Preço da liberdade

Fim da punição com pagamento de tributo estimula delito

Autor

  • Leandro Barreto Bortowski

    é bacharel em Direito pela PUCRS técnico judiciário do TRF 4ª Região e especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural – IDC

10 de maio de 2009, 13h27

A extinção da punibilidade nos delitos econômicos à luz do Princípio da proporcionalidade

A diferença entre um Estado Autoritário e um Estado Democrático de Direito está na motivação constitucional das restrições às liberdades, garantias e interesses da sociedade, base e a finalidade da existência do Estado: a Constituição de nada vale sem o amparo social, e a normatividade de nada serve senão para atender a coesão da coletividade. No momento em que se esquece ou relega a razão de ser do Estado, abre-se espaço para a arbitrariedade e o futuro da nação fica ao talante dos mandos e desmandos dos politicamente e/ou economicamente poderosos, que só tem o trabalho de justificar formalmente seus atos para perpetuar injustiças e barbaridades. Assim, para dar embasamento substancial às atividades do Executivo, do Legislativo e do Judiciário que advém a vital importância do Princípio da proporcionalidade.

Especificamente sobre o Poder Judiciário, explica Luigi Ferrajoli que o Constitucionalismo quebrou com o paradigma paleopositivista da intocabilidade do ordenamento jurídico, não só permitindo como obrigando que o operador do direito faça uma leitura constitucional do arcabouço legislativo a fim de verificar se estão permitindo a realização dos direitos fundamentais ou os estão vilipendiando e até impedindo a sua manifestação, numa clara oposição à ideia de um Poder Judiciário politicamente nulo, como pregava Montesquieu.

Com o Constitucionalismo – e nessa barca vem na proa o Princípio da proporcionalidade – a validade da lei passa a abranger a necessidade de estar em sintonia com os direitos fundamentais, numa ruptura dos grilhões do formalismo exacerbado na legitimação e aplicação da lei. Contudo, é imprescindível advertir que o Princípio da proporcionalidade não fornece um juízo absoluto sobre a legitimidade constitucional de uma disposição normativa, cabendo ao intérprete apenas verificar se a norma tem legitimidade bastante (mínima), sendo vedado adentrar em juízo de oportunidade e conveniência, competência legislativa exclusiva.

Pois bem. O Princípio da proporcionalidade tem origem no Tribunal Constitucional Alemão, na experiência judicial tedesca, sendo um princípio constitucional implícito de fundamental importância, pois estabelece balizas à compreensão e solução do problema apresentado, impedindo que a retórica impere nas justificativas do legislador ou nos argumentos do julgador. Ele decorre do Princípio do Devido Processo Legal Substancial, o qual prega a constante releitura da legislação, a fim de averiguar a efetividade do acesso e implementação dos direitos, garantias e liberdades constitucionais.

O Princípio da proporcionalidade é visto, majoritariamente, como tendo uma dupla face, as quais estabelecem os limites máximo e mínimo da intervenção estatal: o princípio da proibição de excesso (übermassverbot) e o princípio da proibição de proteção deficiente (untermassverbot). A desproporcionalidade de uma lei pode consistir tanto no excesso restritivo (agir demasiado do Estado), quanto na deficiente proteção (inoperância estatal). Em outras palavras, o Princípio da proporcionalidade pode ser averiguado no equilíbrio dos exageros. Faz-se mister ter em mente, contudo, que o Princípio da proporcionalidade não fica adstrito a essas duas categorias, apesar de serem irretocavelmente pontos dos mais relevantes para aquilatar a proporcionalidade do objeto estudado.

Subprincípios da Proporcionalidade

O Princípio da proporcionalidade tem uma composição trifásica: subprincípio da adequação, da necessidade e da proporcionalidade stricto sensu. A sequência em que foram citados não é meramente alfabética, mas segue uma lógica linear e subsidiária que determina que só se procederá ao exame do subprincípio seguinte caso o anterior tenha sido cumprido.

