Hora de aprimorar

Quinto constitucional gera concorrência desleal

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17 de maio de 2009, 13h03

Em seminário recente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) novamente se abordou o melindroso problema do assim quinto constitucional, que trata da composição heterogênea dos Tribunais no país, admitida a participação de pessoal egresso diretamente de duas carreiras distintas da Magistratura: o Ministério Público e a Advocacia.[1]

O ingresso nos Tribunais pela via do quinto constitucional e obediente ao disposto no artigo 94, da Constituição Federal, tem sido assegurado pela Carta no sentido de garantir ao Poder Judiciário uma certa transparência social (oxigenação) com que se permeia o sistema judicial de diversas visões institucionais como as da advocacia e do Ministério Público. Esse quinto constitui, aliás, um dos argumentos que sempre sustentaram, dentre outras idéias ainda menos transparentes, os opositores do controle externo da magistratura pelo que o consideram tecnicamente impossível.
 

Um vício do sistema faz com que esses representantes, no ato da posse, perpetuem-se como magistrados, embora não de carreira, e não mais como advogados ou representantes do Ministério Público, segundo suas origens, de cujas funções estariam temporariamente afastados. Gera-se com isso uma estranha perspectiva psicofuncional: o agente nem é mais advogado ou representante do Ministério Público e, conforme tampouco jamais fora magistrado, também passa a exercitar de forma não raramente incomum a Judicatura.
 

O grande perigo de aproveitar esse pessoal da forma como presentemente está estabelecido pela Constituição Federal é justamente o de que venha a exercitar a magistratura sendo exímios políticos. Nesse caso, o agente, parecendo juiz, de fato acaba não o sendo para comprometer, ainda mais, a já alquebrantada saúde institucional do sistema como um todo. Parece mesmo dispensável referir que para esses acessos muitos lobbies são gerenciados no sentido do amesquinhamento da própria instituição judiciária, valendo tais ações tanto para o ambiente dos Tribunais da eleição como para um concerto muito largo e complexo de excentricidades políticas de tradição colonial por meio das quais o pretendente passa a atuar por si ou por seus prepostos, sempre interessados em algum tipo de retorno que possa, quando menos, exprimir prestígio e poder.
 

Ninguém o admite, mas é o fenômeno político que acaba prevalecendo. Uma lei sociológica o demonstra cabalmente na medida em que, sem essas tratativas, jamais algum profissional seria eleito para os cargos reservados ao quinto constitucional. Uns e outros, curiosamente, gerimpam entre gabinetes e eventos oficiais e outros nem tanto para, sem serem chamados muitas vezes, oferecer-se à consideração dos eleitores ou dos amigos eleitores de quem procuram.

A lastimável prática não é tampouco estranha aos magistrados quando em suas carreiras são chamados à submissão ao (des)critério do Merecimento.[2]

Em síntese, um quadro que não faz transparecer, de modo algum, o viés republicano com que deveríamos pautar todas as nossas condutas no momento histórico em que vivemos. A propósito, este autor faz aqui o seu mea culpa e confessa que já pediu para ser promovido, muito embora jamais tenha prometido coisa alguma em troca disso. Simplesmente expôs aos seus interlocutores (quando recebido) os seus esforços profissionais, os seus pretéritos e a sua produção científica.

E fez, outrossim, menos pela vontade de sê-lo e mais para constatar, em pessoa, o fenômeno que, afinal, tem tentado teorizar na Academia da qual faz parte e cuida pesquisá-lo tanto quanto possível, segundo o método da observação participativa. Invariavelmente, tem recebido votação igual a zero em todos os concursos de promoção na carreira judicial dos quais participou em 27 anos de Magistratura.
 

É claro que isso não lhe diz absolutamente nada e nem se deseja com esse sentimento depreciar a carreira da qual também é integrante (autêntico “laboratório” do seu Magistério). Ressente-se apenas pela insuficiência na valorização dos aspectos profissionais da carreira judicial no país, os quais lhe dariam contornos propriamente institucionais e correção nos agires de parte a parte, bem como plenitude quanto ao crédito social merecido pelo Poder Judiciário estabelecido sob os domínios de um Estado de Direito com regime democrático.
 

