Investigação jurássica

"O direito penal reprime, o processo penal liberta"

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17 de maio de 2009, 10h00

Ada Pellegrini - interna - SpaccaSpacca" data-GUID="ada-pellegrini-inter1.jpeg">O Estado não pode abrir mão das interceptações telefônicas, mas elas só devem ser usadas em casos de crimes específicos e quando outras provas já foram colhidas. Suas transcrições devem ser feitas por técnicos treinados, e entregues na íntegra tanto à acusação quanto à defesa dos acusados, com antecedência que permita a ambas as partes escolherem trechos para suas alegações. Os limites que você acaba de ler não estão completamente previstos na legislação brasileira atual, mas deveriam estar, pelo menos na opinião de uma das mais respeitadas processualistas do Brasil dentro e fora do país, a professora Ada Pellegrini Grinover, titular da cadeira de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Comprometida com estudos sobre o tema há quase 30 anos, quando começou a elaborar anteprojetos que deram origem à atual Lei de Interceptações — a Lei 9.296/96 —, a especialista vê no abuso do uso de escutas uma mediocridade da polícia e do Ministério Público. 

Em entrevista à Consultor Jurídico, Ada destacou falhas crônicas do uso de grampos. Uma delas está na disparidade de acesso entre advogados e promotores às provas colhidas. "Após anos de gravações, os órgãos policiais fazem a transcrição e escolhem os textos que interessam. Eles recolhem esse material aos poucos, mas a defesa tem que examinar em 30 dias", aponta. Segundo ela, técnicas mais modernas de investigação — como a italiana — já permitem que as gravações sejam ouvidas pelos dois lados e pelos juízes, e que cada um pode escolher os trechos que mais interessam. 

Parte do problema pode estar, na opinião da professora, na formação dos operadores do Direito. "Há cursos de Direito Penal, de Direito Processual Penal, que são municiosos de garantias, mas há outros em que o Processo Penal é o do inimigo", diz. Em relação aos juízes, isso pode resultar em uma mentalidade acusatória, principalmente por causa de pressão da sociedade. "Nenhum juiz é neutro, nem deve ser neutro. O juiz naturalmente traz consigo sua cultura, sua formação, seus elementos de convicção", explica. Por isso, a ponderação seria o remédio sem contra-indicações.

O excesso de litigância e a falta de juízes são os principais causadores da crise no Judiciário, na sua opinião. Ela defende que, para diminuir a demora na tramitação dos processos, os cartórios judiciais precisam ser coordenados por administradores, com formação estratégica voltada para a organização, e não pelos magistrados. "Na Alemanha e na Espanha, quem administra o cartório é um administrador judicial, não o juiz. O juiz não tem tempo nem aptidão para fazer funcionar o cartório", afirma. 

Ada elogia a iniciativa do Supremo em ocupar os espaços deixados pelos Poderes Legislativo e Executivo, e afirma que a Justiça tem sim como obrigar o poder público a cumprir suas decisões. Ela também comenta sobre a criação da Lei de Ações Civis Públicas e os esforços para permitir um maior número de legitimados a ajuizar ações desse tipo.

O conhecimento da professora foi imprescindível na elaboração de diversos projetos de lei que fizeram mudanças importantes no Direito nacional e internacional. Além das discussões que culminaram com a Lei de Interceptações Telefônicas, Ada participou da elaboração do Código de Defesa do Consumidor, da Lei de Ações Civis Públicas, do Código de Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual e das leis que recentemente reformaram o Código de Processo Penal, entre tantos outros.

Nascida em 1933 em Nápoles, na Itália, a procuradora aposentada do Estado de São Paulo chegou ao Brasil em 1951. Ela é autora de mais de duas dezenas de livros jurídicos. É doutora honoris causa pela Universidade de Milão, na Itália e ocupa a 9º cadeira da Academia Paulista de Direito. É presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual e vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais.

Mas não é só pelas leis que ajudou a fazer que o nome de Ada é lembrado nos tribunais. Em uma ação de indenização por danos morais, ela protagoniza uma queda de braço com outro ilustre processualista brasileiro, Antonio Gidi, professor assistente da University of Houston Law Center, que já deu aulas em universidades da Itália e da França. 

