Abertura dos arquivos

Debate sobre anistia não pode impedir acesso à verdade

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25 de março de 2009, 11h54

Uma coisa é punir individualmente os torturadores, outra é saber de toda a verdade sobre a tortura. Neste momento histórico, em que representantes do governo federal decidiram intervir com toda a força no primeiro debate, é importante chamar a atenção para o segundo.

A punição individual dos torturadores, mesmo que venha a ocorrer, vai acrescentar pouco ao que já sabemos sobre a atuação dos agentes de Estado no período ditatorial. A abertura completa dos arquivos sim. Ela daria acesso a toda a sociedade, cidadãos, familiares e pesquisadores, a informações que poderiam ajudar a terminar de contar diversas histórias individuais, que permanecem sem desfecho até hoje; além da história de nosso próprio país.

Diversas biografias de mortos e desaparecidos estão incompletas, pois um de seus capítulos, justamente aquele que se desenrolou nos porões da ditadura, é inacessível à sociedade brasileira. Da mesma forma, nossos manuais de História e pesquisa acadêmicas sentem falta de fontes importantes sobre o período, ainda cercadas de segredo nos cofres do Estado.

O debate sobre a punição dos torturadores não pode obscurecer o direito à verdade. Deixar esta discussão para depois pode significar relegá-la ao limbo de nossa história. O maior perigo é atribuir a uma possível vitória judicial virtudes que ela não tem e não pode ter. Alguns podem imaginar que o Judiciário seria capaz de resolver todos os problemas, ao produzir uma versão oficial da nossa história recente que inclua a responsabilidade não apenas de do Estado, mas também de seus agentes, de modo a, finalmente, obrigar esses indivíduos a prestar contas de seus atos perante as vítimas e a sociedade.

Há dois problemas importantes a se discutir quanto a este ponto. Primeiro, a vitória judicial, por definição, não são favas contadas. Segundo, mesmo que ela ocorra, na melhor das hipóteses, ficaremos sabendo apenas dos fatos relacionados aos indivíduos que participarem do processo judicial, e não tudo o que permanece trancado nos arquivos do Estado brasileiro

Quanto aos riscos da batalha judicial, o debate jurídico sobre a punição dos torturadores já está suficientemente maduro para que se constate que há várias respostas possíveis para o problema. Depois das manifestações públicas de juristas de alto calibre que presenciamos nas últimas semanas, qualquer advogado consultado por uma vítima interessada em punir seus algozes seria obrigado a dizer: há riscos de perder a ação.

Estamos diante de um caso difícil: não há — e possivelmente nunca haverá — uma solução jurídica pacífica para essa questão. Trata-se de um problema complexo em que a discussão sobre retroatividade se mistura ao Direito Internacional, à prescrição e ao respeito à tradição interpretativa da Lei de Anistia, entre outros assuntos.

A pressão da opinião pública pode desempatar esta partida contra os torturadores? Esta é uma estratégia de eficácia duvidosa. O Poder Judiciário não é um recipiente vazio que possa ser preenchido pela vontade da esfera pública “soberana”. Ele funciona conforme a lógica jurídica. Entregar a ele o exame de uma questão significa reconhecer seu poder de dizer o Direito em última instância.

Evidentemente, proposta a ação, é legítimo tentar influenciá-lo. No entanto, não há como impor a ele interpretações “obrigatórias”. O papel do juiz é interpretar as leis e ele o fará como entenda ser o melhor direito para o caso concreto. Justamente em casos difíceis, é especialmente arriscado antecipar qualquer desfecho. Aos ouvidos de um não especialista, argumentos de alta carga retórica podem parecer muito convincentes. Já para ouvidos treinados, os mesmos argumentos podem soar unilaterais e facilmente refutáveis.

Fique claro: não se trata de negar às vítimas o direito de exigir a punição de seus algozes. O ponto em discussão é outro: diante do risco e, principalmente, dos limites da estratégia judicial, não é melhor pensar também em outra saída? O que se quer, afinal? Apenas punir os torturadores ou ter acesso a toda a verdade sobre a tortura?

Se o desejo prevalente for o primeiro, vale correr o risco da via judicial e parar por aí. Caso contrário, é preciso pensar em outras formas de ter acesso a tais informações. Nesse caso, qualquer solução passaria necessariamente pela abertura de todos os arquivos da ditadura. Este governo, que teve a coragem de trazer essa questão à tona, parece ter a vontade política necessária para fazer com que o debate caminhe nessa direção.

A via judicial e punitiva não pode ser a única maneira de lidar com este passado, tão penoso para tantos brasileiros. Precisamos abrir a discussão para incluir a incerteza inerente à aplicação da lei e a adequação das alternativas à disposição em face das várias demandas sociais. Para problemas difíceis, não há respostas prontas. Mas em todo caso, parece importante questionar a conveniência de manter segredo sobre as ações dos agentes do Estado sob a ditadura militar. Afinal, a sociedade brasileira tem direito a saber de toda a verdade sobre a tortura.

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