Dever x direitos

Embargos à execução fiscal têm efeito suspensivo

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27 de março de 2009, 9h40

De maneira contrária ao Código de Processo Civil de 1939, o de 1973, em sua estrutura originária, unificou as execuções, submetendo-as todas ao mesmo processo, fossem elas fundadas em título executivo judicial ou extrajudicial. O executado era citado para, em 24 horas, pagar ou nomear bens à penhora, donde seguiam as medidas executivas destinadas à expropriação, priorizando a arrematação em hasta pública.

Garantido o juízo com a penhora, abria-se a via ordinária dos embargos para a defesa do executado, encerrando este vocábulo, em seu conteúdo semântico, a noção de obstáculo, óbice ou impedimento àquela execução.

Sob esta ótica, os embargos foram inseridos no CPC com o intuito primordial de paralisar o feito executivo mediante a garantia da execução, porque o título executivo extrajudicial (equiparado à sentença judicial para fins de expropriação) não havia em momento algum passado pelo crivo do Estado-Juiz, daí porque, garantido o juízo, tinham efeitos suspensivos de forma automática (artigo 739, parágrafo1º, CPC – Os embargos serão sempre recebidos com efeito suspensivo), perfazendo a penhora evidente pressuposto de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo[1].

Paralelamente a essa regência, em 1980 foi promulgada a Lei 6.830, disciplinando a cobrança das dívidas ativas das fazendas, havendo nela “regras próprias para a execução fiscal, instituindo-se, assim, um regime específico, que decorre da peculiar relação entre o particular e a Fazenda Pública”[2], mas com regramento análogo[3] e se lhe aplicando, subsidiariamente, o CPC.

Assim que publicada a Lei 11.382/06 que alterou o CPC e acrescentou o artigo 739-A, contudo, discute-se se os embargos à execução fiscal possuem efeitos suspensivos, havendo quem sustente que os efeitos suspensivos destes decorriam tão somente da aplicação subsidiária do CPC, e não de regramento próprio.

Os argumentos, em geral, são sobre a moderna processualística, os fins sociais do processo, de que nessa novel perspectiva não se comporta mais intenções protelatórias do devedor, incluindo aí os efeitos suspensivos dos embargos. Por todos, veja-se acórdão no TRF da 4ª Região[4].

Em que pese esse ponto de vista, tenho que os embargos à execução fiscal possuem em sua natureza o efeito suspensivo, incidindo especificamente a Lei 6.830/80.

É que esta lei possui sim disposições expressas sobre os embargos à execução, formando um microssistema relativo à procedimentalidade destes, prevendo a garantia do juízo como pressuposto de constituição e desenvolvimento válido e regular do processo (artigo 267, inciso IV, CPC – como de resto previa o CPC antes da Lei 11.382/06), derivando esta conclusão da interpretação sistemática dos artigos. 16, 17, 18 e 19 (o dito microssistema), especialmente da interpretação teleológica unitária do artigo 19 da lei, a contrario sensu.

De fato, de início, o artigo 16 da LEF exprime que os embargos serão interpostos no prazo de 30 dias, contados da segurança do juízo, sendo inadmissíveis se não houver esta (artigo 16, parágrafo 1º). Em seguida, dispõe sobre o contraditório, até revelar os efeitos dos embargos no artigo 19, prevendo este artigo que não sendo embargada a execução ou sendo rejeitados os embargos, terá ela seguimento.

Ora, se “não sendo embargada ou rejeitados os embargos, terá ela seguimento”, me parece lógico que “sendo embargada, não terá ela seguimento”. No mesmo sentido, veja-se alguns arestos de Tribunais Regionais Federais[5].

Note que não desnatura a previsão de efeito suspensivo aos embargos a existência, no mesmo normativo (artigo 19), de procedimentos relativos à penhora sobre bem de terceiro prevista no inciso IV do artigo 9 da mesma lei[6], como se denotasse que “somente a estes terceiros” estivesse garantido o direito ao efeito suspensivo, por absoluta impossibilidade de a lei distinguir os iguais (titulares de propriedade constrita).

Evence-se essa hipótese com a idéia de igualdade entre pessoas em situações iguais (ambos com propriedade constrita) além de, admitindo-a, ter-se uma impropriedade inadmissível: tendo o devedor principal bem constrito, não seguiria a execução, mas contra o terceiro que oferecesse um bem, seguiria.

Antes, parece que a norma cuida de efeito suspensivo geral para o caso de interposição de embargos e, sendo o bem que garante a execução de um terceiro, com o julgamento dos embargos, a expropriação desse bem, acaso ele não solucione o débito. Normativo que de resto me parece antes ter sido disposto por coação do que para ter eficácia.