Ada entrou com a ação contra o professor porque Gidi escreveu, em livro lançado no ano passado, que seu nome foi excluído da autoria do Código de Modelo de Processos Coletivos do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, elaborado por ele, Ada e Kazuo Watanabe. No livro Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo — a codificação das ações coletivas no Brasil, o professor fez críticas a um projeto elaborado por um grupo comandado por Ada. Ele disse que o texto é tímido perto do anteprojeto original, do qual participou da criação. Em janeiro, o juiz César Santos Peixoto rejeitou o pedido de indenização.  A professora já recorreu ao Tribunal de Justiça de São Paulo.

Leia a entrevista:

ConJur — O projeto de lei que cria novas regras para as interceptações telefônicas, de sua autoria,  ainda tramita no Congresso. Como a professora vê o uso de escutas hoje?
Ada Pellegrini Grinover — A tese se baseia em um trabalho que começou em 1980. Naquela época ainda não havia uma legislação brasileira sobre as interceptações telefônicas. Então, fiz um estudo de Direito Comparado e de Direito brasileiro, mostrando que as interceptações telefônicas são um poderoso meio de investigação. O Estado não pode abrir mão delas, mas precisa usar com equilíbrio. Esse recurso só deve ser usado em casos extraordinários, quando não houver  possibilidade de investigação por outros meios, não podem violar as garantias de intimidade do suspeito e das pessoas que conversam com ele. Esse recurso só deve ser usado quando não houver nenhuma outra possibilidade de investigações por outros meios, e sempre com as cautelas que garantam a intimidade e a liberdade. É um contraste entre dois valores, mas o abuso nas interceptações revela mediocidade na busca de provas, a verdade seja dita.

ConJur — O projeto atual prevê essas limitações?
Ada Pellegrini Grinover — Desde que foi apresentado, na década de 1980, o projeto foi completamente desvirtuado. A lei que veio em seguida [a Lei 9.296/96], decorrente da proposta, não observou o princípio da proporcionalidade, essa necessidade de equilíbrio e de preponderância de um bem em relação ao outro. A lei possibilita interceptações telefônicas para qualquer crime. Não relaciona um rol dos crimes mais graves, para os quais seria usada a interceptação. Também não garante suficientemente o direito de defesa depois de feitas as interceptações. Em 1990, foi constituída uma comissão pelo Ministério da Justiça, que eu coordenei, e nós apresentamos um novo projeto de lei que garante o rigor dessas coisas. Esse projeto ficou parado lá até que o Ministério da Justiça apresentou outro projeto, que está agora na ponta da fila. É  melhor que a lei atual, mas ainda contempla muita carência: não tem o rol de crimes estratégicos em que as escutas podem ser usadas e determina um prazo de 180 dias para as interceptações, prorrogáveis por mais 180, o que é muita coisa. Isso implica uma interferência brutal na atividade das pessoas, não só para o investigado, mas também para as pessoas que se comunicam com ele. A proposta também não prevê a possibilidade de a defesa ou o Ministério Público escutarem juntos as gravações. Enfim, melhora um pouco a lei, mas não é ainda o ideal.

ConJur — E o que a professora fez a respeito?
Ada Pellegrini Grinover — Eu apresentei uma proposta de substitutivo da lei, primeiro ao deputado Michel Temer (PMDB-SP), quando ele ainda não era presidente da Câmara dos Deputados, e depois apresentei essa proposta à CPI dos grampos telefônicos. Os deputados da CPI disseram que fariam uma revisão desse projeto de lei. Eu tenho alguns indicadores dessa revisão, e ainda acho que não é a ideal.