Com efeito, também no plano das carreiras judiciárias — as propriamente ditas e aquelas inauguradas por transversão legal (“Quinto Constitucional”) — temos uma coisa e profligamos outra.

Além disso, o caso do Supremo Tribunal Federal, cujo sistema é em grande medida copiado da Suprema Corte norte-americana, portanto, de um sistema de tradição jurídica radicalmente diversa do nosso (anglo-saxão [common law] x romano-germânico [civil law]), traduz uma teratologia à parte, conquanto suas composições são inteiramente descoladas de qualquer critério profissional, senão unicamente político.

Se a Constituição brasileira não fosse um exercício quase que exclusivamente simbólico, no sentido do pensamento do brasileiro Marcelo Neves e do alemão Karl Loewenstein, até se compreenderia essa liberdade de indicação dos membros que haverão de ditar a última palavra no que respeita ao seu cabal cumprimento.

Conforme o descompromisso de Estado para com a Carta Política seja uma manifestação recorrente, sucede que não há razoável previsibilidade nos veredictos da Suprema Corte brasileira cujo perfil decisório acaba sendo um vetor poderoso na distribuição da Justiça no Brasil. Agrava o quadro de morosidades crônicas também ali observado em muitos casos concretos.

Entretanto, institutos aos quais se atribuem a classificação de “modernos”, como a Súmula Vinculante, consolidam de vez a quebra do princípio da liberdade no ato de produzir decisão judicial de parte de todo Juiz que não assente àquele Colegiado, o guardião da Carta. E não é difícil compreender o sentido de uma clássica lição de Nicklas Luhmann para quem aquele que detém a responsabilidade de produzir decisão, deve exigir para si a liberdade de procedê-la.

As aberturas à politização das investiduras pretorianas adquire, dessa forma, um aspecto inteiramente descerimonioso no trato da composição do Supremo Tribunal Federal, paradoxalmente o órgão que detém a guarda e conservação da própria Constituição Federal. Naquele Colegiado todos os cargos são igual e excepcionalmente providos mediante critérios estritamente políticos e não de carreira (artigo 101, CF).

Como visto, a liberdade de decidir dos juízes brasileiros sempre esteve em xeque e predisposta às intemperanças de cada momento histórico e de cada conjuntura, além das suscetibilidades das cúpulas, cristalizadas em redomas inatingíveis e distantes aos comuns dos mortais.

O poder retido por um juiz brasileiro é, de regra, medíocre e não vai além de sacudir ladrão de galinha na cadeia, porque do contrário ele vai sofrer riscos em sua carreira. Tirá-lo de lá é que sempre pareceu revolucionário e até altruístico de parte da autoridade judiciária. Aliás, ninguém integra uma carreira para não alimentar uma justa aspiração de ascensão profissional.

Pode-se até suplimar isso, mas a frustração subjetiva que decorre da injustiça dos tratamentos seletivos ou discriminatórios é um mal que consome o espírito do julgador permanentemente. Sobra-lhe a descrença na própria Justiça e nada pode ser mais destrutivo para a democracia do que um tal sentimento envolto em sombras que insistem em não se dissipar no território judicial de nossa pátria e já não de agora.

Vencer esse sentimento deveria ser a primeira atitude com que o país se dispusesse a mudar o quadro de mazelas que estão no foco da crítica social atualmente como a modorrenta prestação jurisdicional. Sobre isto, convém destacar que, sem que Justiça seja feita à Justiça, nenhum processo de racionalização dos serviços judiciários ou mesmo a transformação dos Juízes em simples “tarefeiros” vai garantir cabal eficiência à Jurisdição.

Ainda que se pense numa atuação destacada pela repetição escolástica de certas fórmulas de decisão, a exemplo do que segue sugerido pelas tais Súmulas Vinculantes — que podem, aliás, ser perfeitamente fraudadas, contanto que não haja vontade de obedecê-las — a situação tampouco se altera.

Em poucas palavras: os tribunais, como quaisquer outros espaços públicos no Brasil, parecem que tem “donos” e esses donos não são definitivamente o povo em nome de quem todo poder é, afinal, exercido, mas apenas “para inglês ver”.

