Lacunas da lei

Pessoas com deficiência e a segurança privada

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28 de julho de 2009, 16h30

O presente artigo reportar-se-á a fatores que conjugados restringem a lei instituidora da inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho.

A Constituição Federal de 1988 elencou a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho dentre os fundamentos de nosso Estado, com o objetivo de garantir à ordem econômica nacional a valorização do trabalho, com a finalidade de propiciar existência digna e distribuir justiça social, através da redução das desigualdades sociais.

O acesso ao trabalho é tema recorrente nas discussões entre grupos internacionais, empresas e governos, quando a discussão consubstancia-se nas oportunidades de trabalho aos indivíduos que possuem alguma espécie de deficiência, contudo analisaremos a questão no segmento transporte de valores e segurança patrimonial, além dos percentuais a utilizados para contratação.

Várias serão as oportunidades onde haverá confrontos entre os princípios da não-discriminação, igualdade, isonomia com a busca da segurança nacional e da coletividade.

Aspectos gerais sobre as pessoas com deficiência física e a inclusão no segmento de transporte de valores e segurança patrimonial
Diversas são as formas de classificação empregadas atualmente para delimitar o universo de deficiências que acometem o homem e que, de certa ou alguma forma, implicam direta ou indiretamente nas atividades laborativas disponíveis e os resultados sociais esperados.

No atual sistema constitucional brasileiro, a dignidade da pessoa humana é valor que transcende os interesses políticos e econômicos dominantes, então, outra não poderia ser a conduta imposta ao Estado e à comunidade no tocante a real inclusão dos trabalhadores especiais. Contudo, a nosso sentir a inclusão deve ser feita com ressalvas.

O princípio da não-discriminação do trabalhador decorre dos princípios da igualdade e da isonomia, não cabendo nesta oportunidade a conceituação de cada princípio, mas, somente, sua contextualização no objeto deste trabalho, onde tais princípios contribuem para o equilíbrio de forças entre os chamados direitos individuais e os direitos sociais.

A inclusão dos trabalhadores pautando-se nos princípios acima tem o intuito de compatibilizar liberdade ditada pela livre iniciativa e o necessário valor social do trabalho, considerando-se o indivíduo especial em todas as suas potencialidades, retirando-o do papel de coadjuvante de sua própria existência, construindo uma sociedade livre, justa e solidária preconizada pela Constituição da República.

Segundo Luiz Alberto David de Araújo, o que define a pessoa portadora de deficiência não é a falta de um membro nem a visão ou audição reduzida. O que caracteriza a pessoa portadora de deficiência é a dificuldade de se relacionar, de se integrar. O grau de dificuldade de ser relacionar, de se integrar na sociedade. O grau de dificuldade de integração social é que definirá quem é ou não portador de deficiência.[1] (grifo nosso)

É certo que a legislação infraconstitucional demorou a elaborar uma definição legal do que se entende por pessoa com deficiência. Somente com o advento do Decreto 914/1993, houve primeiramente um conceito. Todavia, atualmente a conceituação decorre do Decreto 3.298/1999, em que foi alterado em alguns aspectos pelo Decreto 5.296/2004.

Há leis que visaram constituir formas de inclusão das pessoas com deficiências. No campo público, temos uma reserva de vagas para pessoas com deficiência, conforme o artigo 37, inciso VIII, da CF. No setor privado, a lei que regulamentou o percentual foi a 8.213/91, onde as empresas com 100 ou mais empregadas estão obrigadas a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção, conforme o artigo 93 da Lei 8.213/91:
I — até 200 empregados, 2%;
II — de 201 a 500, 3%;
III — de 501 a 1.000, 4%;
IV — de 1.001 em diante, 5%.

Num primeiro momento, a lei se manteve inerte quanto à aplicação da cota por estabelecimento da empresa ou considerando a totalidade de empregados de todos os estabelecimentos. Tal omissão foi esclarecida com a Instrução Normativa 20/2001, que, em seu artigo 10, parágrafo 1º, estabelece que a aplicação da cota deva ser referente ao número de empregados da totalidade de estabelecimentos da empresa no Brasil. Deste mesmo entendimento coaduna a doutrinadora Maria Aparecida Gugel, com vistas à norma abranger o maior número possível de empregados protegidos. Veja-se: “Para correta aplicação da reserva de cargos para os trabalhadores com deficiência, prevista no artigo 93, da Lei 8.213/91, as empresas devem considerar o número total de empregados de todos os seus estabelecimentos. Sobre o resultado da soma dos empregados é que incidirá o percentual legalmente previsto para a contratação de pessoas com deficiência e beneficiários reabilitados da Previdência Social”.[2]

A lei que trata da inclusão das pessoas com deficiência tem um caráter social, visa garantir o acesso ao emprego (artigo 170, CF) e veda a discriminação, porém, nada mencionou acerca das particularidades de algumas profissões.