De qualquer sorte, é certo que a questão dos efeitos suspensivos nos embargos à execução fiscal envolve a especialidade da lei[7] (lex posterior generalis non derogat priori speciali.) e também o due process of law, garantia constitucionalmente assegurada ao cidadão-contribuinte, como dispõem mestres como o acima já citado, Araken de Assis. Mas também vejo uma outra argumentação que acho imprescindível à solução do nó górdio.

Penso que a situação vivenciada por esta reforma legislativa, no fundo, remete a um choque entre dois princípios de escol que hodiernamente têm ganhado evidência, sendo estes os postulados do Dever Fundamental de Pagar Impostos[8] e dos Direitos Fundamentais dos Contribuintes[9].

Na minha perspectiva, esses dois princípios-mães são ilustrados e feitos concretos através da contraposição de entendimentos entre a) aplicar o artigo 739 do CPC à execução fiscal ou b) aplicar especificamente a Lei 6.830/80, ao entendimento de que ela prevê o efeito suspensivo aos embargos.

O Dever Fundamental de Pagar impostos, me parece, está por trás daqueles que buscam argumentos para extirpar o efeito suspensivo dos embargos e, assim, dar celeridade e efetividade à execução fiscal. Afinal, o imposto nem deveria ter sido devido. Devia-se-o pagar em dia. Ainda, me parece que aqueles que querem o efeito suspensivo têm por detrás desse entendimento, não só o respeito ao princípio da especialidade e ao due process of law, mas, antes desses, aos Direitos Fundamentais dos Contribuintes – dos quais poderíamos ter aqueles dois como espécie.

Na controvérsia, e sem tratamento aprofundado pela doutrina relativamente ao prefalado choque, até porque recente a alteração legislativa e nova essa idéia de Dever Fundamental de pagar impostos, tenho que é razoável conduzir a questão através do sopesamento desses princípios como dito por Dworkin, de forma a distensionar o conflito, mas para isso, não apenas buscar a menor redução de um no caso concreto, sem a incompatibilização do outro, porém, utilizando-se de aportes normativos encontrados no nosso próprio ordenamento, que induzam a prevalência de um ou outro princípio.

Assim, levando em consideração o artigo 620, CPC[10] e os artigos 111 e 112 do CTN[11], parece não ter como afastar o microssistema previsto na Lei 6.830/80 (artigos 16 a 19), porque esses sub-princípios fazem com que, no distensionamento entre aqueles princípios-mor, se dê prevalência ao segundo (Direitos Fundamentais dos Contribuintes).

Ainda, a não prevalência da Lei 6.8030/80 enseja em 1) aplicar regra geral posterior, 2) criando uma terceira e inóspita lei.

Essa terceira lei – em exercício no qual o juiz atuaria positivamente como legislador – teria como norma a “ausência de efeito suspensivo aos embargos à execução fiscal (aplicação do artigo 739-A do CPC, ad hipotesis), mas com a exigência da imprescindível garantia do juízo (prevista no artigo 16, parágrafo 1º, da Lei 6.830/80).

E como ficaria o prazo? Dez ou trinta dias? Da “penhora” ou da “juntada aos autos do mandado”?

Talvez mais “leis” fossem criadas nesse inapropriado esforço hermenêutico dos que defendem a ausência de efeito suspensivo aos embargos à execução. Seria “trinta dias, da citação, sem efeito suspensivo, mas com necessidade de garantia?

Veja-se o risco de miscelânea e até a esquizofrenia que se corre.

Ou o pior. Para não ser criada essa terceira e inóspita lei, deveria-se aplicar um normativo (artigo 739-A, CPC) e destituir outros dois normativos de toda a sua eficácia (artigo 19 e 16 da LEF), sem ter a competência de suspensão da lei como a tem o Senado Federal (artigo 52, inciso X, CF) e sem sequer haver pronunciamento de inconstitucionalidade delas.

E qual seria o vício de inconstitucionalidade que essas normas (artigos 16 e 19, LEF) padecem? Antes pelo contrário, sua não aplicação viola o devido processo legal.

Assim, acredito que no sopesamento dos princípios na tensão concreta vivenciada, com o auxílio dos parâmetros normativos contidos no artigo 620 do CPC e arts. 111 e 112 do CTN, deve-se distensionar o então choque entre aqueles, para reconhecer a previsão de efeito suspensivo nos embargos à execução fiscal (artigo 19, LEF), recebendo-os neste sentido, até que a lei especial (6.830/80) seja alterada pelo legislador, se esse assim entender por bem.

O que não se pode é perverter normativos em virtude de um suposto espírito da lei que em nada representa o sentido da norma, mas tão só demonstra ser a afetação prévia de uma ideologia dissociada de qualquer princípio ou sobre-princípio informador, tendenciando em prol das fazendas ou, inversamente, indo contra o contribuinte, como se ele fosse sempre um réu já condenado, pelo simples fato de ser devedor.