O subprincípio da adequação – também denominado de idoneidade, conformidade, pertinência – consubstancia-se na investigação da capacidade do meio produzir o resultado pretendido. Cumpre observar, todavia, que somente se o meio escolhido for manifestamente incapaz de contribuir para a consecução do fim pretendido é que ele será desproporcional: o meio deve realizar o fim, ainda que esse meio seja o que menos, pior e com menor certeza promova o fim. Esse subprincípio evita, portanto, escolhas arbitrárias, limitando o Poder ao direcionar o agente político a uma eleição condizente com a realidade pretendida pela retirada, do seu âmbito de escolha, de opções patentemente ineficazes.


O subprincípio da necessidade – também denominado de exigibilidade, indispensabilidade, da alternativa menos gravosa – busca o meio idôneo mais moderado, mas igualmente eficaz na consecução do fim colimado. Ele tem relação com os princípios da intervenção mínima, da proibição de excesso e da proibição de proteção deficiente, e apregoa que, entre os meios a disposição, deve-se optar por aquele que seja menos gravoso, quer seja sobre o prisma do excesso (aquele que menos afete os interesses e liberdades em questão), ou da insuficiência (aquele mais proteja os interesses e liberdades em questão). Assim, o meio apenas será desnecessário se for o que, evidentemente, mais afete ou menos proteja os interesses e liberdades para obtenção da finalidade tencionada.

O subprincípio da proporcionalidade stricto sensu, diferentemente dos outros dois subprincípios (nos quais a análise é feita in abstracto), é casuístico: atua verificando se, no caso concreto, o custo (intervenção em um direito fundamental) se justifica diante do benefício (realização de outro direito fundamental). Para saber se o meio é proporcional em sentido estrito é essencial responder ao seguinte questionamento: na ponderação entre o custo e o benefício, é sustentável, juridicamente, sofrer esse custo para obter esse benefício?

Estabelecidos os parâmetros dentro dos quais uma disposição normativa pode adjudicar-se proporcional, cumpre discorrer sobre o âmbito legislativo de incidência de tais parâmetros no presente trabalho.

Delinquência Econômica e o Espectro Legal da Extinção da Punibilidade pelo Pagamento do Tributo

Em toda discussão acadêmica os envolvidos se perguntam: os delitos econômicos têm justificação jurídico-constitucional ou estão inquinados de um vício de origem, qual seja, a criminalização de infrações tributárias como forma de arrecadação?

Conforme ensinamento de Andrei Zenkner Schmidt: “Se as sanções previstas para a proteção do Sistema Tributário Nacional têm por objetivo evitar a evasão fiscal, parece claro que uma efetiva fiscalização em nível administrativo já tornaria supérflua a intervenção penal a respeito da matéria. […] Parece que uma fiscalização tributária efetiva é o melhor caminho para a prevenção da sonegação, pois não é a certeza da prisão que poderia impedir este delito, mas sim a certeza de que a fraude seria, impreterivelmente, descoberta e punida ainda que só pecuniariamente.” (SCHMIDT, Andrei Zenkner. Exclusão da punibilidade em crimes de sonegação fiscal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 73-74) (grifo no original).

É bem verdade que a racionalização da tributação reduziria, em algum nível, o impulso à sonegação. Ocorre que, infelizmente, a busca por lucros sempre maiores não evitaria as sonegações, ainda que a tributação diminuísse e a fiscalização aumentasse. Esses indivíduos não visam pagar menos, mas não pagar!

