capital do país.

Seu rigorismo no trato com a coisa pública foi imediato e, em alguns momentos, até exagerado: de pronto, pediu que fosse levado com sua mudança o automóvel particular, um Volkswagen modelo Brasília bege, carro que ela mesma costumava dirigir, com um segurança do Ministério da Educação a seu lado, “atônito” em suas poucas horas livres, pelas avenidas da Capital federal.

Nunca usou a piscina da residência que ocupávamos em Brasília, situada na QL12, cj 13, quadra 11, na Península dos Ministros, nem mesmo em finais de semana e feriados quando ficávamos por vezes na Capital Federal, dizia que a casa não era sua e que estava lá para trabalhar e não para “tomar banho de piscina”.

Recebia para jantar, pelo menos uma vez por mês, seus amigos do Conselho Federal de Educação e alguns jornalistas setoristas que cobriam a área da educação.

Lembro-me especialmente de um desses jantares, quando um amigo seu, antigo membro do Conselho, homem de letras inteligentíssimo, muito simpático e muito culto, me chamou de lado e me disse: “Gilda, sua tia não gosta mais de mim…” Ao que lhe respondi: “Como? Ela adora o senhor, pediu-me que fosse pessoalmente buscá-lo no aeroporto e no hotel”. Ao que ele retrucou: “Por que então ela está me servindo vinho da EMBRAPA [Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias] nesta noite?” Rimos muito e, de imediato, pedi que o tal vinho da EMBRAPA sumisse do jantar, pelo menos naquela noite.

Fez muitos amigos em Brasília, dentre os quais se impõe destacar a pessoa da Dra. Yesis Amoedo Passarinho, cujo marido era então Ministro do Supremo Tribunal Federal á época. Foi a Dra. Yesis Passarinho, com quem trabalhara no Conselho por tantos anos na Câmara de Legislação e Normas, a homenageada em seu discurso de despedida do Conselho Federal de Educação, valendo a pena a transcrição do seguinte trecho, verbis:

“(…) Quero, finalmente, dirigir um agradecimento muito cordial aos que integram o corpo administrativo do Conselho, do Secretário Executivo ao mais modesto de todos os funcionários, e muito particularmente aos que servem ou serviram na Câmara de Legislação e Normas na qual me fixei desde que passei a integrar este colegiado. Sei que não cometerei injustiça, antes serei bem compreendida, se fizer um destaque em relação à pessoa da professora e doutora Yesis Amoedo Passarinho, funcionária exemplar, criatura admirável sob todos os pontos de vista, amiga querida de cujo convívio me separo com verdadeira saudade, tanto lhe devo em termos de dedicação e de companheirismo. Homenageando-a sei que homenageio, por extensão, todos os que aqui trabalham”.

Esther de Figueiredo Ferraz foi a única mulher, até os dias atuais, a se responsabilizar pela Educação em um governo Federal. Também foi a primeira mulher a ocupar a Reitoria de uma Universidade na América Latina, e a primeira ministra de toda a História da República.

Foi a primeira mulher a integrar o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional paulista, e a primeira a prestar concurso para ingresso na docência em Direito na Universidade de São Paulo, em 1948. A este respeito, aliás, vale a pena a recordação de um fato: um dos professores catedráticos que comporiam a banca que a examinaria se recusou a participar, sob o seguinte argumento: “Fossem quais fossem os resultados, a candidata era uma mulher“.

Soube por minha tia que, mais tarde, ela teve a oportunidade de encontrar profissionalmente esse seu Mestre e lhe perguntou:“Professor, por que o Senhor não quis compor a minha banca?”. Ele lhe respondeu: “Esther, tive um acesso de burrice naquela época!”.

E se tornaram grandes amigos.

Sua gestão, como Ministra de Estado, teve um emblema: ela contribuiu muito pela aprovação e pela regulamentação da chamada Emenda Calmon, que vinculava a verba da educação à receita federal dos estados e dos municípios. Esta emenda era de autoria do então senador João Calmon.

