Justificativa da suspeição

Foro íntimo de juiz não está submetido ao CNJ

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23 de junho de 2009, 6h32

O Conselho Nacional de Justiça acaba de editar a Resolução 82 sobre o recém-arbitrado dever de os juízes encaminharem às respectivas Corregedorias, em reservado, expediente em que expliquem os motivos pelos quais invocaram, nos autos, foro íntimo como móvel a se declararem subjetivamente incapacitados para presidirem ações que lhes foram distribuídas regularmente.[1]

Sobre isso, se o foro for fundamentado, ainda que a latere, certamente deixa de ser íntimo, no dizer da legislação processual, haja vista ontologias conceituais distintas entre o que é próprio da intimidade e o que já não é.

A intimidade, porém, atrai por si mesma a fundamentação suficiente, de lege lata (Parágrafo Único, art. 135, do CPC), e não cabe ao intérprete instituir norma em que a lei não a previu por caracterizar, essa prática, o excesso de regulamentação. Por excesso de regulamentação entende-se a ação de Estado que extrapola os limites de sua atuação funcional legítima, posto que seus atos, motivados por excesso regulatório, são considerados atípicos, ilegais ou abusivos do exercício do poder público.

Realmente, não se pode imaginar aonde vamos parar com tanta falta de consciência de limites.

O que se pretende, claramente, com a Resolução 82 do CNJ é que o magistrado que se declara suspeito por alguma razão subjetiva inteira e indisfarçavelmente contemplada na lei — a subjetividade é, em si, o fundamento jurídico do ato, conforme os termos do art. 5º, inc. LX, da Constituição Federal e a proteção substantiva preconizada no respectivo inc. X — faça prova contra si mesmo, se o caso.

Ora, sem muito esforço é possível enxergar nessa atitude uma inusitada conspiração contra a própria magistratura, como se todos os juízes que, por força de lei, se declaram potencialmente suspeitos por alguma razão intimista que só ao próprio coração comporta cogitar, dada à subjetividade arrostada, ela mesma, ao cerne da legislação processual com supedâneo constitucional específico, fossem todos eles e ao mesmo tempo generalizadamente irresponsáveis.

Por outro lado, se houver prova de eventual malícia quanto a rejeitar a presidência de determinada causa por incúria ou indolência — jamais produzida pelo próprio imputado, que tem direito constitucional ao silêncio (art. 5º, inc. LXII, da Carta) —, então, cabe aos órgãos competentes simplesmente proceder contra quem tiver sido encontrado em culpa e não agir como se estivessem admitindo a própria inapetência funcional e ao serviço de alguma ideologia de ocasião que, na hipótese, aponta firmemente para o desprestígio da magistratura nacional.

Espera-se que as associações de classe, de modo coeso e decidido, adotem providências no sentido da recuperação desse quadro intrigante do cenário judicial brasileiro, e não fiquem em silêncio nessa pauta.

Além do mais, a mencionada Resolução determina que o juiz, ao declarar-se suspeito por foro íntimo, expeça ofício confidencial ou reservado à Corregedoria sob cuja autoridade censória se encontra atuando. Ora, se é para mandar ofício desconfidencializando a confidência protegida por lei e pela própria Constituição Federal à razão de alguma insinuação desairosa contida no espírito da norma regulamentar, fazendo de contas que há motivação íntima, própria e pessoal, que a lei e a Constituição preconizam, como dito, então é melhor expor universalmente esses motivos que já deixaram de ser íntimos, ou seja, expô-los diretamente nos autos. Porque o povo e as partes, em especial, consubstanciam, nas circunstâncias, melhor endereço que aquel’outro.

Aí, sim, estaríamos conferindo, sem subterfúgios, aquele sentido de transparência e fundamentação pretendido pela Resolução 82 do CNJ, de lastimável evocação, que é mesmo a pièce de résistance da idiossincrasia institucional prevalecente nos dias que correm.


E mais: intimidade não é vida privada e tanto menos pública, sujeitas, uma e outra, a controle funcional. O coração humano só pertence ao seu dono e a mais ninguém, seja ele juiz, varredor de rua ou o próprio papa. Prestar contas de coisas que só interessam ao homem em sua relação com Deus não é a mesma coisa que prestá-las em face de sua conduta pública e privada.

Se a moda pega, logo o CNJ vai acabar se transformando num imenso confessionário judicial, numa instituição de índole eclesiástica que já não esconde sua raiz autoritária.

Sobre isto, vamos considerar a hipótese de uma paixão avassaladora, dessas que mexem com a alma e perturbam o tirocínio, além de violar alguns dos mandamentos da Lei de Deus, inscritos que foram, desde sempre, no coração humano — 6º: não pecar contra a castidade, 9º: não desejar a mulher (ou o marido) do próximo. Aprofundando a ilustração, digamos que uma tal paixão tenha sido despertada em face de uma das partes. Consideremos, então, que essa parte e esse imprudente juiz tivessem tido realmente uma relação pessoal ou pretendessem tê-la no passado e quiçá também no presente. O que imaginar diante disso? Dependendo da decisão oferecida, certamente uma cantilena folhetinesca, no mínimo, logo tomaria de assalto os bastidores da organização judiciária — cujas paredes ouvem de fato e por entre as quais transitam as mais obtusas vaidades humanas — em que eventualmente atue o infelicitado magistrado.