Ora, uma vez que os delitos econômicos preveem comportamentos que colocam em risco ou lesam a ordem econômica, quer no tocante as suas estruturas de funcionamento interno (manutenção do sistema econômico), quer na eficiência das práticas externas (credibilidade, segurança e concretização das incumbências prioritárias e secundárias do Estado), a previsão penal sobre tais comportamentos configura-se imprescindível para efetivação dos ditames constitucionais (CRFB, art. 170 e ss.). A criminalização dessas condutas está acordante com sua elevada gravidade, não observável, na maioria das vezes, a priori, senão nos efeitos deletérios produzidos a pequeno, médio e longo prazo. Longe de defender que os crimes de “colarinho branco” tenha um jaez exclusivamente econômico, se está demonstrando que a conduta em si é nefasta à vida em comunidade, merecendo, pois, uma punição adequada.

É bem verdade que a mídia tem influenciado a política criminal e  a legislação penal, contudo entende-se que, no caso da criminalidade econômica, os meios de comunicação de massa não geraram uma opinião pública deturpada. Os delitos econômicos estão longe de ser fruto de um entendimento geral insuflado por notícias forjadas pela mass media, porquanto a sua importância no dia-a-dia jornalístico é condizente com a realidade observada. Os elementos que o legislador lançou mão para legitimar constitucionalmente a necessidade da elaboração de leis penais nessa área foram muito mais técnicos e documentalmente constatáveis, não tendo sido mera resposta à pressão pública, suposto eco da “coação midiática”.


Deixando a esfera da política criminal stricto sensu, também é possível debater-se sobre a proporcionalidade dessa criminalização. O subprincípio da necessidade tem relação, como já dito, com o princípio da Intervenção Mínima, o qual prega que, se existem sanções de outra ordem, suficientes para tutelar certo bem jurídico, a criminalização não encontra amparo constitucional. Assim, é preciso responder se a mera punição administrativa  e/ou civil garante a mesma ou maior proteção à ordem econômica do que a alcançada pelo Direito Penal.

Salvo melhor juízo, não se pode deixar que essas condutas passem ao largo da incidência do Direito Penal, haja vista seu efeito devastador na economia e, por consequência, na sociedade, bem como a sua potencialidade criminógena, denominada de “efeito espiral”: muitos empresários à beira da falência devido à concorrência desleal acabam por trilhar a mesma senda de seus impertérritos concorrentes passando, também, a sonegar tributos (cf. RIGHI, Esteban. Los delitos económicos. Buenos Aires: Ad Hoc, 2000, p. 83-84).

Espectro Legal da Extinção da Punibilidade pelo Pagamento do Tributo

A Lei n.º 4.729, de 1965 previa no seu art. 2º, a extinção da punibilidade quando o agente promovesse o recolhimento do tributo devido antes do início da ação fiscal própria na esfera administrativa. Posteriormente, o Decreto-lei n.º 157, de 1967, em seu art. 18, alargou o prazo, permitindo a extinção da punibilidade pelo pagamento posterior à decisão da autoridade administrativa de primeira instância.

Por sua vez, a Lei n.º 8.137, de 1990, estatuiu a mesma disposição no art. 14, com a diferença de que permitiu o pagamento do tributo, inclusive dos acessórios, até antes do recebimento da denúncia. Ambos dispositivos foram revogados pelo art. 98 da Lei n.º 8.383, de 30-12-1991. Só em 26-12-1995, com a Lei n.º 9.249, que voltou a vigorar a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, conforme dicção de seu art. 34.

Surgiu um debate sobre a possibilidade de o parcelamento, independentemente do adimplemento integral, extinguir a punibilidade. O deslinde foi favorável a essa tese, restando pacificado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por maioria, que a lei, ao utilizar a expressão “promover o pagamento”, não distinguiu entre pagar e parcelar (RHC n.º 11.598-SC – 3ª Seção – p.m. Rel. Min. Gilson Dipp – j. 08-05-2002 – DJ 02-09-2002; Inq n.º 352-ES – Corte Especial – Rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 04-08-2004 – DJ 04-04-2005). Em posição divergente, para o Supremo Tribunal Federal (STF) somente o pagamento integral antes do recebimento da denúncia produziria o efeito de extinguir a punibilidade (HC n.º 76978-RS – 2ª T. – Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – j. 29-07-1998 – DJ 19-02-1999).

