Presunção de inocência

Fim da execução antecipada da pena não trará impunidade

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7 de março de 2009, 15h05

A decisão do STF no Habeas Corpus 84.078 — que fez valer a regra constitucional de que não se pode cumprir pena antes de tornar irrecorrível a decisão condenatória — fez surgir debates calorosos.

Alguns argumentam que o STF apenas garantiu a eficácia normativa da Constituição, que expressamente proíbe o cumprimento antecipado da pena; já outros fizeram direta associação entre o respeito a esse direito e os obstáculos por ele criados à realização da justiça, redundando em impunidade. Nesse fogo cruzado, aflora a percepção de que as instituições encarregadas de nos proteger se atrapalham em meio a suas regras e resolvem suas próprias aporias à custa da nossa segurança — todos nós, que não criamos o tal princípio da presunção de inocência e muito menos cometemos crimes. Nessa luta entre sistema de justiça e seus princípios, a visão de muitos é que venceu a impunidade e perdemos todos nós. Nesse conflito seríamos, ironicamente, vítimas de balas perdidas de uma disputa alheia.

Uma vez que impunidade é, antes de uma assombração coletiva, um fenômeno empírico, vale analisar o que representa concretamente a decisão do STF. Tomemos o caso das Justiças estaduais, que são competentes para julgar muitos dos crimes que nos amedrontam (roubos, homicídios, tráfico de entorpecentes etc.): segundo o último relatório do CNJ ("A Justiça em Números, 2008), elas recebem aproximadamente 3 milhões de novos casos por ano, entre cíveis e criminais, desconsiderados os juizados especiais. A taxa de recorribilidade à segunda instância é de aproximadamente 13%: pelo caminho ficam suspensões, desistências, decisões não recorridas e outras coisas. Desses casos que chegam aos tribunais estaduais, apenas 24% apresentam recursos às instâncias superiores. Pois bem, é sobre esse percentual reduzido que recaem os efeitos da decisão do STF. Ajustada a figura inicial, tem-se que, dentre todos os casos que dão entrada nas Justiças estaduais, pouco mais de 3% chegam às instâncias superiores.

Esse número tem ainda dois funis adicionais: ele abrange, em primeiro lugar, tanto processos cíveis (que nada têm a ver com a tal decisão do STF) quanto criminais; e, mais ainda, compreende muitos recursos que não são aceitos por falta de condições técnicas de admissibilidade. Sendo assim, é muito seguro assumir que a decisão do STF potencialmente afetará uma parcela bastante reduzida do total de casos penais iniciados nas Justiças estaduais.

Não bastasse isso, é preciso considerar que, mesmo nesse número relativamente pequeno de ações penais que chegam aos tribunais superiores, continua sendo plenamente possível a prisão do acusado antes do trânsito em julgado da decisão, nos casos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal -que, aliás, são os mesmos que permitem o encarceramento no correr das ações em primeira e em segunda instâncias. A diferença estará em seus fundamentos: o réu não poderá ser preso para cumprimento da pena pela qual ainda não foi definitivamente condenado, mas poderá sê-lo por trazer perigo à ordem pública ou para evitar fuga iminente. Tudo isso quer dizer que não estamos menos vulneráveis aos poucos réus das instâncias superiores do que o estamos em relação aos muitos e muitos das instâncias inferiores.

Talvez haja, portanto, certo exagero na percepção compreensível, mas infundada, de que nossa sociedade tornou-se menos segura e mais impune desde a dita decisão. O raciocínio oposto é mais apropriado: pagaremos um preço baixo pela reafirmação do valor simbólico, mas de efeitos sensíveis, de que todas as regras jurídicas devem ser respeitadas por todos nós — pelos acusados, mas também pelos responsáveis por sua acusação, processo e julgamento. E as sociedades que escolhem fortalecer suas instituições dificilmente saem perdendo, ainda que esse processo traga em si o desconforto de termos de enfrentar nossos próprios fantasmas.

Artigo publicado neste sábado (7/3) no jornal Folha de S.Paulo.

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