Direito desportivo

Não há padrão de cálculo por ruptura de contrato

Autor

  • Eduardo Carlezzo

    é advogado e diretor do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. É também membro da International Association of Sports Law Instituto Ibero-americano de Direito Desportivo e da Comissão de Direito Desportivo da OAB-SP.

3 de junho de 2009, 8h19

No dia 19 de maio deste ano a Court of Arbitration for Sport (CAS), com sede em Lausanne, na Suíça, comunicou oficialmente as partes e ao público em geral uma das decisões mais esperadas no cenário desportivo internacional envolvendo, de um lado, o Shakhtar Donetsk, clube de futebol da Ucrânia, e de outro, o atleta de futebol brasileiro Matuzalem e o clube de futebol espanhol Real Zaragoza.

A questão envolvia basicamente a análise e definição das conseqüências financeiras que teria o atleta ao rescindir, sem justa causa, o contrato de trabalho que o ligava ao clube ucraniano. Isto porque, no dia 2 de julho de 2007, o atleta, que tinha um contrato de 5 anos com Shakthar Donetsk, já tendo cumprido três anos de contrato informou ao clube que não desejava mais continuar a prestar seus serviços e que, portanto, considerava seu contrato como terminado.

Posteriormente o atleta assinou um contrato de trabalho com o Real Zaragoza. Imediatamente o clube ucraniano, representado pelo advogado espanhol Juan de Dios Crespo Perez, apresentou uma reclamação formal junto a Câmara de Resolução de Disputas da Fifa solicitando a fixação de uma compensação financeira em função da ruptura contratual sem justa causa, com base no artigo 17 do Regulamento sobre o Estatuto e Transferência de Jogadores da Fifa.

Havia uma grande expectativa na comunidade futebolística internacional quanto a interpretação a ser feita pelo CAS com relação à abrangência e critérios de fixação da compensação financeira por término injustificado de contrato, baseada no artigo 17 do Regulamento sobre o Estatuto e Transferência de Jogadores da Fifa.

Tal expectativa deu-se muito em função de que hoje este é um dos temais mais controvertidos junto às instâncias da Fifa e CAS, bastando citar duas importantes decisões quanto a interpretação deste tema, nos casos Mexès (CAS 2005/A/902 & 903, Mexes & Roma v/ AJ Auxerre) e Webster (CAS/A/1299, Heart of Midlothian v/ Webster & Wigan Athletic FC), que tiveram a aplicação de fundamentos diferenciados.

Basicamente, o referido artigo 17 diz que a parte que rescindir um contrato sem justa causa deverá indenizar a outra. Na hipótese de que não haja uma prefixação contratual deste montante (como seria o caso da cláusula penal no Brasil), o cálculo da indenização deve considerar os seguintes elementos: a lei do país onde o contrato está sendo executado, a especificidade do esporte e outros critérios objetivos que incluem a remuneração e outros benefícios devidos ao atleta durante o contrato existente ou durante o novo contrato; o tempo restante do contrato, sujeito a limitação de cinco anos; os gastos que o clube teve na contratação do atleta (amortizados pela execução do contrato) e se a quebra está inserida dentro do “período protegido” estabelecido pela Fifa.

No dia 29 de fevereiro de 2008 a Fifa pronunciou sua decisão, condenando o atleta e o clube espanhol a, solidariamente, indenizarem o Shakhtar Donetsk em € 6.8 milhões. Os critérios utilizados para chegar-se a este valor foram: € 2.4 milhões como média de salários entre o velho e o novo contrato, € 3.2 milhões como valor de transferência não amortizado e € 1.2 milhão a título de especificidade do esporte. Todas as partes apelaram ao CAS.

Se houvesse no contrato entre Shakhtar e atleta uma cláusula específica referindo expressamente que a parte que desejasse rompê-lo sem justa causa devesse indenizar a outra em determinada quantia, toda esta discussão seria desnecessária. Todavia, tal cláusula não existia, mas sim havia algo muito próximo a isto, que era uma cláusula que previa que caso o Shakhtar recebesse uma proposta de aquisição do vínculo desportivo do atleta por U$ 25 milhões, deveria liberá-lo. Evidentemente, um dos pedidos do clube ucraniano teve por base a fixação da compensação financeira com base nesta cláusula. Contudo, o CAS entendeu que o conteúdo desta cláusula não era o de uma “cláusula de rescisão” e então buscou outros critérios para o cálculo da indenização.

Uma das expectativas que havia com relação a esta decisão do CAS seria por uma certa uniformização da jurisprudência, especialmente no sentido da dar-se balizamento quanto a aplicação e mensuração dos critérios do citado artigo 17 para fins de cálculo da indenização pela ruptura contratual. Tal anseio ficou mais forte especialmente após a decisão do caso Webster, na qual o jogador inglês, após completar cinco anos de contrato, rescindiu-o sem justa causa com o Heart of Midlothian. Não havia cláusula penal estipulada. Neste caso o painel do CAS entendeu que pelo fato de que o atleta já estava a alguns anos no clube, tendo inclusive feito uma renovação contratual, a única indenização que deveria pagar seria o montante de salários que receberia até o fim do contrato. Indubitavelmente esta decisão causou um grande impacto no cenário internacional, pois muitos acreditaram que bastava ao atleta, ao romper seu contrato, pagar como indenização apenas o valor relativo aos salários que receberia até o fim do contrato (valor residual). Imagine-se, apenas por hipótese, uma situação em que o atleta Kaká tivesse apenas mais dois anos de contrato com o Milan, sem multa rescisória, e recebendo 10 milhões de euros por ano. Bastaria a ele pagar 20 milhões para rescindir o contrato e ficar livre?

