Toda forma de expressão

Vontade da criança deve ser considerada nas ações

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8 de junho de 2009, 7h29

O Brasil é um dos 192 países que ratificaram a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, tendo o legislador pátrio incorporado tal convenção em seu texto constitucional. Neste momento, ocorre pela primeira vez um unprecedented case ser levado à apreciação do Supremo Tribunal Federal. A matéria a ser apreciada diz respeito à condição do direito fundamental, que deve ser preservado e garantido a uma criança brasileira nata – filha de mãe brasileira, nascida no exterior e registrada em consulado brasileiro (Constituição Federal, artigo 12, inciso I, alínea a).

O artigo 12 da referida Convenção prescreve que os Estados Partes devem assegurar às crianças o direito de expressarem suas opiniões, e, portanto, terem a oportunidade de serem ouvidas no processo judicial. Estabelece também que a autoridade pertinente deve levar em consideração, em sua decisão, as opiniões da criança. Esse é um dos princípios fundamentais da Convenção das Nações Unidas, juntamente com o princípio do interesse superior e o princípio da não discriminação, que devem ser observados. Caso não sejam, haverá desrespeito às normas de Direito Internacional assumidas pelo Brasil perante a comunidade dos países signatários.

Esse princípio foi incorporado no ordenamento jurídico pátrio de forma clara e explícita no artigo 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que determina nos casos relacionados à guarda que a criança deverá ser previamente ouvida, e a sua opinião devidamente considerada, independentemente de sua situação jurídica. No mesmo artigo, a lei determina ao julgador que leve em conta também o grau de parentesco, e a relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as eventuais consequências negativas decorrentes da medida.

Em diversos outros ordenamentos da legislação pátria está configurada a prevalência do direito ao afeto, como quando assegura a prevalência da adoção nacional sobre a internacional para fazer prevalecer os laços culturais e afetivos com o torrão natal. Da mesma forma, quando permite a união homo afetiva. O fato é quem nenhuma outra norma traz obrigação tão veemente ao aplicador da lei, como o artigo 28 da Lei 8.069/90, que expressamente impõe o respeito aos laços afetivos criados com a criança, de forma a evitar maiores danos. A própria adoção, por sinal, é um instituto que, ao ser proclamado irrevogável, serve de exemplo da prevalência do direito ao afeto em relação aos laços consanguíneos.

A discussão que leva a algumas divergências reside no campo da maturidade da criança para se expressar. Em meu entendimento, toda forma de comunicação da criança deve ser aceita como possibilidade de manifestação de sua vontade. Crianças são sujeitos de direitos, e como tal gozam do exercício de tais direitos desde sua concepção, daí a obrigação de preservar a vida dos fetos em desenvolvimento. Com o nascimento e consequentes possibilidades de manifestação, pois chora quando sente fome ou algum desconforto, sorri quando está feliz e se sente bem naquele ambiente ou naquela companhia. Por certo, essas manifestações de alegria ou de sofrimento já são formas de expressão de sentimentos logo reconhecidas pelos pais e consideradas em suas múltiplas relações. Portanto, se assim é, é inquestionável que, especialmente nos dias de hoje, uma criança de nove anos, e com o amadurecimento que o sofrimento das sucessivas perdas afetivas lhe causou, está plenamente apta para manifestar sua vontade, e tê-la considerada pela autoridade julgadora.

Outro aspecto interessante do julgamento da matéria no STF se refere à prevalência da doutrina da situação irregular, que foi sepultada em nosso país, com a entrada em vigor do ECA. Aquela prevalência, no entanto, ainda encontra vários adeptos no cenário jurídico, sobretudo dentre aqueles mais conservadores. Mas, a doutrina consagrada no texto constitucional erigiu crianças e adolescentes à condição de sujeitos de direitos, e consequentemente determinou sua proteção integral.

Assim, aqueles mais conservadores acreditam que a criança referida no julgamento do STF estaria em situação irregular no país por haver sido supostamente sequestrada por sua mãe, mas esta matéria já foi enfrentada e espancada por acórdão da ministra Nanci Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça. Aqueles que defendem o respeito à doutrina vigente no tocante à proteção integral colocam a criança na condição de protagonista de sua cidadania e lhe outorgam o direito de ser ouvida e de manifestar seu desejo, de forma que prevaleçam suas relações afetivas e culturais, e que seja respeitada sua manifestação de vontade.

O fato de um partido político ser o autor do procedimento perante o STF coloca em pauta outra questão interessante, uma vez que as partes que disputam a guarda da criança são de nacionalidades diferentes. O pai biológico é de nacionalidade norte- americana, mas os Estados Unidos não são signatários da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. No entanto, tanto o pai afetivo quanto a criança são brasileiros natos, e o Brasil, que diferentemente dos EUA, é signatário da referida Convenção.

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança é o tratado de direito internacional mais aceito do planeta, e apenas dois países não são signatários da mesma: EUA e Somália. Frise-se que a referida Convenção recebeu muito mais adesões do que a Convenção de Haia. Os EUA, da mesma forma como não assinaram a Convenção das Nações Unidas, não assinaram a Convenção de Kyoto, o que torna o comportamento dos EUA muito peculiar.

O caso ora sob apreciação do STF decorre da aplicação de dispositivos da Convenção de Haia. Era de competência de uma vara especializada de Família e passou para a competência de uma vara federal, face ao interesse da União em postular a prevalência de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, em detrimento de nossa própria soberania. Justifica-se, pois, o interesse de um partido político brasileiro na busca de um julgamento isento e sem quaisquer interferências externas sobre o julgador, como consequência do mandamento constitucional que lhe dá tal responsabilidade.

Finalmente, temos que registrar que o sofrimento dessa criança provocou, ainda que involuntariamente, que a matéria fosse levada à Corte Suprema do Brasil, que com sua decisão estará estabelecendo um leading case mundial, e que fará história no tocante ao direito da criança e do adolescente, independentemente de quais sejam os países envolvidos na disputa.

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