Um ilustre (quase) desconhecido

Legado de Clóvis Beviláqua deveria ser cultuado

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28 de maio de 2009, 13h12

A história serve não apenas ao entretenimento, ao deleite, ao prazer de quem a conhece. A experiência histórica, seja ela individual, seja coletiva, constitui patrimônio imaterial de valor inestimável. Isso porque a vivência de pessoas ou instituições integra um balanço contábil simbólico e pode ser considerada um ativo ou um passivo, conforme o peso negativo ou positivo que se atribua aos fatos — que o diga a ditadura implantada em 1964, por exemplo, que ainda provoca tanta celeuma e debates apaixonados, protestos e, inclusive, esdrúxulas comemorações militares.

A trajetória histórica é um bem e tem, portanto, viés jurídico e econômico. E, como tal, precisa ser, além de compreendida, preservada e protegida.

A pesquisa histórica, quando publicada e divulgada, torna tangível, concreta, a importância das sagas de grupos ou indivíduos, as biografias ou narrativas sociais. Presta-se não só ao desfrute, mas à afirmação da identidade grupal, que redunda na construção de projetos coletivos. E, nessa contabilidade simbólica, ainda se prestam contas com o passado.

De outro lado, boa parte dos acervos artísticos e documentais integra o patrimônio público. Vale dizer, desde logo, que o descaso generalizado dos poderes constituídos com arquivos históricos lesa o interesse coletivo -eis aí, pois, uma senha para a ação do Ministério Público, para responsabilizar a criminosa dilapidação, o desdém governamental aqui e alhures, no país inteiro.

Afinal, objeto de arte, prédio ou documento histórico corroídos e danificados transformam-se, em muitos casos, em perda irreparável para as gerações atuais e futuras. Muitos governantes — e empresas privadas — não se mexem para implantar em larga escala, por exemplo, programas de digitalização de documentos, que são uma maneira relativamente rápida, barata e eficaz de preservar acervos e salvá-los do descalabro. De libertá-los de latas enferrujadas, da ação deletéria de insetos, da corrosão inexpugnável do tempo.

Sonho com o dia em que se anunciará programa do tipo "1 bilhão de documentos digitalizados". E lanço a campanha: "Digitalize Já!" (senhores governantes, tem alguém aí?!).

Nem só de governo, evidentemente, vive a pesquisa histórica. Também os historiadores, claro, têm sua cota de responsabilidade na preservação, a começar do momento em que elegem objetos de estudo, análise e interpretação. E a imprensa, as organizações da sociedade civil e a opinião pública, como um todo, vão escolhendo fatos e pessoas para jogar luz ou escamotear.

Veja-se o caso de Clóvis Beviláqua (1859-1944). Em outubro próximo, completam-se 150 anos de seu nascimento. Um dos maiores juristas do país, deveria estar merecendo festas e efemérides desde logo, o ano inteiro. Afinal, é ele o autor do projeto do primeiro Código Civil brasileiro, aprovado em 1916, depois de longos anos de debate no Congresso Nacional. Após muitas tentativas de codificação frustradas, desde meados do segundo reinado, Clóvis logrou êxito, sepultando, de vez, as antiquadas Ordenações do Reino.

Professor, filósofo, historiador, sociólogo, civilista, romanista, criminalista, internacionalista, literato, jornalista… Muitos são os títulos e as qualificações para se referir ao grande cearense de Viçosa.

Um adjetivo talvez explique a atual falta de notoriedade de Clóvis: modesto. De fato, ele era alheio às badalações, vivia recluso em casa ao lado da família, sem ostentação de qualquer tipo, imune à vaidade. Recusou, inclusive, por duas vezes, indicação para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Não fez marketing pessoal, nem seus muitos admiradores trataram de fazê-lo.

Lamentavelmente, não temos nenhuma fundação de fôlego voltada a cultuar o legado desse grande brasileiro e democrata de todas as horas, exemplo de retidão de caráter e pertinácia no trabalho. De tal modo a memória vai se perdendo que poucos saberão, inclusive, como já lembrou alguém, onde está localizada a praça Clóvis Beviláqua, no centro de São Paulo. Pois a grande praça, à altura do homenageado, é contígua à praça da Sé, em frente ao Palácio da Justiça, onde está instalado o Tribunal de Justiça de São Paulo.

A muita gente pode parecer que aquilo tudo é praça da Sé. Não é. Enfim, sem culto à sua memória, que sobreviva, ao menos, em referência ao mestre da cultura e do direito brasileiro, o samba de Paulo Vanzolini: "Na praça Clóvis/ Minha carteira foi batida/ Tinha 25 cruzeiros/ E o teu retrato/ vinte e cinco/ Eu, francamente, achei barato/ Pra me livrarem/ Do meu atraso de vida".

[Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, desta quinta-feira, 28 de maio]

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  • Brave

    é formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, editor e historiador, é autor, entre outras obras, de "Advocacia Pública - Apontamentos sobre a História da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo".

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