No caso Matuzalem, o painel do CAS formado por três árbitros, ao apreciar todos os fatos e circunstâncias envolvidos e dando especial ênfase a um fato novo surgido durante a apelação, que fora o empréstimo do atleta à Lazio, majorou significativamente a indenização a ser paga, a qual foi fixada em € 11.858.934,00, mais juros de 5% ao ano calculados desde 5 de julho de 2007. Foi a maior indenização já fixada pela corte neste tipo de disputa. Os critérios utilizados para chegar-se a tal valor tiveram por base a análise dos valores envolvidos no empréstimo (salários e multas) do jogador pelo Zaragoza a Lazio.

Neste acordo fora estipulado, por exemplo, que se a Lazio quisesse contratar em definitivo os serviços do atleta deveria pagar ao Zaragoza algo entre € 13 e 15 milhões, dependendo de algumas circunstâncias. Além do mais, a média salarial do atleta era bastante alta, já que chegaria a receber da Lazio em sua segunda temporada a quantia de € 3.220.900,00. A partir daí fez-se uma média ponderada entre os salários do atleta durante dois anos de contrato (que eram os anos que deixaram de ser cumpridos com o Shakhtar) e valores pré-fixados para a aquisição de seus serviços, deduzindo-se os salários que o Shakhtar deixaria de pagar ao atleta por estes dois anos. Tal mensuração redundou em € 11.258.934,00, mais uma compensação adicional de € 600.000,00 (igual a 6 salários mensais pagos pelo Shakhtar).

Uma das lições que emanam desta decisão no caso Matuzalem é que não há um padrão de cálculo da indenização pela ruptura unilateral de contrato aplicável a qualquer situação. Muito pelo contrário. As indenizações serão fixadas caso a caso, dependendo das circunstâncias específicas, como foi no caso Matuzalem, onde o empréstimo feito pelo Real Zaragoza a Lazio mudou significativamente a interpretação do caso e o cálculo da compensação. Cabe dizer que a época da decisão pela Câmara de Resolução de Disputas da Fifa tal empréstimo não havia ocorrido, motivo pelo qual não foi considerado.

Qual é o reflexo desta decisão no futebol brasileiro, mas especificamente nos contratos firmados entre clubes e jogadores? Por ser uma decisão de uma corte de Arbitragem Internacional, em um primeiro momento não teria qualquer relevância sobre os contratos firmados entre um clube brasileiro e um jogador brasileiro, já que os mesmos estão sujeitos as disposições da Lei 9.615/98 (Lei Pelé) e, em caso de litígio, ao Poder Judiciário local. Porém, a situação muda enormemente de figura quando entra em cena o elemento internacional nesta estória, ou seja, o interesse de um clube estrangeiro nos serviços deste atleta. Na hipótese de que atleta brasileiro rescinda sem justa causa seu contrato com o clube brasileiro com a finalidade de transferir-se a um clube estrangeiro, a Fifa passa a ser competente para o julgamento de uma eventual disputa e o CAS passa a ser uma instância de apelação para as decisões da Fifa, sendo aplicáveis, por conseqüência, os ditames do artigo 17.

Nossa legislação nacional assegura meios adequados de proteção as partes? No Brasil, assim como na Espanha, por exemplo, a fixação da cláusula penal ou cláusula de rescisão é obrigatória nos contratos de trabalho. Isto terá uma grande relevância em uma disputa contratual perante as instâncias internacionais, eis que afastará a interpretação, aplicação e mensuração dos critérios descritos no artigo 17, já que o montante da indenização a ser paga pela quebra já está pré-fixado. Releva dizer que grande parte dos países de primeira linha do futebol europeu não possui dispositivos em sua legislação nacional prevendo a obrigatoriedade das cláusulas de rescisão. O que ocorrerá, e já vem ocorrendo desde a decisão do caso Webster, é que as partes (clube e atleta) têm disciplinado objetivamente em contrato os critérios e conseqüências financeiras para o caso de rescisão unilateral.

Por fim, diga-se que todas as decisões aqui citadas, tanto na FIFA como no CAS, são imperativas no sentido de desestimular as rescisões unilaterais de contrato. O objetivo das normas da FIFA, e há inclusive um capítulo específico sobre isto, é pela “manutenção da estabilidade contratual”, de forma que as rescisões devem ser as exceções no cenário futebolístico e, caso ocorram, a parte que não tenha justa causa deve ser punida por tal ato.

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    é advogado e diretor do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. É também membro da International Association of Sports Law, Instituto Ibero-americano de Direito Desportivo e da Comissão de Direito Desportivo da OAB-SP.

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