ConJur — Por que?
Ada Pellegrini Grinover — A interceptação é feita exclusivamente por órgãos policiais, que fazem a transcrição e escolhem os textos que interessam. Os advogados têm pouco tempo para examinar horas, dias, meses, até anos de interceptações. Evidentemente, a defesa fica completamente limitada. A polícia e o Ministério Público ouvem a investigação e destacam os trechos que interessam, isso depois de anos de gravações. Eles recolhem esse material aos poucos, mas a defesa tem que examinar em 30 dias. Há uma disparidade de armas enorme. As ordens judiciais também são muito vagas, não mostram os indícios que justificam a medida, Também não são temporalmente limitadas, porque se entende que o prazo máximo de 15 dias para uma escuta pode ser renovado quantas vezes for necessário. Na prorrogação, muitas vezes o juiz não diz por quê o procedimento tem que continuar. Técnicas de investigação mais modernas, como a italiana, permitem que as gravações sejam ouvidas pelas partes – Ministério Público e defensor -, e cada um escolhe e transcreve os trechos que interessam. O juiz, que também tem acesso,  pode complementar se quiser. Há efetivamente uma paridade de armas.

ConJur — Em que pontos a lei pode melhorar?
Ada Pellegrini Grinover — Há vários vícios na lei. Não há controle sobre a forma de interpretar, sobre a maneira de interceptar. Há muitas montagens, e as perícias são muito raras. Os peritos deste campo sempre se queixam por não terem possibilidade de atuar como deveriam. Mas também há desrespeito à norma. Os juízes autorizam interceptação mesmo que não tenham sido tentados outros meio de investigação. A polícia já começa a investigação pela interceptação. Primeiro se intercepta, e depois se complementa com prova.

ConJur — O acesso dos advogados aos inquéritos dos acusados, julgado possível pelo Supremo Tribunal Federal, ajuda a sanar o problema?
Ada Pellegrini Grinover — Não sana, porque a polícia diz que está continuando as interceptações que, naturalmente, são sigilosas enquanto estão sendo feitas. No inquérito, não constam esses elementos, que só aparecem depois, quando as operações técnicas estão terminadas. Aí já é muito tarde, porque o advogado já é surpreendido com gravações que foram feitas pela polícia. E o pior é que não é nem a polícia técnica, mas sim qualquer policial que não é “expert” no assunto. Há um cerceamento de defesa. O acesso ao inquérito não funciona completamente.

ConJur — A que se deve esse exagero no uso das interceptações?
Ada Pellegrini Grinover — Uma das razões é o abuso da própria imprensa. Porque as interceptações são sigilosas e esse sigilo deve ser observado inclusive pela imprensa. É frequente colhermos nos jornais trechos de conversas de que os advogados ainda nem tiveram conhecimento. O público acaba tomando conhecimento de dados que foram colhidos exclusivamente pela acusação, e não daquilo que a defesa poderia dizer. O jornalista também tem uma responsabilidade. O direito à informação não pode superar o direito ao sigilo, que é previsto em lei para as interceptações. Quem tem o interesse em divulgar esses dados certamente não é a defesa, mas a acusação. Aí há também um problema funcional do Ministério Público e da polícia, que transmitem esses dados sigilosos para a imprensa. Há abuso do juiz com a concessão ilimitada de ordens de interceptações — que a lei não permite. E há abuso da polícia, que faz o que quer com esses elementos — o que, no caso das interpretações e degravações, a lei não impede. Mas ninguém se preocupa com isso, nem o juiz.

ConJur — A lei poderia corrigir as distorções?
Ada Pellegrini Grinover — Não é problema da lei, é problema do juiz. O Ministério Público e a polícia exorbitam, mas têm apoio na lei e na interpretação de que as interceptações podem durar indefinidamente. Essa interpretação da lei é errônea, já que é possível perceber que ela prevê um período de 15 dias, prorrogáveis por mais 15, salvo nos casos de crimes continuados. O Ministério Público também tem sua responsabilidade, porque certamente é ele quem alimenta esse procedimento, e a defesa fica completamente desarmada.

ConJur — O que a professora acha da afirmação do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, de que existem consórcios formados por juízes, promotores e policiais, no intuito de condenar suspeitos sem julgamento imparcial?
Ada Pellegrini Grinover — Eu acredito nisso. Muitos juízes hoje, evidentemente, vestem a camisa da acusação. Muitas sentenças demonstram exatamente um perfil policialesco. Nenhum juiz é neutro, nem deve ser neutro. O juiz naturalmente traz consigo sua cultura, sua formação, seus elementos de convicção. Não diria que é um aparelho, mas certamente há uma distorção nos órgão da acusação e dos juízes na colheita dessas provas. E aí se tem que recorrer aos tribunais. A imprensa e a opinião pública também adoram essa matéria, e um jornal que recebe denúncias não vai sumir com essas informações. 

