Chave da liberdade

Supremo recebe Habeas Corpus de número 100.000

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17 de julho de 2009, 18h21

Foram necessários mais de 138 anos para o Supremo Tribunal Federal chegar, nesta sexta-feira (17/7), à marca de 100 mil Habeas Corpus. Explicar a história de todos esses HCs seria uma maneira de contar, também, o papel do Supremo como instrumento do cidadão para conseguir a garantia dos direitos individuais. O HC 100.000, por exemplo, não durou nem uma hora como o mais atual do Supremo – tamanha a velocidade e quantidade de HCs impetrados todos os dias. O Habeas Corpus de número 100.000 foi impetrado pelo estudante de Direito e assistente jurídico Lucien Remy Zahr, a fim de conseguir a liberdade de Amarante Oliveira de Jesus, preso há 21 anos na penitenciária de Lucélia, em São Paulo.

No HC, o estudante de Direito pede que Amarante tenha direito ao indulto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2007. Para isso, pede ao STF medida cautelar para que o caso seja julgado no STJ, na primeira sessão do próximo semestre. A relatoria do HC no STF ainda não foi distribuída.

O Decreto 6.294, assinado por Lula e base do HC 100.000 do STF, prevê o indulto “ao condenado a pena privativa de liberdade que, até 25 de dezembro de 2007, tenha cumprido, em regime fechado ou semi-aberto, ininterruptamente, quinze anos da pena, se não reincidente, ou vinte anos, se reincidente”.

Com notoriedade adquirida graças ao número recebido, o HC número 100.000 é uma crítica velada à morosidade da Justiça. O estudante de Direito teve de recorrer ao Supremo porque o Superior Tribunal de Justiça, desde outubro de 2008, não aprecia o caso do presidiário. Além de pedir a urgência na análise do caso, a defesa se vale do parecer do Ministério Público Federal, favorável à liberdade de Amarante. O HC 113.180, no STJ, tem relatoria do ministro Og Fernandes.

Número 1
O Habeas Corpus mais antigo nos arquivos do Supremo Tribunal Federal é de 1870 e não consta no site de consulta processual do tribunal. Trata-se de um HC impetrado pelo advogado Joaquim Saldanha Marinho, no então Supremo Tribunal de Justiça. O documento digitalizado pode ser visto aqui.

O HC pretendia dar liberdade ao italiano Nicola Hamillo Mattocello, preso sob a acusação de ser depositária infiel. A defesa alegou que a prisão foi ilegal e causou constrangimento. No entanto, a decisão do tribunal indeferiu o HC e manteve a prisão do italiano. À época, o processo constava com o número 73 no Supremo Tribunal de Justiça. Não há mais detalhes sobre a história. Na atual numeração do STF, o HC mais antigo é o 52, de agosto de 1891. A primeira sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, em sua fase republicana e com a atual denominação, se deu em 28 de fevereiro de 1891.

O Supremo demorou quase 140 anos para garantir, finalmente, a liberdade para o depositário infiel. O entendimento contra a prisão do depositário foi consolidado no dia 3 de dezembro de 2008, quando o Plenário do STF, por maioria, restringiu a prisão civil por dívida ao inadimplente voluntário e inescusável de pensão alimentícia. Até a prisão civil de depositário judicial infiel, cuja manutenção havia sido proposta, foi rejeitada pela maioria. Para dar efetividade à decisão, o Plenário revogou a Súmula 619/STF, que a admitia. O entendimento foi fundamento no julgamento dos Recursos Extraordinários 349.703, 466.343 e do Habeas Corpus 87.585Estes notórios HCs, assim como muitos outros, são uma forma de contar a história do Supremo Tribunal Federal, o guardião da Constituição cidadã.

Olga Benário
 Dentre os casos mais famosos da história do STF , está o HC 26.155, de 1936, "impetrado em favor de Maria Prestes (Olga Benário) com a finalidade de impedir a expulsão da paciente, grávida, para a Alemanha Nazista", como relata o ministro Celso de Mello no opúsculo "Notas Sobre o Supremo Tribunal Federal". A alemã Olga Benário, que era mulher do lider comunista Luiz Carlos Prestes, fora presa para ser expulsa do país, como estrangeira perniciosa à ordem pública. O HC foi pedido para que ela fosse julgada por crimes cometidos no Brasil, alegando-se sua gravidez. Como informa Celso de Mello, "pedido lamentavelmente não conhecido", Olga Benário foi deportada, entregue aos nazistas e morreria em 1942, no campo de concentração de Bernburg.

André Koehne/Creative Commons
Rui Barbosa - Caricatura - André Koehne

Após a renúncia do presidente brasileiro Deodoro da Fonseca, em 1891, uma revolta militar começou a se movimentar pedindo que o presidente em exercício, Marechal Floriano Peixoto, determinasse a realização de novas eleições no país – como previa a Constituição da época. Para conter o movimento, Floriano Peixoto decretou, em abril de 1892, estado sítio, destituindo do cargo os generais que comandavam o movimento, mandando ainda prender seus lideres.

Rui Barbosa, o patrono dos advogados brasileiros, atuou como defensor – mesmo sem procuração – e ajuizou no Supremo o HC 300, em favor de oficiais generais, de senadores da República, de deputados federais, de jornalistas, como José do Patrocínio, e de poetas, como Olavo Bilac – indiciados por crimes de sedição e conspiração. Segundo Barbosa, foram todos atingidos em seus direitos e em suas liberdades por atos arbitrários de  Floriano Peixoto, presidente da República em exercício.