Por isso mesmo, e segundo uma abordagem sistemática de que se compadece o Direito Positivo, já não parecia residir favor jurídico ao pessoal do quinto constitucional de origem quanto à reserva de cargos de juízes de carreira junto às Instâncias Superiores (artigos 104, inc. I, e 111-A, inc. I, da Constituição), pois esses agentes, embora formalmente juízes porque passaram a integrar tribunais locais, comuns ou especializados, pela via do multicitado quinto constitucional, e não obstante os méritos pessoais com que possam eventualmente vergastar suas Judicaturas de ocasião, não o são de fato, pois jamais vivenciaram uma carreira judiciária como tal reclamada pela própria Constituição.

Maior risco é aquele que se antevê no médio e longo prazos quando — a se consolidar o já notório trato familista com que as coisas no serviço público brasileiro costumam ser conduzidas — os Tribunais Superiores, que deveriam ser órgãos eminentemente técnicos, passarem a se guarnecer de composições majoritariamente não de origem judicativa. Então, teremos uma comunidade de advogados e de representantes do Ministério Público a comandar os destinos e a autonomia do Poder Judiciário neste país, se já não for o que se observa no presente.

Para isso, basta olhar a biografia dos Chefes do Poder Judiciário. Dessa forma, aqueles que se arredam de defender o controle externo da magistratura cuja expressão embrionária e ainda muito imperfeita é o atual Conselho Nacional de Justiça, até por articulações as mais irascíveis, na verdade são uns contraditórios na medida em que defendem a possibilidade de acesso às Instâncias Superiores de Juízes que acudiram aos Tribunais locais e regionais pela via do assim chamado Quinto Constitucional.[3] De fato, esse pessoal se transforma, magicamente, em juiz no momento da investidura, por encanto e ficção se tornam vitalícios desde aquele exato momento ao qual não se segue sequer um período de adaptação para verificação da própria desenvoltura, a exemplo do que sucede com quem presta concurso público e vai, na seqüência, se submeter a um período de estágio probatório dentro do qual não há que se falar em vitaliciedade, caso dos Juízes.

Por isso mesmo, os egressos do quinto constitucional não terão empreendido a experiência nem os sofrimentos que todos os magistrados de carreira, que prestaram concurso e, pois, teoricamente, não devem nada a ninguém, senão a Deus (se temente a Ele), à lei e à própria consciência, tiveram de superar e se vêem, por isso, desprestigiados com a perpetuação da política de resultados e da desigualdade também na emblemática questão das investiduras originárias às cortes superiores deste infelicitado país.

Os juristas de formação genuína e os formalistas, portanto, não devem se iludir. Repetindo Sheakespeare, em Hamlet: "Há mais coisas entre o céu e a terra do que possa supor nossa vã filosofia!"

Entende-se, haja vista o quanto acima expendido, que as listas para acesso aos tribunais superiores em que figurem juízes oriundos do quinto constitucional para vagas destinadas a Magistrados de carreira não podem prevalecer do ponto de vista jurídico e também ético, pois aqueles de carreira não são, ante o que resultariam "premiados" politicamente duas vezes, na primeira como na segunda investiduras, em detrimento da dignidade da magistratura como um todo e no desprestígio de tantos magistrados quantos houvessem em condições legais para uma leal e perfeita disputa institucional e corporativa como cabe em casos que tais.

Já é difícil garantir pureza institucional mesmo entre os iguais que compõem as corporações de ofício nas sociedades periféricas. Imagine-se com o elastério hermenêutico que se vem praticando até aqui para favorecer quem não deveria ser favorecido por não se enquadrar nas mesmas condições de seus concorrentes.

De fato, os magistrados de carreira não são de regra guarnecidos de espírito político (pelo menos não deveriam em profusão), não lidam, por ofício, com a política e, portanto, via de regra não sabem transitar com facilidade por entre os seus subsistemas (nem seria isso honesto, dado que lhes é vedado todo partidarismo) e tampouco dominam a linguagem com que se comunicam os seus interlocutores ordinários.

A propósito, a Lei Orgânica da Magistratura chega ao requinte de proibir ao universo de magistrados, expressamente, a participação políticopartidária, e isso parece mesmo um exagero, se a proibição for analisada em profundidade, pois, conforme possam os magistrados normalmente votar — e diferente não poderia ser —, também deveriam poder ser votados, observados, por exemplo, os mesmos critérios vigentes para o Ministério Público.