Não se desconhece que muitos, erroneamente, têm o prazer de sonegar impostos e outros tantos o fazem “amparados” em “diversos motivos”, incluindo o “nunca terem a devida contraprestação por parte do estado”, mas daí a pré-julgar os devedores como se todos fossem atores imbuídos de má-fé, desconsiderando a presunção constitucional contrária, a ponto de legiferar autonomamente?


[1] À propósito, ensina o mestre Araken de Assis que: “Segundo o art. 737 [ CPC], não se admitem os embargos “antes de seguro o juízo” pela penhora (inciso I) ou pelo depósito (inciso II). O art. 16, parágrafo primeiro, da Lei 6.8030/80 dispõe analogamente. (…) Em realidade, o art. 737 criou, na expropriação e no desapossamento, um pressuposto processual específico à admissibilidade dos embargos (…)” (Manual da Execução. 9 ed. rev. atual e ampl. da 8a. ed. do livro Manual do Processo de Execução. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, pag. 1098 e ss).

[2] DA CUNHA, Leonardo José. Novas reflexões sobre os embargos à execução fiscal: desnecessidade de prévia garantia do juízo e casos de efeito suspensivo automático. In: Revista Dialética de Direito Processual. n. 62. Maio – 2008, p. 58.

[3] A afirmação também é do eminente processualista Araken de Assis, conforme referência anterior.

[4] AG 2009.04.00.007251-8, Segunda Turma, Relator Otávio Roberto Pamplona, D.E. 12/03/2009.

[5] AG n. 200802010029674, TRF 3ª Região, 3ª Turma, Des. Francisco Pizzolante, DJU 23/10/2008; AI n. 200803000203588, TRF 3ª Região, 1ª Turma, Des. Luiz Stefanini, DJU 01/12/2008; AI n. 2008.02.01005103-5/RJ, TRF 2ª Região, 6ª Turma Especializada, Rel. Des. Fed. José Antonio Lisboa Neiva, j. em 09.07.2008, DJU 25.07.2008, p. 191; bem como, AG n. 200704000170180, TRF 4ª Região, 2ª Turma, Des. Eloy Bernst Justo, DJU 15/10/2007, em que pese após ter sido alterada a jurisprudência deste último Colendo Tribunal.

[6] “E, por fim, tendo ocorrido penhora, se os bens constritos pertencerem a terceiro, cabe intimá-lo para “remir o bem” (art. 19, I); se, ao invés, pertencerem ao próprio executado, a Fazenda Pública postulará, se for o caso: a) a impugnação da avaliação (art. 13, parágrafo primeiro); b) a modificação da penhora (art. 15, II), substituindo os bens originalmente penhorados por outros, mais valiosos, ou reforçando a penhora realizada com a constrição de outros bens”(idem, pag. 993).

[7] Teoria do Ordenamento Jurídico. 10ª ed. Brasília: Editora UnB, 1999, p. 108.

[8] NABAIS, José Casalta. Por um Estado Fiscal Suportável – Estudos de Direito Fiscal. Coimbra: Almedina, 2005.

[9] “Há doutrinadores que afirmam, com absoluta razão, ser o século XXI o da implementação dos valores dignificadores da pessoa humana e da valorização do cidadão. Alertam que a humanidade, nos séculos anteriores, voltou-se para a construção do renascimento cultural, para a implementação de revolução industrial, para as conquistas dos direitos trabalhistas, para o avanço tecnológico, especialmente, na área das comunicações e da informática (a exemplo do último século). Nunca, porém, o Estado, o homem e a sociedade, de mãos dadas, lançaram-se na missão de fazer com que a dignidade da pessoa humana e a valorização da cidadania fossem expressão maior de suas atuações. Não podemos deixar de lado, no contexto dessas idéias, a necessidade de serem consagrados, na doutrina, no ordenamento jurídico positivo, no campo jurisprudencial e, especialmente, na prática cultural dos povos, o respeito integral pelos direitos fundamentais do contribuinte. (DELGADO, José Augusto. Os Direitos Fundamentais do Contribuinte. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, ano 12, p. 9-68, set./out. 2004).

[10] Outrora este artigo era denominado de Princípio da Menor Onerosidade do Devedor, até começar a causar verdadeiros abusos e protelações pelo devedor, sendo atualmente denominado de Princípio da Proporcionalidade, com fim de equilibrar sua aplicação ao caso concreto, respeitando os direitos do credor e evitando os abusos dos devedores.

[11] Artigos que prevêem, respectivamente, a interpretação restritiva e o in dubio pro contribuinte, dois dos mais clássicos direitos do contribuinte no Brasil.

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