ConJur — Pode-se dizer que o chamado Direito Penal do inimigo, que não observa o fato do crime, mas a personalidade do criminoso, tem ganhado terreno nas decisões?
Ada Pellegrini Grinover — Com certeza. É uma forte pressão sobre os juízes. Se você perguntar ao povo, ele quer pena de morte, supressão de garantias e processos sumários. Predomina a ideia de que alguém é culpado só porque foi indiciado ou porque tem uma ação penal contra si. As pessoas não entendem o princípio da presunção de inocência, o direito ao silêncio, porque acreditam na máxima de que “quem não deve não teme”. A nossa sociedade tem essa mentalidade, e o juiz faz parte da sociedade. Eu não devo, mas temo sim, nesse estado de coisas, porque isso pode afetar a qualquer um de nós. Assim também pensam muitos especialistas. Há cursos de Direito Penal, de Direito Processual Penal, que são municiosos de garantias, mas há outros em que o processo penal é o do inimigo. Aí cabe ao juiz escolher de que lado ele vai ficar.

ConJur — A existência de varas especializadas em crimes financeiros propicia uma pressão ainda maior, por julgar crimes de colarinho branco, em que os acusados são demonizados?
Ada Pellegrini Grinover — A vara especializada não é um problema em si, mas quem o tribunal manda para lá. Eu não acredito que não haja juízes imparciais. O importante é escolher bem os juízes para essas varas, o que é função do tribunal. A especialização é sempre interessante, mas tem de ser da matéria e não do espírito do juiz. Um juiz linha dura vai para lá? Não. Tem de haver uma seleção, o tribunal tem de ser mais criterioso.

ConJur — Os argumentos usados pelo Ministério Público para defender seu poder investigatório, estão de acordo com a melhor interpretação da Constituição?
Ada Pellegrini Grinover — Seria o ideal, mas não é. A Constituição não prevê isso. Todo mundo pode investigar, eu, você, uma associação. Mas isso não pode servir como elemento equiparável ao inquérito policial. Tem de haver uma lei para isso. Eu defendo a participação do Ministério Público na investigação criminal, como acontece em todas as legislações modernas. Quem investiga é o Ministério Público, que se serve da polícia para a instrumentalização definitiva. Mas a nossa Constituição diz que o inquérito policial é privativo da policia. Então, existem muitas teorias sobre quem colheu mais provas, e se o MP pode acusar, porque não pode investigar. Temos de chegar a uma posição de equilíbrio, e as instituições devem se juntar. A nossa proposta de inquérito policial contemplava uma grande co-participação entre a polícia e o Ministério Público. Não pode haver uma investigação do Ministério Público e outra da polícia, porque isso seria um bifrontalismo da acusação, deixando a defesa isolada. Tem de haver uma integração. O Ministério Público exerce constitucionalmente o controle externo da polícia, e isso significa uma integração de forças. Mas para que o Ministério Público investigue como pretende, isoladamente e com um poder paralelo, deve existir uma lei.

ConJur — Seria necessária uma emenda constitucional?
Ada Pellegrini Grinover — Não. Basta que uma lei estabeleça isso. Mas o Ministério Público não poderia escolher os casos em que atuaria, como ele faz. Ele quer investigar os casos de repercussão, que estão sob os holofotes, que chegam à imprensa. A lei deveria dar ao MP a atribuição de investigar determinada matéria e ele teria de fazer em todos os casos, sem selecionar. Esse é um princípio de igualdade. Em segundo lugar, tem de haver um regramento dessa atividade, assim como existe regramento para a polícia. O ideal seria que as duas instituições começassem a se entender melhor para fazer um trabalho conjunto, apontando cada qual a sua experiência em todos os casos. O MP alega que não tem estrutura, por isso tem de escolher os casos, mas isso fere a igualdade. As duas instituições não conversam, não colaboram, cada uma quer o seu monopólio.