Em 10-04-2000 entrou em vigor a Lei n.º 9.964, de 2000, que instituiu o Programa de Recuperação Fiscal – REFIS, tratando da extinção da punibilidade no art. 15, caput e §§ 1º e 3º. Nesses dispositivos, que acabaram por revogar o constante no art. 34 da Lei n.º 9.249, de 1995, ficaram consignadas três coisas: (a) a suspensão da pretensão punitiva do Estado, bem como (b) da prescrição criminal, enquanto a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no REFIS, desde que a inclusão seja anterior ao recebimento da denúncia; e (c) o pagamento integral dos débitos tributários, inclusive os acessórios, antes do recebimento da denúncia, extingue a punibilidade.

Como se verifica, surge uma diferença do sistema da Lei n.º 9.249, de 1995: o REFIS não extingue a punibilidade com o parcelamento, mas apenas suspende a pretensão punitiva. Em razão disso, parte do STJ passou a adotar a posição sempre sustentada pelo STF de que apenas o pagamento integral extingue da punibilidade (RHC n.º 15332-PR – 5ª T. – Rel. Min. Laurita Vaz – j. 09-08-2005 – DJ 05-09-2005; REsp n.º 159633-DF – 5ª T. – Rel. Min. Gilson Dipp – j. 24-10-2000 – DJ 04-06-2001). Entretanto essa mudança de paradigma do STJ restringiu-se aos casos em que o parcelamento foi concedido a partir da entrada em vigor do REFIS.


Em 30-05-2003, a Lei n.º 10.684 estabeleceu um novo panorama à extinção da punibilidade: o Programa de Parcelamento Especial (PAES ou REFIS II). No art. 9º, caput e §§ 1º e 2º, foi consignado algo a mais ao contribuinte, a extinção da punibilidade independentemente de quando ocorrer o pagamento integral, razão pela qual lhe foi conferida incidência geral e irrestrita, porquanto lex mitior: mesmo não aderindo ao PAES, se pagar integralmente o débito, extinta estará a punibilidade (STF – Inq n.º 1864-PI – Pleno – Rel. Min. Joaquim Barbosa – j. 02-04-2007 – DJ 03-08-2007; STJ – Apn n.º 367-AP – Corte Especial – Rel. Min. Barros Monteiro – j. 05-04-2006 – DJ 21-08-2006; TRF4 – ACR n.º 2004.04.01.000171-7-PR – 7ª T. – p.u. – Rel. Dês. Néfi Cordeiro – j. 10-04-2007 – D.E. 18-04-2007).

Cumpre discorrer sobre os arts. 168-A e 337-A, ambos do Código Penal (CP). O crime de apropriação indébita previdenciária, atualmente previsto no art. 168-A do CP, foi introduzido pela Lei n.º 9.983, de 17-07-2000, inovou ao estabelecer requisitos diversos para a extinção da punibilidade. No § 2º do referido artigo está exarado que a espontânea declaração e pagamento antes do início da ação fiscal extingue a punibilidade. Já no § 3º tem-se a fixação de duas hipóteses de perdão judicial: uma quando o pagamento é feito antes do oferecimento da denúncia, e a outra quando o valor é ínfimo (atualmente o patamar aplicável como ínfimo é R$ 10.000,00, nos termos da Lei n.º 11.033, de 21-12-2004, que deu nova redação ao art. 20 da Lei n.º 10.522, de 2002). Por fim, o crime de sonegação de contribuição previdenciária, previsto no art. 337-A do CP, igualmente incluído pela Lei n.º 9.983, de 2000, permite, em seu § 1º, a extinção da punibilidade pela mera declaração e confissão do crime antes do início da ação fiscal, não precisando nem mesmo haver o pagamento.

Uma vez em mente a estrutura individualizada do Princípio da proporcionalidade e as peculiaridades do espectro legal da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, chega o momento desses conhecimentos imbricarem-se.