A regulamentação foi feita pelos Ministérios da Educação e da Fazenda, a quatro mãos: as dela e as do então Ministro Delfim Netto. Havia uma espécie de movimento contra a vinculação, mas a Educação era para Teté a prioridade das prioridades. Então era necessário, imprescindível mesmo, que ela gozasse desse benefício da vinculação.

Minha tia costumava explicar a vinculação com aquela história da panela de barro e da panela de ferro, se elas se chocam, a que vai quebrar é a panela de barro, que é a educação. Quando deixou o Ministério, o segundo orçamento da República, na frente de todos os ministérios militares somados, era o da Educação. Só o orçamento dos Transportes era maior do que o da Educação.

Lembro-me que a emenda Calmon foi aprovada com muita dificuldade pelo Congresso. Entrou em pauta duas vezes. Primeiro, todo mundo aplaudiu, mas quando chegou a hora de votar, ninguém apareceu, não houve quórum. Mais tarde, foi apresentada de novo e passou.

Nunca criticou ou mesmo reprovou seus sucessores no MEC. Ao revés, sempre que podia, enaltecia-lhes os feitos.

Dizia ela, até muito recentemente, que seus sucessores foram responsáveis por muita coisa boa também, como a obrigatoriedade até o ensino fundamental, abrangendo também o antigo ginásio, em boas escolas federais por toda parte, o que, segundo dizia,“era muito caro”.

Não era favorável ao ensino público ou ao particular, mas sim ao bom ensino, e sabia perfeitamente que o poder público não tinha — e não tem — condições de manter todas as pessoas e suas necessidades. Incentivava e prestigiava uma boa universidade particular, mas acreditava que uma má Escola não deveria sequer nascer. Costumava dizer que “a falta de escola é um mal, mas a escola ruim é uma calamidade”.

Por ocasião da primeira grande greve das Universidades Federais, em seu governo, greve que se estendeu por vários meses, com piquetes e aglomerações de estudantes e de professores na porta de faculdades e no próprio Ministério da Educação em Brasília, muito particularmente na entrada privativa do Ministro no próprio MEC, um fato merece registro. Em uma das vezes, ouvi a segurança orientando-a a ir ao Ministério, mas nele adentrar pela porta do “prédio Anexo”, vale dizer, porta dos fundos. Ela respondeu: “Coronel, no dia em que eu que não puder entrar em meu Ministério pela porta da frente, eu volto para São Paulo.”

Assim foi. Ela passou pelo corredor polonês dos então grevistas e conseguiu, dias depois, o “cessar-greve”, quando recebeu uma comissão de grevistas e os atendeu em vários itens da pauta reivindicatória, atitude até então impensável e inimaginável em um governo militar da época.

Deixou Brasília e o ministério debaixo de aplausos, literalmente.

No dia em que voltou a São Paulo, ao fim do governo, colaboradores, amigos e funcionários foram dela se despedir, em massa, no saguão do aeroporto de Brasília, formando uma enorme aglomeração de pessoas amigas que a cercaram de gentilezas por quase três anos. Chorou muito naquele vôo da Vasp em direção a São Paulo.

ESTHER JURISTA e ADVOGADA
”A nossa lei penal é boa. Mas se faz necessário explorá-la até as últimas consequências, sobretudo, na parte da execução. É a execução penal que está faltando, não é a lei e muito menos a sua aplicação.”

“Outro dia me perguntaram o que eu via de errado no tratamento dos menores delinquentes. Em tese, acho tudo errado.”

Era uma entusiasta do Direito, muito especialmente do Direito Penal.

Costumava dizer que “o povo brasileiro tem mania de pensar que qualquer problema pode ser resolvido só com uma boa lei. Precisamos de ações, na linha social, que ajam diretamente sobre o indivíduo. A nossa lei penal é boa. Mas se faz necessário explorá-la até as últimas consequências, sobretudo, na parte da execução. É a execução penal que está faltando, não é a lei e muito menos a sua aplicação. Nossos juízes são bons. Tenho do Poder Judiciário a melhor das impressões. Mas depois que o réu é submetido à execução, aí começa o problema: são poucas prisões, nem todas são prisões especiais, e há o dilema do cumprimento da pena.” Entrevista Jornal do Advogado, op. Citada.

