Limites da Raposa

Ministro levanta omissões no trâmite da ação

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18 de março de 2009, 13h19

O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, levantou uma série de omissões no andamento da Ação Popular que questiona a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. O Supremo retomou, nesta quarta-feira (18/3), o julgamento no qual decidirá se mantém a demarcação das terras feita pelo governo federal e homologada por decreto presidencial em 2005.

De acordo com Marco Aurélio, no curso do processo, foram deixadas de lado diversas regras que têm de ser levadas em consideração para que seja respeitado o devido processo legal. “O Supremo tem a guarda da Constituição e não pode despedir-se desse dever, imposto de forma expressa pelo Constituinte de 1988, sob pena de a história cobrar-lhe as consequências da omissão, de comprometimento da própria credibilidade”, afirmou o ministro no começo de seu voto, que tem 120 páginas.

O primeiro vício processual apontado pelo ministro foi a falta de citação do presidente da República e do ministro da Justiça no processo. Segundo Marco Aurélio, a citação da Advocacia-Geral da União desde o início da ação não dispensa a intimação dessas outras duas autoridades.

O ministro citou o artigo 6º da Lei 4.717/65, que regula o andamento da Ação Popular, para fundamentar seu argumento. De acordo com o dispositivo, “a ação será proposta contra as pessoas públicas ou privadas e as entidades referidas no art. 1º, contra as autoridades, funcionários ou administradores que houverem autorizado, aprovado, ratificado ou praticado o ato impugnado, ou que, por omissas, tiverem dado oportunidade à lesão, e contra os beneficiários diretos do mesmo.”

A ação foi proposta pelo senador Augusto Affonso Botelho Neto (PT-RR) contra a União. Todos os demais envolvidos figuram como assistentes no processo.

Saneamento básico

Para Marco Aurélio, o processo tem de ser saneado. Na prática, se acolhidas as preliminares levantadas por ele, a ação praticamente recomeçaria do zero. Além da citação do ministro da Justiça e do presidente da República, o ministro do Supremo propôs a intimação do estado de Roraima e dos municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia — cujo território é atingido pela demarcação.

Outros vícios apontados pelo ministro: falta de acompanhamento da ação pelo Ministério Público, desde o início; falta de citação de todas as etnias indígenas interessadas na causa; falta de intimação de quem tem títulos de propriedade considerados frações da área demarcada; e a necessidade de produção de provas periciais e testemunhais.

O ministro sustentou que o julgamento da matéria só cabe ao Supremo por conta da existência de conflito federativo entre a União e o estado de Roraima, com o envolvimento de três municípios. Logo, o estado e os municípios teriam de figurar obrigatoriamente como litisconsortes necessários na ação, e não apenas ser admitidos como assistentes, como foi o caso.

“Salta aos olhos a destinação, no campo das consequências e facilidades processuais, em admiti-los como partes ou como assistentes, apanhando o processo, neste último caso, no estágio em que se encontrava, ou seja, quando já encerrada a instrução”, afirmou. Para Marco, “a organicidade instrumental está capenga, ferida de morte, incidindo o paradoxo acima referido — a admissibilidade do conflito federativo sem que formada a devida relação processual, sem que, até aqui, o Estado, já não falo dos Municípios, figure como parte propriamente dita”.

Não houve economia de críticas às omissões no voto de Marco Aurélio. “Há de chamar-se o processo à ordem, reabrindo-se, na extensão cabível, a instrução processual, sob pena de grassar a balbúrdia, sob pena de, sem ouvirem-se as partes interessadas, titulares de direitos, viabilizados os meios de prova visando a revelá-los, ter-se, mesmo assim, sentença a elas oponível”.


A sessão foi suspensa para o almoço e deve ser retomada à 14h, quando Marco Aurélio retomará a leitura de seu voto, já na análise de mérito. Só depois de lido o voto é que o plenário se pronunciará sobre os vícios preliminares levantados. Os oito ministros que já votaram podem, diante dos novos argumentos, rever seus votos.

Marco Aurélio registrou seu aborrecimento com o fato de, na sessão de 10 de dezembro, seus colegas não terem abortado a votação depois que ele pediu vista antecipada dos autos — leia aqui texto da ConJur sobre o episódio. “Considero tais questões de extrema relevância, sendo inclusive uma das razões pelas quais formulei o pedido antecipado de vista, frustrado ante o fato de os integrantes que votam normalmente anteriormente a mim não terem consentido, anunciando o convencimento a respeito do momentoso tema e quebrando, com isso, uma tradição do Tribunal: em face de pedido antecipado de vista, aguardarem, para votar, os demais.”

Demarcação contínua

O julgamento da demarcação das terras da reserva indígena Raposa Serra do Sol foi suspenso em dezembro com oito votos favoráveis à demarcação contínua. Além de Marco Aurélio, faltam votar os ministros Celso de Mello e Gilmar Mendes.

O julgamento começou em 27 de agosto de 2008, quando o relator, ministro Carlos Britto, votou pela manutenção integral da Portaria 534/05 do Ministério da Justiça que determina a demarcação contínua da área. O ministro Menezes Direito pediu vista do processo e apresentou o seu voto no dia 10 de dezembro.

O seu posicionamento sobre a demarcação das terras é o que prevalece até agora. Além de manter a demarcação contínua e determinar a retirada dos arrozeiros, Direito estabeleceu 18 condições (leia abaixo) para as demarcações das terras indígenas. As suas ressalvas se referem à pesquisa e lavra de riquezas minerais e à exploração de potenciais energéticos, além de questões envolvendo a soberania nacional.

Direito criou uma espécie de diretriz sumular, que a União deve seguir quando analisar as outras duas centenas de casos de demarcação de terras indígenas que ainda estão à espera de definição. Além do relator, seguiram o voto de Direito os ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e Ellen Gracie. O ministro Joaquim Barbosa votou pela demarcação contínua sem as 18 restrições propostas.

Conheça as condições impostas por Menezes Direito para a demarcação:

1 — O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser suplantado de maneira genérica sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) o interesse público da União na forma de Lei Complementar;

2 — O usufruto dos índios não abrange a exploração de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional;

3 — O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra de recursos naturais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional;

4 — O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, dependendo-se o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;

5 — O usufruto dos índios fica condicionado ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;


6 — A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;

7 — O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação;

8 — O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica restrito ao ingresso, trânsito e permanência, bem como caça, pesca e extrativismo vegetal, tudo nos períodos, temporadas e condições estipuladas pela administração da unidade de conservação, que ficará sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;

9 — O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, em caráter apenas opinativo, levando em conta as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;

10 — O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pela administração;

11 – Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai;

12 — O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;

13 — A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não;

14 — As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade jurídica ou pelos silvícolas;

15 — É vedada, nas terras indígenas, qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa;

16 — Os bens do patrimônio indígena, isto é, as terras pertencentes ao domínio dos grupos e comunidades indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no artigo 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena isenção tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições sobre uns e outros;

17 — É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;

18 — Os direitos dos índios relacionados às suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis.

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