ConJur — A professora já colaborou em inúmeros projetos de lei para mudanças processuais. Experiências recentes, como da criação da tutela antecipada, não resolveram a crise do Judiciário, já que a tutela não reduziu o número de processos e aumentou a quantidade de agravos de instrumentos. Existe alguma solução por essa via?
Ada Pellegrini Grinover — A solução legislativa não é mais o caminho. As nossas leis processuais são muito boas, mas quando se abre um gargalo, fecha-se outro. A proliferação de agravos é uma maldição, consequência direta da tutela antecipada. A lei não pode fazer mais do que isso. Reformas na lei brasileira, tanto no processo civil como no processo penal, que agora é pauta no Congresso Nacional, estão no caminho certo. Mas o problema da Justiça é o excesso de litigância. Os planos econômicos, os problemas tributários e até mesmo uma Constituição muito mal feita levam a uma litigiosidade grande no Brasil. Esse é o problema externo, que aumenta por causa do aumento do acesso à Justiça. Por outro lado, há problemas internos funcionais, de disfunção do Poder Judiciário, de organização judiciária, de baixo número dos juízes. Também há problemas de mentalidade dos operadores do Direito, que resistem às mudanças, tanto na parte da judicatura como na parte do exercício de defesa e acusação. É um conjunto de fatores de que a lei, sozinha, não consegue dar conta. Ela pode indicar um caminho, mas não adapta.

ConJur — Quais as mudanças mais urgentes?
Ada Pellegrini Grinover — A administração dos processos. O tempo morto em que o processo fica parado no cartório alonga demasiadamente a tramitação. Quem gere o cartório é o juiz, que não é a pessoa mais indicada para a gestão de um cartório. Nós estamos começando uma pesquisa no Cebepej [Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais] para verificar o tempo morto durante as fases dos processos. Depois que fizermos esse levantamento, vamos submetê-lo a um estudo interdisciplinar, com participação de setores públicos, administradores, sociólogos e profissionais do Direito. Já há exemplos de soluções para isso. Na Alemanha e na Espanha, quem administra o cartório é um administrador judicial, não o juiz. O juiz não tem tempo nem aptidão para fazer funcionar o cartório, salvo raras exceções.

ConJur — Isso seria corrigido com uma lei processual?
Ada Pellegrini Grinover — Bastaria uma nova lei que definisse quem administra o cartório. Não tem nada a ver com código, é procedimento. É uma questão de prática, uma questão pragmática de fluxo dos procedimentos, de roteiros, de rotinas. Por que não criar um cargo de administrador de cartório?

ConJur — Recursos eletrônicos como a videoconferência fazem parte da solução?
Ada Pellegrini Grinover — Nós temos uma ótima lei de processo eletrônico, tanto para o Processo Civil como para o Processo Penal. Mas a implementação é difícil. O advogado não se acostuma, o cartório não se acostuma, o juiz não se acostuma. Algumas experiências de processos sem papel na Justiça Federal e em Juizados Especiais têm dado certo, mas vai levar pelo menos dez anos para se chegar a uma mudança concreta. A saída mais plausível é termos mais juízes.

ConJur — O professor Kazuo Watanabe propõe que, caso a parte perdedora não conteste uma decisão interlocutória dada no processo, a causa termine ali mesmo, sem julgamento de mérito. Isso atenuaria a crise? 
Ada Pellegrini Grinover — Esse é o nosso projeto de estabilização da sociedade vertical. O ônus, na tutela antecipada, é da parte prejudicada. A ideia é possibilitar a tutela em um procedimento autônomo prévio, um processo em que só se pede a tutela. Então, se ela for deferida no curso do processo, cabe ao prejudicado — ou ao autor, caso a tutela seja deferida parcialmente —, impugná-la e pedir o prosseguimento do processo. Se ele se conformar, o processo se extingue, a tutela antecipada se estabiliza e faz coisa julgada. A coisa julgada fica vinculada a decisão antecipatória.