Realmente, é um tabuleiro que não aproveita a ninguém e muito menos à correção ética da magistratura. Mas o juiz, em tal condição, não pode mesmo presidir o feito e deve demitir-se do caso de consciência própria. Se o fizer, todavia, ao tempo em que a tanto se demonstre, todo o seu trabalho será invalidado e a sua ação, reprimida formalmente. Afinal, não seria direito dos juízes que se declaram suspeitos por foro íntimo, consoante qualquer matiz ou grandeza, se preservarem em seus próprios recessos e jamais revelarem, se o queiram, seus sentimentos pessoais, suas preferências, seus pendores?

Antes de tudo, não seria essa prerrogativa uma garantia mesma da própria Jurisdição?

Declarar-se suspeito antes de enfrentar, sem condições subjetivas, uma causa é que se nos parece uma conduta temerária a que o CNJ vai acabar precipitando os magistrados brasileiros, de acordo com a normatização regulamentar estabelecida pela Resolução 82.

Pois não é minimamente razoável que a Corregedoria de Justiça vá exigir dos juízes submetidos à sua atividade censória e disciplinar o conhecimento acerca do que se passa no seu íntimo. Seria esse um território psicanalítico e não funcional propriamente dito.

É exatamente esse tipo de limiar que pode acontecer no caso concreto.

O que conta, na verdade, é que cada cabeça é uma sentença. E isto não pode ser simplesmente objeto de regulação geral, sobretudo no porvir da magistratura.

Se houver estranheza no argumento, esta não pode ser maior do que a conduta inteiramente exótica de se pretender imiscuir-se no coração alheio, conforme participa do significado da equivocada Resolução 82 do CNJ.

Pensando nisso foi que o constituinte protegeu firmemente a intimidade, a imagem e a reputação dos cidadãos, juízes ou não.

E, ademais, se o juiz tivesse um caso fora do casamento com a testemunha? E se ele reunisse em seu recesso mais interior pendores prosaicos de tipo racista, plutocrático, homofóbico, de gênero, de crença religiosa e colorido partidário, de paixão desportiva ou uma simples indisposição idiopática contra algum operador processual, dentre outros episódios do inconsciente? Também era para dizer ao Corregedor?

Por muitos flancos, o comando é de uma estranheza formidável e não pode resistir à crítica mais elementar e ao mesmo tempo construtiva.

Nesses casos todos, continuando a operar no processo ou mesmo declarando formalmente que o não faria ante motivação já não mais intimista, o juiz simplesmente estaria se invalidando a si mesmo enquanto magistrado.


Daí a lei se satisfazer com que o magistrado não se anime a uma intimorata conduta de moralidade duvidosa, pelo que deverá limitar-se a declarar a própria incapacidade subjetiva para presidir algum processo no qual se sinta minimamente desconfortável para decidir com perfeita isenção de propósitos. Este é um juízo que lhe cabe, exclusivamente, e a mais ninguém.

É preciso advertir, no entanto, que a isenção de propósitos perseguida pelo Estado em relação aos seus agentes judiciários não é aquela absoluta. Nem isso seria logicamente possível. O juiz absolutamente neutro é um mito. A racionalidade reclama, constitucionalmente, um elemento de relatividade das condutas decisórias, não vinculadas aos aspectos objetivos da causa, mas aos elementos formativos do próprio julgador em sua condição individual e também cultural com que atua.

Para o aperfeiçoamento lógico da decisão digna de crédito social e, pois, de juridicidade, mas não de engenhos de ocasião, basta que o magistrado se sinta apto a exercitar, contra si mesmo, o máximo de esforço possível no sentido da autonegação para considerar o plano da causa segundo as suas circunstâncias e não segundo o que seus próprios valores pessoais o informam, expressos psicologicamente em ideias, sentimentos e vontades. Essa expressividade, se indene da pureza conceitual conforme preconizado pela Teoria Geral do Processo e pelas leis que a regem, podem destruir a obra de Justiça no âmbito do Estado de Direito.

Paradoxalmente, é o risco que se corre pela razão de uma manifestação que deveria primar pela exemplaridade — não midiática e jamais performática — de um papel sobre-excedente do que se afirma como legítimo na atividade regulatória do próprio Estado.

Todavia, a Resolução 82 do CNJ parece traduzir uma manifestação oficial que denota o jeito e a forma de como vamos levando as coisas nesta pátria, sobretudo em momentos de crise e de acomodações institucionais que estamos vivenciando hodiernamente.

Mais do que nunca e não apenas em função do episódio de que aqui se comenta, a cidadania brasileira está posta à prova. Entretanto, no particular, a atual gestão do CNJ tem feito o proverbial favor de oferecer carradas de razão aos eternos opositores do controle externo e democrático da magistratura e do Poder Judiciário no Brasil.

Até quando?


[1] http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&task=view&id=7703&Itemid=512

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