Princípio de inocência à brasileira

Supremo teve esdrúxula modificação de jurisprudência

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12 de março de 2009, 11h00

Toda alteração na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal gera, necessariamente, um impacto na sociedade em razão de uma infinidade de motivos, entre os quais destaco a posição do órgão na estrutura hierárquica judiciária. É de se perguntar: seria o STF o órgão a errar por último? Ou melhor, está o STF no cume do ordenamento jurídico? Seria o Tribunal Penal Internacional citado no Título das Garantias Individuais (artigo 5º, artigo 4º, da Constituição de 88) mera formalidade constitucional?

Através de releitura do artigo 5º, inc. LVII da Constituição de 88, conferindo caráter absoluto à presunção de inocência, o STF veio a deferir na prática o efeito suspensivo ao recurso extraordinário criminal, alçando o Brasil internacionalmente a "outro nível" no que toca os direitos fundamentais. Assim, não cabe mais o início da execução provisória da pena fixada pelos Tribunais de Apelação, enquanto submetido processo aos Tribunais excepcionais (STJ, STM, TSE, STF). Não se interrompe a prescrição.

É dizer, enquanto existir a possibilidade de recurso e consequentemente modificação da decisão proferida, pela simples existência de graus de jurisdição, não se opera o fenômeno de sua certeza e imodificabilidade, ou seja, não transita em julgado (LICC, artigo 6º, parágrafo 3º) e não pode ser executada com expedição de decreto de recolhimento do réu, ainda que provisoriamente.

Após acompanhar os diversos comentários acerca da nova orientação, detenho-me sobre um ponto que passa desapercebido e cuja discussão ganha relevo: afinal, quando se opera o transito em julgado da ação penal autorizativo do início da execução da pena?

Pois bem, devemos balizar que toda atividade persecutória do Estado, porque afeta a liberdade do ser (âmbito do direito penal), se insere dentro dos limites impostos pelas normas de regência dos direitos humanos, inclusive a atividade judiciária, sejam elas as estipuladas no ordenamento interno ou advindas dos tratados internacionais.

Nesse particular, ganha relevo o Pacto de São José acerca dos direitos humanos, o qual o Brasil é signatário, com plena vigência interna desde 1992, cujo Tratado estabeleceu, ademais do sistema de garantias mínimas (ampla defesa, duplo grau de jurisdição, presunção de inocência, e etc.), um verdadeiro sistema judicial de proteção cujo representante máximo é a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que passou a integrar o sistema Judiciário Brasileiro por força do Decreto 678/92, e ratificado expressamente pela Emenda Constitucional 45/2004, portanto, o acesso a referido Tribunal possui status de garantia individual. É mais uma esfera judicial de socorro do cidadão.

De fato, o Estado Brasileiro aceitou a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, forte no art. 62 da própria Convenção, donde se diz que expressamente que "Todo Estado-parte pode, no momento do depósito do seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção".

É de se frisar que a própria Convenção de Direitos Humanos tratou de explicitar o caráter obrigatório das decisões proferidas pela Corte (Artigo 68 – 1. Os Estados-partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes) e ainda estabelecer mecanismos processuais de natureza cautelar para a defesa dos direitos humanos (artigo 63.1) em caso de gravidade e urgência.

Conferiu caráter de título de crédito e executoriedade a suas sentenças, declarando-se expressamente a irrecobilidade de suas decisões (artigo 67), ou seja, a Corte exerce poder de natureza estatal frente a cada um dos países aderentes, perfazendo em uma instância judiciária para a defesa dos direitos humanos.

E mais importante, é que o Brasil se submete às Cortes Internacionais Penais com jurisdição plena, situando-as acima do Supremo Tribunal Federal, eis que previsto no próprio rol de garantias individuais no capítulo mais importante da Carta Constitucional (CF 88, artigo 5, parágrafo 4º: O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão).

São Tribunais protegidos por cláusula pétrea, não podendo sequer serem excluídos da estrutura jurisdicional brasileira. Diga-se, que o STF nos moldes atuais pode até ser extinto, se assim entender o Congresso, basta-lhe modificar suas competências, haja vista ter se transformado em verdadeiro Tribunal de Apelação em matéria criminal.

E em termos de aplicação de normas direito internacional, o critério definidor para considerar-se uma matéria de jurisdição doméstica ou internacional se baseia exatamente no caráter jurídico dos tratados, conforme acentua Eduardo Aréchaga em sua obra Derecho Internacional Público, FCU, pág. 500 onde "para determinar si una materia pertenece o no a la jurisdicción doméstica debe considerarse si ella ha sido objeto de regulación jurídica internacional por las partes en conflicto. Si tal materia ha constituido el objeto de un tratado o está regulada por otras normas de Derecho Internacional general es que los Estados han dejado de considerarla de la jurisdicción doméstica."

Agora, o Supremo afirmou que não cabe prisão enquanto não esgotados todos os recursos (presunção absoluta do princípio da inocência), é de se perguntar: como fica a situação do réu que peticiona para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, através de sua Comissão, buscando a anulação ou a absolvição contra um acórdão do STF que viole seus direitos fundamentais? Pode-se dar início a execução da pena antes do julgamento de seu recurso perante a Corte Internacional?

E o que soa mais esquisito nessa esdrúxula modificação de jurisprudência é que enquanto aguarda o julgamento de um recurso excepcional (Recurso extraordinário ao STF ou Recurso especial ao STJ), onde não se permite reexaminar provas, pode-se gerar o efeito de obstar o início da execução da pena e um recurso dirigido a um Tribunal Internacional, onde se pode reexaminar todas as provas, o réu deve se recolher a prisão até seu julgamento final.

É o "princípio de inocência à brasileira", feita com o tempero do jeitinho para valer, mas nem tanto, que só ajuda à impunidade.

Conquanto não caiba adentrar nas razões de ordem política que levaram o Supremo a modificar sua Jurisprudência, certo é que o STF enfrentará a questão ou para não reconhecer a jurisdição internacional (violando os direitos individuais que tanto prima) ou para dizer que a presunção de inocência só vale até os limites do próprio STF, contradizendo-se ao que ele próprio ditou.

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