Princípio da Proporcionalidade e a Extinção da Punibilidade pelo Pagamento do Tributo

Se o bem jurídico dos delitos econômicos é a garantia da higidez da ordem econômica e não a mera arrecadação, dessarte cumpre perscrutar: a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo contribui, o mínimo que seja, para a proteção do bem jurídico acima referido? Efetivamente que não! Em que o afastamento da ação penal pelo pagamento a posteriori ajuda no mister de garantir o cumprimento, no momento azado, das leis cuja violação corresponde a um delito econômico?

A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo em nada favorece a efetividade da norma penal e a objetividade jurídica por ela protegida. Pelo contrário, esse tipo de benevolência acaba por deturpar o bem jurídico tutelado ao deixar transparecer uma suposta finalidade arrecadatória. Ademais, essa causa extintiva da punibilidade, somada a uma deficiente fiscalização, cria o ambiente perfeito a impedir a persecução penal e, consequentemente, acarreta a tão conhecida impunidade.

Cícero Marcos Lima Lana pondera que as penas fixadas às condutas previstas nos art. 1º e 2º da Lei n.º 8.137, de 1990  não permitem uma adequada e eficaz proteção penal, haja vista que uma pena máxima de cinco anos restringe o cumprimento da pena privativa de liberdade aos regimes semiaberto e aberto (CP, art. 33), isso caso não haja substituição (CP, art. 43 e 44); e, por outro lado, uma pena máxima de dois anos acaba por caracterizar os crimes contra a ordem tributária arrolados no art. 2º da referida lei como “infrações penais de menor potencial ofensivo”, ex vi do art. 61 da Lei n.º 9.099, de 1995, permitindo, dessarte, a transação penal e a composição civil dos danos (LANA, Cícero Marcos Lima. Os crimes de sonegação fiscal e o princípio da intervenção mínima. Campinas: Impactus, 2006. passim p. 83-115). Ora, se é possível sustentar a desproporcionalidade – no viés da proteção deficiente – das penas aplicadas, a fortiori a desproporcionalidade de uma previsão legislativa extintiva da punibilidade pelo mero “adimplemento” é conclusão que se impõe.


Pagar tributos é um dever cívico essencial, haja vista que significa contribuir para a sustentabilidade do Estado frente aos gastos públicos. No momento em que certos indivíduos evadem-se desse dever fundamental, eles estão, concomitantemente, desestruturando a composição binária (direitos e deveres) da cidadania, violando a efetividade dos deveres fundamentais e ameaçando a sustentabilidade do Estado.

Dessarte, assim como toda a conduta que visa iludir o cumprimento das obrigações tributárias é, na verdade, atentatória à vida em comunidade, todo o dispositivo normativo que acabe por fazer letra morta dos instrumentos jurídico-penais de proteção da ordem econômica vai de encontro às lídimas pretensões sociais de um Estado capaz de garantir as mais básicas condições aos seus integrantes, não sendo, portanto, apropriado à finalidade a que se propõe.

Para demonstrar a desnecessidade da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, cumpre responder as seguintes perguntas: é a extinção da punibilidade o meio menos gravoso para o Estado brasileiro angariar recursos à consolidação dos deveres constitucionais? Será que uma efetiva e desburocratizadora reforma tributária, ainda que sem redução da carga de tributos, mas capaz de reduzir a informalidade e simplificar a legislação, não seria uma opção menos gravosa, ainda que mais complexa, para o incremento arrecadatório?