É claro que haverá um tratamento desigual entre os vários segmentos, contudo, esse tipo de separação é necessário não acarretando discriminações ou algo similar, conforme artigo 1º da Convenção 111 da OIT, ou seja, não acarreta a discriminação negativa e não possibilita uma discriminação positiva, tendo em vista os requisitos para ocupar um cargo no segmento segurança.

O fundamento da inclusão dos deficientes físicos está ligada com a política da discriminação positiva, sendo conhecida também como ação afirmativa, que é uma estratégia de política social ou institucional voltada a alcançar a igualdade de oportunidades entre as pessoas, distinguindo e beneficiando grupos afetados por mecanismos discriminatórios como ações empreendidas em um tempo determinado, com o objetivo de mudar positivamente a situação de desvantagem desses grupos, contudo, as ações afirmativas em matéria de inserção de mão-de-obra de pessoas com deficiência não traça qualquer limite ou restrição.

Segundo Amauri Mascaro do Nascimento, não há necessidade de lei que as fundamente. Podem ser previstas por um programa de governo ou, mesmo sem este, por uma ação social. Desse modo, muitas vezes, quando não previstas em sua norma legal cominatória, carecem de exigibilidade jurídica e, não obstante, podem ter a criação ou ampliação de uma cultura de solidariedade ou de responsabilidade social. O trabalho voluntário é uma das suas alavancas, porém, por outros meios, também, podem concretizar-se. Uma empresa pode desenvolver ações afirmativas internas por sua iniciativa para implementar uma cultura propícia de combate à discriminação em suas diversas formas[3].

Entretanto, essa política afirmativa de inclusão deve ser aplicada com ressalvas no segmento transporte de valores e segurança, visto que para o ingresso nesse tipo de atividade são exigidos alguns requisitos. A Lei 7.102/83, artigo 16, inciso IV e V menciona que o vigilante deverá ter sido aprovado, em curso de formação de vigilante, realizado em estabelecimento com funcionamento autorizado nos termos desta lei e ter sido aprovado em exame de saúde física, mental e psicotécnico.

O grifo acima tem o objetivo de reflexão, pois o artigo 4o, Decreto 3.298/1999 conceitua deficiência que em suma tem cunho físico, psíquico, auditivo, visual, dentre outros, porém, há de se indagar acerca da conclusão do curso de vigilante, onde as pessoas em condições de deficiência não teriam êxito no concurso exigido por lei e pela Polícia Federal.

Pelo fato mencionado acima, ou seja, não aprovação no concurso requisito este pré-existente (artigo 17 da Lei 7.102/83), há a própria proteção do empregado deficiente, colegas de trabalho e a coletividade, além do patrimônio particular e público das tomadoras de serviço, conforme artigo 10 da Lei 7.102/83.

O grande fundamento legal para a tese defendida é a qualificação especial desses empregados, onde expressamente há a autorização pelo órgão máximo do Direito do Trabalho acerca da não incidência de discriminação quando o serviço tenha requisitos de qualificações conforme artigo 1º, inciso I e II da Convenção 111 da OIT: “(…) 2. Qualquer distinção, exclusão ou preferência, com base em qualificações exigidas para um determinado emprego, não são consideradas como discriminação”. (grifo nosso)

Em decorrência dos vários tipos de deficiência, de acordo com o decreto acima mencionado, podemos elencar alguns problemas advindos das deficiências, pois resumidamente as atribuições dos vigilantes patrimoniais são: vigiar, proteger e guardar os bens móveis e imóveis dos clientes, evitando roubos, furtos e depredações, assim como prover segurança, dentro dos limites da instituição onde prestam serviço. Ou seja, são atribuições de alta complexidade que exige muito do físico e psíquico do empregado.

A função de vigilante patrimonial é uma atividade insalubre, perigosa, prova disso são os adicionais que os integrantes dessa categoria ganham, porém, infelizmente o estresse nas atividades e atenção redobrada é decorrente da fragilidade estatal em prover a segurança pública e o bem estar comum.

Desta forma, para proteção própria, bem com de seus colegas de trabalho e coletividade, bem como para a preservação do patrimônio dos clientes, deve o funcionário estar apto completamente ao labor, sendo audição, visão, mobilidades motoras e estabilidade mental mecanismos para garantir a excelência do serviço e preservar intacto o meio ambiente do trabalho.

O conceito de meio ambiente do trabalho apresentado por Rodolfo de Camargo Mancuso apresenta-se mais adequado, pois para o doutrinador, o meio ambiente do trabalho vem a ser o ‘habitat labora’, isto é, tudo que envolve e condiciona, direta ou indiretamente, o local onde o homem obtém os meios para prover o quanto necessário para sua sobrevivência e desenvolvimento, em equilíbrio com o ecossistema. A contrário sensu, portanto, quando aquele ‘habitat’ se revele inidôneo a assegurar as condições mínimas para uma razoável qualidade de vida do trabalhador, aí se terá uma lesão ao meio ambiente do trabalho[4].