Conversávamos muito, inclusive sobre temas polêmicos e candentes, tais como pena de morte e menores delinquentes.

Tetê sempre foi contra a pena de morte.

Dizia ela: “Sempre fui contra a pena de morte e sempre serei. Um grande criminalista italiano, que era a favor da pena de morte, resolveu fazer uma experiência acompanhando os últimos dias de um condenado à morte. Ficou tão horrorizado, que mudou de opinião. Além disso, há países em que se aplica a pena de morte e, nem por isso, a criminalidade diminuiu. Precisamos levar essas coisas a sério.”

“Há poucos dias, me perguntaram o que eu via de errado no tratamento dos menores delinquentes. Em tese, acho tudo errado. O que deve haver não é uma prisão, mas sim uma escola interna. Lá, o aluno deveria passar o dia inteiro fazendo alguma coisa útil, para que, no final, pudesse se converter em um homem de bem. Por outro lado, o pessoal que lida com infratores precisa ser treinado para ter poder de ação sobre eles, e uma função docente.”

Era favorável às penas alternativas, desde que, segundo argumentava, “sua execução pudesse ser acompanhada. Porque você veja o sursis: praticamente desapareceu da nossa prática. Mas é muito bom. Só que não há um acompanhamento. O preso sai e fica entregue a si próprio. A primeira coisa que ele faz é furtar outra vez. De maneira que é preciso levar até as últimas consequências aquilo que já está no Código Penal, no Código de Processo Penal e nas leis das Execuções Penais. Mais: é preciso arregaçar as mangas, meter a mão na massa. Lançar mão de outros tipos de ação, sobretudo na área social, para evitar que a delinquência ocorra.”

DA RELAÇÃO ADVOGADO-CLIENTE
À relação entre o advogado e o cliente, minha tia se consagrou e se dedicou de corpo e alma, como aliás, fez constar de um artigo publicado em 1956, em semanário desta Capital, sob o título Elogio do Advogado feito por ele próprio. Nele, ela analisa uma das faces mais significativas da relação, qual seja a gratuita confiança depositada pelo futuro cliente na pessoa do futuro defensor.

Não poderia deixar de transcrever alguns trechos mais significativos do que, dizia ela, era uma “incontida declaração de amor”, verbis:

“Entra-me pela porta do escritório um homem cujo nome, idade, profissão, condição social, vida pregressa, ignoro completamente. Também para ele sou uma desconhecida; exceção feita a meu nome e a meu título profissional, não sabe quem eu seja na realidade: qual minha exata maneira de pensar, de sentir, quais meus antecedentes pessoais e familiares, se estou ou não em condições de o comprometer ou ajudar. No entanto, essa criatura cuja própria existência física eu ignorava momentos atrás, a um simples gesto meu autorizando-o a falar, se põe a narrar-me minudentemente sua vida, confessando-me o que jamais ousaria confessar ao pai, à esposa, a um padre ou mesmo a si próprio. Desnuda-me a alma, mostrando-me em toda sua miséria, sem me esconder uma ferida, uma chaga, um carcinoma. Leva-me até a intimidade de sua alcova e me permite defrontar o segredo de seu fracasso matrimonial. Ou então, cabeça baixa e olhar esquivo, explica-me como furtou, como falsificou um cheque, como se deixou corromper no exercício de função pública, como e onde escondeu o produto do crime. Outras vezes, enfim, afirma-se vítima de injusta acusação, revelando o temor de não poder provar convincentemente sua inocência posta em dúvida. E em todos esses casos exibe as provas que lhe socorrem ou lhe comprometem o direito, que o incriminam ou lhe amparam a absolvição. Sabe – embora não me conheça – que, ainda que eu não lhe aceite a causa, jamais usarei dessas informações em seu prejuízo. Fornece-me documentos preciosos e únicos que são a chave de sua defesa ou que, ao contrário, constituem a prova material de sua culpa. Confia-nos sem mesmo exigir um recibo , e tem a certeza – sempre sem me conhecer – de que nem por todo o ouro do mundo eu os sonegaria ou os deixaria cair em mãos da parte adversa.