Ora, diferentemente da extinção da punibilidade pelo pagamento, poder-se-ia, como apontado por Douglas Fischer, lançar mão das regras do art. 91, I do CP (indenizar o dano causado pelo crime) e arts. 125 a 134 do CPP (medidas assecuratórias), opção que reforçaria o princípio da igualdade, pois quem cumpre as leis não se consideraria prejudicado diante da impunidade decorrente da venalidade orquestrada pelo afastamento da esfera penal mediante paga, bem como reativaria a crença na efetividade das normas penalizadoras (FISCHER, Douglas. Delinquência econômica e o estado social e democrático de direito: uma teoria à luz da constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. p. 204-205). Élcio Arruda encontrou outra solução para o problema: o pagamento do tributo seria tão-somente uma causa de mitigação da pena, caso feito antes da denúncia, nos termos do art. 16 do CP (arrependimento posterior), ou uma atenuante genérica, se feito após a denúncia (CP, art. 65, III, b), mas nunca uma causa de extinção da punibilidade (ARRUDA, Élcio. Existe Crime Tributário. Revista do Tribunal Regional Federal da 1ª Região – TRF1, n. 4, ano 17, abr. 2005. p. 51-52).

Diante da constatação da existência de alternativas menos gravosas e igualmente eficazes, ou quem sabe até mais eficazes, para proteção da higidez da ordem econômica, fica demonstrada a desnecessidade da extinção da punibilidade pelo pagamento, sendo totalmente injustificada a sua manutenção no ordenamento constitucional.

Uma vez que a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo conduz, em grande parte, ao desestímulo do cumprimento da norma penal incriminadora, pergunta-se: o custo do esvaziamento da prevenção geral positiva é suplantado pelo benefício do retorno ao Fisco dos valores dele usurpados?

Visto agora sobre o aspecto da igualdade de tratamento na lei e perante a lei, faz-se mister responder a outra questão: o ressarcimento do Erário, evitando o ius puniendi estatal, vale o esboroamento do princípio da igualdade? O mestre Celso Antônio Bandeira de Mello explana que, para a verificação da isonomia de certa escolha, é preciso adentrar em três questões, as quais, transpostas para o presente trabalho, traduzem-se da seguinte forma: 1ª) é a extinção da punibilidade um critério de discrímen válido, isso é, passível de ser objeto de discriminação?; 2ª) há um fundamento lógico para aplicar-se a extinção da punibilidade pelo pagamento ao delinquente econômico e não, também, aos infratores da criminalidade tradicional?; 3ª) esse fator de diferenciação está congraçado ao sistema normativo constitucional? (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2007). Analisar-se-ão em conjunto as questões.


Inicialmente, é preciso esclarecer que o critério de diferenciação deve residir na pessoa ou situação na qual a discriminação tem seu lugar, contudo de maneira que não se torne um privilégio. Com isso em mente, questiona-se: o benefício da extinção da punibilidade pelo pagamento nos delitos econômicos reside na qualidade do seu destinatário (de regra economicamente bem provido) ou, quem sabe, na situação tratada (desvio, ocultação, sonegação de vultosas somas de dinheiro)? Obviamente que não, ou não deveria! Quanto à harmonia constitucional, poder-se-ia dizer que a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo trará uma maior efetividade no cumprimento dos objetivos da República Federativa do Brasil (CRFB, art. 3º), haja vista que, com o aumento da arrecadação, o Estado terá verba para cumprir com suas obrigações. Ocorre que os efeitos dessa iniciativa andam na direção contrária: extinguir a punibilidade pelo pagamento do tributo tem feito só aumentar a criminalidade, desequilibrando ainda mais a balança de débitos (valores desviados) e créditos (valores arrecadados).

Em conclusão, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo não é um critério de discriminação válido em si, não se justifica em relação aos beneficiados pela desigualdade operada e está longe de ter amparo constitucional. Assim como é inconcebível o ladrão devolver a res furtiva para livra-se da pena, o sonegador não pode, pagando o tributo, elidir a repressão penal. Não há senso de justiça que sobreviva em um ordenamento jurídico que livra da punição o indivíduo que apenas repara os efeitos materiais de sua conduta ilícita, fazendo ouvidos moucos à causa, isso é, à própria violação que, não sendo punida, esvazia a autoridade da lei, haja vista a certeza, para o infrator, que a única repercussão de seu ato ilegal, acaso descoberto, será o malogro de sua espúria tentativa de enriquecer ilicitamente, e nada mais.

