Verdade seja dita

São Paulo não segue modelo da CF de defesa dos pobres

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4 de novembro de 2009, 5h09

O serviço de assistência judiciária aos necessitados do Estado de São Paulo vive um momento peculiar de sua existência. É de conhecimento geral o embate entre a Defensoria e a OAB locais sobre tal acordo, que teve sua vigência prorrogada por ordem judicial. Nossa intenção nesse breve escrito é comparar o modelo constitucional de assistência judiciária com o modelo paulista e apontar nossa opinião sobre o atual estado de coisas.

Verdade seja dita: o estado de São Paulo reluta em seguir o modelo constitucional para a defesa dos hipossuficientes. Na prática, atuam advogados particulares, sem as garantias conferidas aos defensores públicos e indicados por outro órgão que não a Instituição constitucionalmente projetada para garantir a assistência jurídica aos necessitados. A legislação paulista consolida, portanto, um “quadro histórico de inconstitucionalidade”. Vejamos.

A assistência jurídica aos necessitados é direito fundamental e obrigação do Estado (art. 5º, LXXIV). A constituição determina que a orientação jurídica e a defesa dos hipossuficientes compete à Defensoria Pública (art. 134). Trata-se de instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, que goza de autonomia e independência (art. 133, § 2º).

Segundo a Constituição Cidadã, portanto, a Defensoria Pública é a instituição incumbida de prestar a assistência judiciária, que está contida na garantia de assistência jurídica aos necessitados do artigo 5º.

A Defensoria paulista foi criada depois de 18 anos de vigência do mandamento constitucional. Isso no mesmo estado em que primeiro se implantou o serviço de assistência judiciária, em 1935. Já em 1994 o STF reconhecia a omissão de São Paulo em organizar, de forma competente, sua Defensoria Pública, a ponto de considerar o art. 68 do Código de Processo Penal ainda constitucional (RE 135.328).

O texto da constituição é imperativo, mas até 2006 a assistência judiciária era prestada por um braço da Procuradoria-Geral do Estado, com o auxílio de advogados particulares, conveniados. O convênio se mantém por 24 anos e hoje é celebrado com a Defensoria. Não se pode ignorar, portanto, a contribuição da advocacia paulista nesse quarto de século de omissão do Legislativo bandeirante.

Não é, contudo, tarefa dos advogados particulares prestarem a assistência judiciária. Tanto que constituição bandeirante trata do convênio como medida excepcional (art. 109), e determina que cabe à OAB paulista indicar os advogados que prestarão o serviço. No mesmo sentido, a Lei Complementar Estadual 988/2006 dispõe que o acordo visa suplementar as atribuições institucionais da Defensoria Pública estadual. Diz, ademais, que cabe à seccional da OAB credenciar os advogados participantes, e que a remuneração será definida pela Defensoria e pela Seccional da Ordem dos Advogados paulistas (art. 234).

Não nos parece que este tratamento seja adequado ao sistema da constituição de 88, sobretudo porque permite intervenções da OAB na função institucional da Defensoria, contrariando a autonomia de que a EC 45 lhe dotou.

Com este espírito, foi proposta Ação Direta de Inconstitucionalidade contra os dispositivos da constituição e da lei complementar estaduais. Alega-se: (i) que o modelo de gestão paulista ofende a autonomia constitucional da Defensoria Pública (art. 134), porque implica no comprometimento dos recursos a ela destinados; e (ii) que a deficiência da Defensoria bandeirante se perpetua em razão da ausência eterna de previsões orçamentárias suficientes para possibilitar qualquer medida de expansão. (O valor é expressivo: no orçamento, a rubrica para pagamento do convênio em 2008 era de R$ 293 milhões).

Até que a ADI seja julgada, lembramos que o STF já recusou, em termos absolutos, a contratação temporária de advogados para exercer a função de defensores públicos substitutos. Decidiu o Pleno que, por desempenhar, com exclusividade, um mister estatal genuíno e essencial à jurisdição, a Defensoria Pública não convive com a possibilidade de que seus agentes sejam recrutados em caráter precário. Urge estruturá-la em cargos de provimento efetivo e, mais que isso, cargos de carreira. A estruturação da Defensoria Pública em cargos de carreira, providos mediante concurso público de provas e títulos, opera como garantia da independência técnica da instituição, a se refletir na boa qualidade da assistência a que fazem jus os estratos mais economicamente débeis da coletividade (ADI 3.700).

Surpreende, a vista do dito até aqui, que a Defensoria paulista tenha sido obrigada, por ordem judicial, a manter o convênio findo em 2008. A OAB local impetrou Mandado de Segurança e ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça do estado contra ato da instituição que, após o fim do convênio, instituiu o cadastro direto dos advogados com a instituição, sem a intermediação da Ordem paulista.

A Defensoria foi submetida, assim, aos interesses de entidade que é estranha à sua organização administrativa. O interesse dos advogados privados, por enquanto, prevaleceu sobre o da Instituição e, por conseguinte, sobre o dos necessitados. Como diz o ditado: em briga de elefante, quem sofre é a grama.

Lembramos, para terminar, a frase do prefácio à 23ª Edição de Introdução à Ciência do Direito, de Franco Montoro: “Mais grave do que o sofrimento dos famintos é a inconsciência dos fartos”.

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