Encerra-se a entrevista e, pela porta do escritório, sai um homem que para mim já não é mais um estranho. Eu, ao contrário, continuo a ser para ele o mesmo enigma inicial. Ainda não sabe quem eu seja na realidade: qual minha exata maneira de pensar, de agir, de sentir, quais meus antecedentes pessoais e familiares, se estou ou não realmente, em condições de ajudá-lo. Mas de uma coisa está certo: não o trairei. Tem a absoluta e sólida convicção de que aquela desconhecida que ficou para trás – depositária do seu segredo, senhora do seu destino e de sua felicidade – de agora em diante preferirá sacrificar-se a sacrificá-lo, deixar-se-á, se necessário, matar, mas não permitirá que um só ato seu desmereça a confiança com que a honrou o desconhecido de minutos atrás.

Bastariam esses poucos minutos – essa poeira de tempo escoada entre o abrir e o fechar de uma porta – para nos convencer de toda a beleza e grandeza da profissão de advogado. A homenagem que a cada um de nós e, conseqüentemente, à carreira que abraçamos, presta cada cliente que nos entrega o patrocínio de uma causa é tão eloqüente que bem se compreende o alcance da expressão de Voltaire quando, referindo-se a sua verdadeira tendência vocacional, suspirou: “Eu quisera ter sido advogado, é a mais bela profissão deste mundo”

Não importa que os profissionais de outro ofício injustamente nos representem, como diz Henri Robert “sob a figura de insuportáveis falastrões, intrigantes, amantes da chicana, das fraudes, das demandas, hábeis em defender todas as causas, pleiteando o reconhecimento da inocência mesmo quando convencidos da culpabilidade dos clientes”. Ou que o público leigo veja em nossa carreira a “arte de legalizar a fraude”, ou a “defesa sofista do que é torto”. Que os demais membros da família judiciária às vezes subestimem a importância de nossa contribuição, seja ao desenvolvimento

do Direito, seja à própria obra da distribuição da Justiça. Pouco importa, enfim, que o cliente, uma vez servido, num gesto de ingratidão que já não nos surpreende mas ainda nos consegue ferir, nos vire as costas e nos atire pedras, atribuindo a outros fatores – ao seu bom direito, à ciência e à superioridade dos juízes, ao desleixo da parte contrária – o êxito da causa por nós patrocinada. Tudo isso nada significa. Enquanto houver sobre a face da terra o gesto incessantemente renovado de um homem que bate à porta de um desconhecido e lhe confia a defesa de sua liberdade, de sua honra, de sua família, de seu patrimônio, bens supremos que constituem a razão de ser de nossa existência, estará sendo feita a apologia da profissão de advogado”.

SOBRE A CORRUPÇÃO
“O fenômeno, agora, se exacerbou, mas, de uma maneira menos grave, sempre existiu. Só que os meios de comunicação, hoje, põem a nu a realidade. E isso é bom, desde que não haja excessos. A função da imprensa é de uma importância enorme. Prestigio a imprensa, desde que ela não fira os direitos dos que, às vezes, não fizeram coisa alguma. Porque esses, depois de acusados, não conseguem mais se recuperar no conceito público.”