Outra questão muito relevante e que bem demonstra o benefício de se declarar a inconstitucionalidade da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo encontra-se no âmago das discussões sobre a relação entre o Fisco e o Poder Judiciário. Com a retirada da regra da extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo, demonstrar-se-ia em grande parte o equívoco de se atrelar a esfera penal à esfera fiscal na apuração dos delitos econômicos, como hoje se faz, haja vista que cairia por terra o argumento do ex. Min. do STF Nelson Jobim, exposto durante o julgamento do HC n.º 81.611-DF (DJ 13-05-2005), de que, caso não se espere o fim do Procedimento Administrativo-Fiscal sobre a existência ou não de tributo, o acusado não terá como lançar mão do direito de pagar o montante de débito para livra-se do processo penal.

Extinguir-se-ia, também, pelo menos um dos argumentos que legitimam a conclusão muito difundida e, salvo melhor juízo, equivocada, de que o Poder Judiciário é um mero espectador no que tange à verificação da existência de um tributo, porquanto, concluindo o Conselho de Contribuintes pela existência de um tributo devido, a materialidade do crime não poderia mais ser discutida pelo Judiciário; e, ao inverso, sendo sua palavra final pela inexistência de tributo devido, não poderia haver persecução criminal, agora devido à atipicidade.

Enfim, a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo é um grande e equivocado passo na direção da despenalização, ou quem sabe descriminalização, dos delitos econômicos, haja vista operar a monetarização da lesão a um bem jurídico penalmente relevante. Como ensina Luigi Ferrajoli: “Pode-se dizer, em outras palavras, que nenhum bem considerado fundamental a ponto de justificar a tutela penal pode ser monetarizado, de forma que a mesma previsão de delitos sancionados com penas pecuniárias evidencia ou um defeito de punição (se o bem protegido é considerado fundamental) ou, mais frequentemente, um excesso de proibição (se tal bem não é fundamental)” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 438).


Essas leis extintivas da punibilidade, direcionadas tão-só à “nova criminalidade”, que em nada difere da “criminalidade tradicional”, ao menos do ponto de vista da ruptura com o direito posto, são um reflexo distorcido, para dizer o mínimo, da crise de legitimação que se tem abatido sobre o Direito Penal. Do impulso apenante desenfreado, o legislador parte para o oblívio do bem jurídico tutelado, protegendo-o deficientemente por meio de uma norma flagrantemente desproporcional, e, portanto, inconstitucional.

O Projeto de Lei n.º 5.228, de 2005 e a Ilegalidade da Justificativa do Incremento da Arrecadação por meio da Extinção da Punibilidade pelo Pagamento do Tributo

O professor Konrad Hesse ensinou que a Constituição perde a sua força normativa quando não consegue ter eficácia, fato devido à ausência de “vontade de Constituição” (Wille zur Verfassung), situação que surge quando ela é incapaz de descrever tarefas que sejam acatadas pela sociedade (HESSE, Konrad. A força normativa da constituição [Die normative Kraft der Verfassung]. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991. p. 16 e 21). Baixando ao nível infraconstitucional, verifica-se esse mesmo quadro caótico quando se criam leis que não atendem aos anseios da realidade, destituídas, dessarte, de legitimidade, caso das leis que determinam a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo.

O Projeto de Lei (PL) n.º 5.228, de 2005, de autoria do Deputado Federal José Mentor, é mais um exemplo da crise de legitimidade acima descrita. Esse PL visa: (1) a instituição de anistia fiscal sobre a legalização ou o repatriamento de recursos mantidos no exterior não declarados e (2) a extinção da punibilidade dos delitos a eles relativos. Atualmente encontra-se apensado, desde 28-05-2007, por requisição do Deputado Federal Virgílio Guimarães de Paulo, ao PL n.º 113, de 2003, de autoria do Deputado Federal Luciano de Souza Castro, que “Dispõe sobre o repatriamento de recursos depositados no exterior.”.