ConJur — O Congresso costuma agir com rapidez somente quando surge uma situação emergencial ou polêmica. Leis criadas dessa forma são efetivas?
Ada Pellegrini Grinover — Não. Até porque são leis que cedem a pressões momentâneas, e ninguém legisla bem sob pressão. Veja o que acontece com as reformas do Processo Penal. As reformas do Processo Civil andaram bem. Por quê? Porque aquilo dizia respeito, principalmente, a bens patrimoniais. É claro que há também bens pessoais relevantes protegidos pelo Processo Civil, mas ele é voltado para questões patrimoniais, o que interessa a todos. Já o Processo Penal interessa a quem? Naturalmente ao aparato estatal, mas também à liberdade, para a qual o Congresso não está nem aí. Foi necessário que houvesse crimes de colarinho branco para que se despertasse o interesse pela reforma do Processo Penal. Então, o Processo Penal deveria ser o estatuto da liberdade, garantidor, sigiloso, enquanto o Direito Penal faz o papel de estatuto da repressão. 

ConJur — Há quem critique o fato de o Supremo legislar, como fez no caso da proibição do uso de algemas pela polícia em alguns casos. Ele também não agiu sob pressão? 
Ada Pellegrini Grinover — Há casos em que o uso de algemas é proibitivo. Acusado algemado em juízo, por exemplo, é inadmissível. Eu me recusei, no Tribunal do Júri, a defender um acusado algemado. Pedi que o juiz determinasse a retirada das algemas, ou sairia do plenário. Se perante os jurados aparece um sujeito algemado, já se impõe um estigma, uma aparência de periculosidade, de temor, influencia diretamente os jurados. Os jurados decidem imotivadamente, de maneira que qualquer pressão psicológica é muito importante.

ConJur — Mas a regra não deveria vir do Legislativo?
Ada Pellegrini Grinover — O Supremo está ocupando um espaço do Legislativo. É a lei da física, de que todo espaço deve ser ocupado por um corpo. Nós estamos vivendo, no Brasil e no mundo inteiro, a questão da judicialização da política. Isso acontece porque as autoridades competentes, o Legislativo e o Executivo, não resolvem problemas de políticas públicas. Até alguns anos atrás, acreditava-se que o mérito do ato administrativo não pudesse ser apreciado em via judicial. Com a Constituição de 1988, que fixou as diretrizes fundamentais do Estado brasileiro — do Estado como um todo, e portanto, o conjunto de funções legislativas, executivas e judiciárias —, isso mudou. O Estado só é dividido para o exercício das funções, e tem que buscar cumprir esses princípios fundamentais que estão previstos no artigo 3º da Constituição. Se o Executivo trata políticas públicas equivocadamente de maneira oficial, deve haver um controle do Judiciário, que é um Poder de controle. Se a administração se omite, o Judiciário, no controle dessas políticas publicas, traça uma política pública no lugar do Executivo. Se tem de se construir uma escola — esse é um dos bens fundamentais previstos na Constituição — e o poder público não constrói, o Judiciário determina que no orçamento futuro se preveja a construção. E deve controlar o cumprimento depois.

ConJur — E como a Justiça pode obrigar o Executivo a cumprir o que ela determinou?
Ada Pellegrini Grinover — Nesse controle não há a inversão do princípio da separação dos Poderes. O exercício das funções é reservado ao Poder competente, mas se ele não exerce suas funções, ele está desrespeitando a Constituição. Portanto, se trata de um controle da constitucionalidade que pode ser exercido pelo Judiciário. Se a Justiça determina que se reserve no próximo orçamento uma verba necessária —, isso quando não é caso de urgência que dispense até previsão em orçamento —, como nosso orçamento não é vinculante e as verbas podem ser repostas, existe uma obrigação de fazer do administrador. A Justiça pode até dar algumas diretrizes sobre a elaboração da obra em questão, quando há omissão. Pode ser pedida ao Judiciário a revisão ou a implementação de uma política pública tanto em ação coletiva — uma Ação Civil Pública ou um Mandado de Segurança coletivo —, como também em ações individuais, que muitas vezes têm efeitos coletivos. Eu citei isso em um artigo que será publicado em um livro em homenagem ao professor Watanabe, Estudos em Homenagem ao Professor Kazuo Watanabe. [A ConJur publicou o artigo. Clique aqui para ler.]