SOBRE A AMIZADE
Minha grande ambição na vida, talvez a única de que me dê conta, sempre foi a de fazer amigos. Amigos, tenho de todas as idades: os que fui buscar na geração de meus pais e até mesmo na de meus avós,sequiosa de uma ternura que só os mais velhos sabem reservar aos mais moços, ternura que vem do alto e escorre verticalmente de mãos já menos firmes mas muito mais compreensivas, afeitas aos gestos santos de perdoar e de lançar a benção: amigos que fiz entre os de minha geração, ávida de um afeto que só nos pode vir pela linha horizontal do fraterno companheirismo, rapazes e moças que começaram comigo, comigo lutaram, sofreram, venceram, e comigo, se Deus quiser, hão de ir até o fim:amigos que consegui arrebanhar na geração dos que seriam meus filhos se os tivesse, e que a mim me tem sabido envolver, mesmo em seus repentes de rebeldia e de agressividade reivindicatória, numa onda de carinho que talvez não chegasse até a mim caso se tratasse de filhos do meu sangue. Uma imensa variedade de amigos: amigos professores, amigos colegas, amigos alunos, amigos chefes, amigos subordinados, amigos homens ou mulheres, amigos abastados e poderosos aos quais eu poderia, em caso de emergência, dirigir um SOS aflito, e amigos pobres e modestos que diante da minha palma estendida só teriam para oferecer-me o sorriso cordial ao que me desejam bom dia ou me servem o café.

Desses amigos – de todos eles e de cada um em particular – tem vindo a seiva de que se alimenta a árvore da minha vida, e se essa árvore de quando em quando se engalana de flores e se algumas destas se transmudam em frutos, a eles, não a mim, hão de caber os aplausos pela ocorrência dessas discretas primaveras e desses humildes outonos.” (in Discurso de agradecimento ao deixar em 1981 o Conselho Federal de Educação).

“A amizade para mim é a mais elevada de todas as emoções humanas, porque ela é gratuita. Ao passo que o amor é interesseiro no sentido de que ele dá e quer receber. Tenho uma legião de amigos e isso me conforta.”

Minha tia sempre me passou uma imagem de ser uma mulher realizada, muito embora admitisse que Deus não lhe havia dado tudo, sei que gostaria de ter se casado. Dizia ela em uma entrevista que “hoje, é perfeitamente possível a mulher ser uma profissional e ser casada. Gostaria de ter encontrado um bom companheiro, para usufruir os dias de alegria e suportar os dias de tristeza. A mim não ocorreu. Mas não faço disso uma tragédia. Substituí pelo sentimento de amizade.”

Afirmava que, do ponto de vista jurídico, a mulher casada só teve os mesmos direitos do homem casado a partir de 1962. Segundo ela, não bastava que os direitos fossem declarados, eles teriam que ser usufruídos.

Lembro-me que foi muito procurada para se pronunciar na época da indicação da Ministra Ellen Gracie ao STF. Assim respondeu a uma entrevistadora: “Hoje, as mulheres estão ocupando todos os cargos, até no Supremo Tribunal Federal tem uma ministra, a Dra. Ellen Gracie, que além de tudo ainda é bonita.”

Possuía um senso de humor fantástico, refinado, e tinha tiradas muito engraçadas. Divertia-se, por exemplo, com seu amigo Ministro Saulo Ramos, e quando se encontravam, inevitavelmente travavam o seguinte diálogo:

— Esther, você é a mulher da minha vida!

E ela respondia rapidamente:

— Mas você vive casando com outra!

Divertíamo-nos muito juntas, éramos muito amigas e companheiras sempre afinadas, próximas até em termos geográficos, pois quando ela vendeu sua boa casa da Rua General Fonseca Telles, foi procurar um apartamento localizado a apenas alguns metros do meu, para ficarmos próximas uma da outra na Alameda Franca. Essa proximidade se revelou muito importante, providencial mesmo, especialmente nos últimos anos de sua vida, haja vista que fui eu a acompanhá-la em todas as suas internações hospitalares, inclusive na última vez, quando sofreu um acidente vascular cerebral.

Muito difícil escrever o que a Teté, a Prof. Esther de Figueiredo Ferraz, significou para mim.

Difícil também homenageá-la em um artigo com feições tão familiares, intimistas e pessoais. Se viva estivesse, certamente iria me fazer imprimi-lo e levá-lo para que o lesse, assim foi em tantas vezes.

Tive o privilégio de ter usufruído como poucos sua companhia e sua inteligência por longos anos. Sua vida foi pautada pela ética, pela compreensão, pela amizade, pela modéstia, pela ousadia e pela ternura.

As palavras nesse instante me são tímidas.

Teté, quantas saudades de você!

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