Parece muito mais transparente conhecer do magistrado suas idéias, sentimentos e vontades, inclusive do ponto de vista partidário, viabilizando ainda mais adequadamente as insurgências legais contra os atos de decisão, do que fazer supor, em vão, que os juízes são agentes inteiramente ascéticos do contexto social em que atuam em nome do Estado que também é um sistema dessa mesma Ordem Social.

Por outro lado, o pessoal do quinto constitucional sabe muito bem como administrar a política insinuando-se para o âmago dos tribunais, tanto pela razão de que fora que aproveitado de igual forma, enquanto a competição que resulta estabelecida entre uns e outros por cargos mais proeminentes acaba refletindo uma cruel e desigual disputa. Acaba gerando um cenário de concorrência desleal.

Combater a falta de participação justa e tolerável e a falta de democracia no meio judicial brasileiro não se compadece das interpretações menos avisadas e que, por certo, sofismam situações imperscrutáveis, dado coletar argumentos de discriminação quando tais argumentos estão eivados de ambiguidade e ativados, justamente por isso, para o efeito oposto: produzir injustiça nas disputas da carreira judicial e no acesso aos Tribunais.

Sem se pretender generalizar, todavia, pois que toda generalização é tão ou mais injusta do que o objeto de sua própria crítica, afirma-se que enquanto o Poder Judiciário no Brasil for assim, a dizer, prenhe de sinuosidades e susceptível a todo componente de influenciação de índole estritamente política, para além do profissionalismo que os magistrados deveriam exercitar com toda exclusividade, de acordo com o sistema constitucional vigente, não haverá motivos para que dele a Nação se orgulhe plenamente tanto no foco da própria magistratura como no da cidadania em geral.

Por fim e só por amor ao argumento, basta que o Constituinte derivado, sobre manter a velha lógica do quinto constitucional por razões que só à ação política compete avaliar, experimente classificar o instituto como um exercício temporário e honorífico para de logo se tornar possível constatar, positivamente, a sua inteira obsolescência, à falta de clientela apta para ocupar essas vagas, estabelecidas, pois, como exercício puramente cívico e participativo (que traduz a essência declarada do instituto) e não profissional, acrescida da vantagem de não se submeter às dores de uma carreira. Poderá também, alternativamente, estabelecer uma segunda variável que se traduz pela incorporação do sistema de mandato à exemplo do que já ocorre no Tribunal Superior Eleitoral e nos Tribunais Regionais Eleitorais, quanto à reserva para uuristas junto às suas composições: eles são remunerados durante o exercício do mandato judiciário, mas terão de deixar o posto e regressar às funções de origem tão logo seus períodos se completem.

Quaisquer das duas soluções sugeridas, de lege ferenda, importam em perfeita oxigenação dos tribunais, diversamente do que presentemente acontece em relação a todos os tribunais brasileiros com exceção dos eleitorais.

[1] http://www.conjur.com.br/2009-mai-15/amb-oab-voltam-discutir-imprensa-quinto-constitucional.

[2] Causa espécie na prática judiciária como o critério de Antiguidade passou a adquirir mais envergadura ética e reputacional do que o mal gerenciado critério de Merecimento, pelo que todo discurso no sentido de sua objetivação termina inutilizado.

[3] O sistema de Controle Externo inaugurado pela Emenda Constitucional nº 45/2004 não implica, rigorosamente, um controle social e democrático da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e da Magistratura Nacionais. O papel, embora dilargado a órgão cuja presença era até então desconhecido no nosso sistema judicial, não escapou, significativamente, das mãos da própria Magistratura Nacional como de resto do universo dos operadores jurídicos. Nas composições do Conselho Nacional de Justiça, em que se repetem os velhos estratagemas de indicação política, só há juristas, sejam eles Magistrados (em maioria), Representantes do Ministério Público, Advogados ou Professores de Direito. A sociedade, definitivamente, não está ali inteiramente representada, razão pela qual esse modelo de Controle Externo padece de ilegitimidade e frustra a luta que se vinha travando a muito tempo em seu favor.

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