Inicialmente é preciso saber se o projeto de lei se amolda ao subprincípio da adequação: o meio escolhido (anistia fiscal e penal) é idôneo para a consecução da finalidade de aumento da arrecadação? Numa análise puramente atuarial é induvidoso que essa medida, num primeiro momento, trará benefício ao Erário: qualquer valor é melhor que nada, haja vista que, face à carga tributária e aos efeitos penais do reingresso dos recursos ilícitos, certamente nenhum centavo retornaria.

Agora, sob o crivo do subprincípio da necessidade, o projeto não se sustenta. Será que não existe outro meio igualmente capaz de incrementar o recolhimento de tributos e menos gravoso à moralidade e à ética públicas? Certamente que o desvirtuamento do sistema, pela concessão de anistias fiscais e penais ao talante das necessidades pecuniárias do Estado, não se mostra o menos gravoso aos interesses nacionais de combate à delinquência econômica.

Em relação à proporcionalidade stricto sensu, deve-se inquirir: o aumento da arrecadação vale a complacência do Estado a condutas criminosas, fato que, de certa forma, acabará por deslegitimar os discursos de criminalização dos delitos econômicos face à demonstração de que mais vale o dinheiro nos Cofres Públicos do que a aplicação da lei penal? Como se vê, a resposta negativa é forçosa: o PL n.º 5.228, de 2005 prega nada mais nada menos do que a chancela estatal à lavagem de dinheiro, dentre outras coisas. O princípio de igualdade também restará ferido caso esse projeto se transforme em lei, haja vista que tanto aquele que paga os tributos em dia quanto aquele só o faz depois do descobrimento de sua fraude acabará por receber a mesma resposta penal do Estado, ou seja, nenhuma!

Os interesses que levaram à criação desse instituto jurídico-penal devem ser combatidos diuturnamente, pois, decerto, apelar à consciência social de seus beneficiários ou dos legisladores será anódina tentativa. Nesse momento se faz oportuna a asserção de Gilberto Thums, constante nas considerações preliminares de uma de suas obras: “O que se pretende é chamar atenção do intérprete da lei para que tenha ciência de que os textos legais são resultantes da manifestação de uma classe política que sequer ouviu falar de sistema.” (THUMS, Gilberto. Sistemas processuais penais: tempo, tecnologia, dromologia, garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. p. xxvi). O “sistema” dos políticos infelizmente revela-se, via de regra, nos interesses momentâneos e circunscritos, quando deveria pautar-se pela abrangência social e racionalidade estrutural.

Na realidade, todo o dispositivo legal de extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo termina por constituir um elemento altamente estimulador da prática de delitos econômicos. Tentou-se contemporizar esses dispositivos, contudo o tempo vem demonstrando o reverso: ao invés de aumentar, a arrecadação está diminuindo. A impunidade causa um mal tremendo à sociedade. Falta responsabilidade, alteridade e consciência de grupo, enfim vive-se uma crise de valores que repercutem no mundo jurídico, e todo dispositivo legal sobre a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo é um belo exemplo disso.

Por fim, como ensina Peter Häberle, o viés pluralista das sociedades modernas é terreno fértil ao alastramento da hermenêutica constitucional, democratizando a interpretação da Constituição pelo reconhecimento de que todos, sem exceção, são intérpretes constitucionais latu sensu: ainda que os cidadãos comuns não tenham competência para revogar uma lei, eles são elemento crucial de legitimação do processo constitucional, e, dessa forma, podem influenciar decisivamente a conclusão pela inconstitucionalidade de um texto normativo (HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. p. 15).

Dessarte, não devemos respeitar e executar cegamente as ordens manifestamente injustas, concretizadas em leis editadas por interesses no mínimo duvidosos, como se ainda vivêssemos antolhados pela doutrina positivista da lei como algo posto e incontestável.

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