Desta forma, admitir que as pessoas com deficiência integrem a atividade preponderante das empresas de segurança patrimonial e transporte de valores podem acarretar prejuízos ao próprio trabalhador e, não assegurar um meio ambiente laboral saudável.

Assim as pessoas com deficiência não têm como integrar o corpo trabalhista da atividade preponderante da empresa, qual seja transporte de valores e segurança, até porque fica inviável respeitar o determinado no artigo o artigo 35 do Decreto 3.298/99, o qual estabelece três formas de trabalho para a pessoa com deficiência, trabalho com colocação competitiva, colocação seletiva e promoção do trabalho por conta própria.

Acerca da questão da atividade preponderante da empresa chegamos à segunda problemática da lei de inserção das pessoas com deficiência, pois a mesma relata que os percentuais para verificação de quantas pessoas serão contratadas nessas condições deve se pautar no total de empregados de toda a empresa situada no Brasil, ou seja, pelo número total de funcionários, o que desequilibra a balança e o princípio da contrapartida.

Pensemos na seguinte hipótese: uma empresa de transporte de valores e segurança patrimonial tem cerca de 50 mil funcionários, sendo que dessa quantidade 47 mil estão ligadas a atividade preponderante da empresa, ou seja, a principal atividade empresarial e, três mil estão ligadas as atividades secundárias ou administrativas. Se contratássemos os deficientes sobre o número total de empregados da empresa não haveria uma sobrecarga num setor da empresa?

A resposta a pergunta acima é positiva, pois já que a empresa não pode empregar os deficientes na atividade preponderante, caberá a esta recolocá-los num outro setor, sendo este o administrativo, o que geraria uma “punição” a pessoas sem deficiências, pelo preenchimento das vagas por deficientes conforme exigência legal.

É nítida a problemática da lei, já que a mesma não pensou nas particularidades advindas de alguns segmentos profissionais, o que no exemplo em questão não deixou de discriminar, aliás, neste caso, a ação afirmativa gerou discriminações maiores, pois se voltou contra a maioria populacional, para não receber sanções pecuniárias.

Entretanto, se houvesse a mudança nos parâmetros legais de aplicação do percentual, pautando-se no princípio da razoabilidade e proporcionalidade, não haveria qualquer ofensa ao artigo 2º da Recomendação 168 da OIT, pois há necessidade dessa atitude segregacionista como forma de assegurar a segurança dos trabalhadores e demais integrantes da coletividade.

Outrossim, com relação à contrapartida, nada mais do que justo que o percentual aplicado deve ser realizado acerca dos cargos onde poderá haver a prestação laboral pelas pessoas com deficiência e não pela atividade preponderante, onde não haverá qualquer possibilidade de colocação desses trabalhadores no setor de segurança e transporte de valores, devendo o percentual ser fixado nas funções que teriam condições de trabalhar.

Conclusão
Após a análise de todos os elementos do presente artigo, outra não é a conclusão, qual seja, a inserção de trabalhadores com deficiência no mercado de trabalho é necessário, porém, para que não ocorram discrepâncias há necessidade de limitar a lei de inclusão, pois a redação atual gera um grande ônus por parte do empregador e desigualdades em face de outras pessoas consideradas normais.

Isto porque, alguns segmentos não comportam a inclusão de pessoas com deficiência, onde necessariamente haveria a inclusão em setores administrativos e secundários da mesma. Contudo, a vinculação da porcentagem para contratação de número de empregados com deficiência sobre o total de empregados na empresa iria gerar um inchaço nas atividades secundárias da empresa cujo segmento não comporta o labor de pessoas com deficiência.

Referências Bibliográficas
Ação Civil Pública Trabalhista: analise de alguns pontos controvertidos. Revista de Processo, São Paulo: RT, vol. 93, ano 24, jan/mar. 1999.

FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. O trabalho da pessoa com deficiência – lapidação dos direitos humanos: o direito do trabalho como ação afirmativa. São Paulo: Ltr. 2006.

GUGEL, Maria Aparecida. Pessoa com deficiência e o Direito do Trabalho. Florianopólis: Obra Jurídica. 2007.

NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 21. ed. rev. e atual. São Paulo:

Saraiva, 2006.

SILVA, Cristiane Ribeiro da. O direito ao trabalho da pessoa portadora de deficiência e os efeitos da interdição. Revista Ltr. São Paulo. v. 71. Outubro. 2007.

SOARES, Evanna, Ação ambiental trabalhista. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2004


[1] SILVA, Cristiane Ribeiro da. O direito ao trabalho da pessoa portadora de deficiência e os efeitos da interdição. Revista Ltr. São Paulo. v. 71. p. 1228-1234. Outubro. 2007.

[2] GUGEL, Maria Aparecida. Pessoa com deficiência e o Direito do Trabalho. Florianopólis: Obra Jurídica. 2007. p. 94.

[3] NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 21. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

[4] Ação Civil Pública Trabalhista: analise de alguns pontos controvertidos. Revista de Processo, São Paulo: RT, vol. 93, ano 24, p. 161, jan/mar. 1999.

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