ConJur — É o que o Supremo está fazendo no caso dos tratamentos médicos não acessíveis por meio do Sistema Único de Saúde, do governo federal?
Ada Pellegrini Grinover — Esse é um caso de política pública equivocada. A intervenção do Judiciário nas políticas públicas deve observar três requisitos, que já foram assentados muito bem pelo próprio Supremo Tribunal Federal. Primeiro, a razoabilidade do pedido, que pode ser individual ou coletivo, e tem que ser desarrazoada a posição da administração pública. O segundo requisito é a reserva orçamentária, ou seja, o dinheiro tem que estar previsto no orçamento. Terceiro, que seja efetivamente algo que diga respeito ao chamado "mínimo necessário". Ou seja, o mínimo suficiente para garantir a dignidade humana. Isso porque há pedidos que não são razoáveis, como requisições individuais de tratamentos no exterior, e importação de remédios caríssimos que a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária, do Ministério da Saúde] nem liberou. Esses não são pedidos que atendam à racionalidade de uma política pública de saúde, que deve dar o máximo possível ao maior número de pessoas, e não têm previsão orçamentária.

ConJur — Na sua opinião, esse tipo de decisão pode ser dada por juízes individualmente ou tem de passar por um colegiado?
Ada Pellegrini Grinover — O nosso juiz de primeira instância também é juiz do controle da constitucionalidade por exceção, do controle difuso da constitucionalidade. Então, no nosso sistema jurídico, o juiz de primeira instância pode perfeitamente, com base na inconstitucionalidade de uma política pública ou de uma omissão em uma política pública — que também é uma omissão inconstitucional —, determinar esse tipo de medida. E também é ele quem pode, em um segundo processo de obrigação de fazer, acompanhar efetivamente o cumprimento dessa decisão.

ConJur — A professora também tem trabalhado para ampliar o rol de entidades com legitimidade para ingressar com ações de interesses difusos. Como andam essas proposições?
Ada Pellegrini Grinover  — A Lei da Ação Civil Pública [Lei 7.347/85] é de 1985. Em 1990, fizemos o Código de Defesa do Consumidor [Lei 8.078/90], complementando a parte processual da Lei de Ação Civil Pública. Então, resolvemos fazer o Código de Modelo de Processos Coletivos, do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, para depois revermos nossa legislação. Trabalhei por três anos com doutorandos da USP, discutindo o que deveria ser mudado nos processo coletivos, e fizemos um anteprojeto do Código Brasileiro de Processo Coletivo, apresentado ao Ministério da Justiça entre 2007 e 2008, quando o ministro era Márcio Tomas Bastos. O projeto ficou parado, até que a Secretaria da Reforma do Judiciário resolveu reformá-lo. A proposta foi para a Casa Civil, onde as manifestações da Fazenda e da Advocacia-Geral da União foram aceitas sem debate. Não conseguimos incluir, por exemplo, a legitimação para pessoas físicas. Agora, temos um monstrengo que já foi apresentado no Congresso Nacional.

ConJur — E quanto à possibilidade de a Defensoria Pública entrar com Ação Civil Pública?
Ada Pellegrini Grinover — A Defensoria já vinha ajuizando Ações Civis Públicas, às vezes até em conjunto com o Ministério Público. A lei dá essa legitimação. Paradoxalmente, agora o Ministério Público se insurge com a possibilidade. Há membros do Ministério Público que concordam com essa legitimação, mas a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a atribuição. Isso porque a titularidade da Ação Civil Pública pela Defensoria cria um empecilho ao exercício da função pelo Ministério Público. O que eles querem é exclusividade. Eu dei um parecer pro bono em que sustentei a plena legitimação por duas razões. Em primeiro lugar, quando a Constituição atribui a ela a representação dos necessitados, isso não significa só os economicamente necessitados, mas também os juridicamente necessitados, que são aqueles que estão no quadro social em uma posição de vulnerabilidade, como acontece na tutela dos interesses individuais e que, portanto, até por força da interpretação dessa norma literal, podemos chegar à conclusão quanto à legitimação no caso de interesses difusos. Em segundo lugar, a Constituição estabelece apenas um mínimo que a Defensoria pode fazer, a sua função precípua, sem prejuízo de outras funções que a lei venha a atribuir. 

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