Para a advogada e historiadora Leda Boechat Rodrigues, em seu livro “História do Supremo Tribunal Federal”, o julgamento causou grande estrondo à época. Por dez votos a um, a Corte negou o pedido, com a alegação de que não tinha competência para julgar, antes do juízo político do Congresso Nacional, o ato do presidente, que declarou o estado de sitio exatamente durante o recesso do legislativo.

O único voto favorável à causa de Rui Barbosa foi do ministro Pisa e Almeida – reverenciado ao final do julgamento por Rui com um simbólico beijo na mão, conta a historiadora. Em 1893, Rui Barbosa ajuizou na Corte os HCs 406 e 410, desta vez em favor de 49 civis presos a bordo do navio mercante “Júpiter”. A prisão foi determinada por ordem do presidente da República, Marechal Floriano Peixoto.

Presos por crime militar inafiançável, juntamente com todos os ocupantes do navio, eles ficaram retidos ilegalmente, conforme alegação do advogado, nas Fortalezas de Santa Cruz e Lage, no Rio de Janeiro, sem nota de culpa e à disposição da Justiça Militar, que segundo Rui Barbosa, seria incompetente para julgá-los. Por maioria de votos, o Supremo concedeu a ordem e determinou a soltura dos detidos.

Rui Barbosa, um dos maiores defensores e usuários do instituto do Habeas Corpus na história do judiciário brasileiro, é também o autor do pedido de HC contra a proibição de circulação do jornal O Imparcial, que durante vigência do estado de sítio decretado pelo presidente Hermes da Fonseca, publicou discurso do próprio Rui Barbosa proferido na tirbuna do Senado. Rui Barbosa alegou que a proibição restringia os debates no Congresso à publicidade oficial, pouco acessível ao povo, e atentava contra os direitos do Legislativo. A ordem foi concedida. Em seguida, Rui entrou com outro pedido de Habeas Corpus em favor de vários jornais para garantir a liberdade de imprensa durante o estado de sítio. A ordem, desta vez, foi negada.

Revolta da Vacina
Em 1905, durante o surto de Febre Amarela que afligiu o Brasil no final do século 19 e início do século 20 e causou milhares de mortes no país, chegou ao Supremo o RHC 2244, em favor de Manoel Fortunato de Araújo Costa. Ele alegava ameaça de constrangimento ilegal o fato de ter recebido, pela segunda vez, a intimação de um inspetor sanitário para adentrar em sua casa – seu asilo inviolável segundo a Constituição da época -, e proceder à desinfecção do mosquito causador da febre amarela.

O Tribunal considerou inconstitucional a disposição regulamentar que facultava à autoridade sanitária penetrar, até com auxílio da força pública, em casa particular para realizar operações de expurgo. A coação é manifestamente injusta, e portanto, a iminência dela importa constrangimento ilegal que legitima a concessão do habeas corpus preventivo, concluiu o Supremo na ocasião.

Banimento da Família Imperial
Em 1874, o STF recebeu pedido de Habeas Corpus (HC 1974) em favor de Gastão de Orleans (o Conde D’Eu), sua mulher (a princesa Izabel de Orleans), e demais membros da ex-dinastia brasileira de Bragança. Eles estavam na Europa e questionavam suposto constrangimento ilegal de que seriam vítimas, por força de um decreto de 1889, que os baniu do território nacional. A defesa pedia a anulação do citado decreto, alegando que ele foi revogado pela Constituição Federal de 1891. O pedido foi negado pela Corte Suprema, que não viu caracterizado, nos autos, nenhum ato do governo que impedisse o retorno dos membros da família ao Brasil.  

Em tempos recentes, o caso mais rumoroso e polêmico dos 100 mil Habeas Corpus do Supremo Tribunal Federal aconteceu no ano passado. Por duas vezes, em menos de 48 horas, o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, mandou soltar o banqueiro Daniel Dantas.

À época, Mendes estava há três meses na presidência do tribunal. Os dois HCs foram o mais famoso exemplo do jeito incisivo de Gilmar Mendes comandar a Suprema Corte do país. Um ano depois, mesmo com a impopularidade que ganhou ao soltar Dantas, Mendes explicou que prefere se ater aos aspectos legais de um julgamento – independente da opinião pública. “Temos regras que devem ser aplicadas a todos. Temos uma jurisprudência no STF que diz que clamor de opinião pública não justifica prisão preventiva”.

Números
Conforme a Assessoria de Gestão Estratégica do STF, o Habeas Corpus é o processo criminal em quantidade mais expressiva hoje na Corte Suprema. Tramitam no STF, atualmente, cerca de 3 mil HCs. Em 2008, foram protocolados 3.648 pedidos e julgados 5.446 (há um excedente de anos anteriores que se acumula). Este ano, até o mês de junho, chegaram à Corte 2.263 HCs. No mesmo período, a Corte já julgou 3.167 ações desta classe processual – foram concedidas 116 liminares e 235 ordens definitivas.

Por garantir um direito fundamental de primeira grandeza – a liberdade de locomoção – o HC tem algumas peculiaridades em relação a outras classes processuais: além de ser o único processo gratuito na Justiça – não são cobradas custas judiciais –  o habeas não precisa ser redigido e ajuizado por advogados, não guardando, portanto, formalidades legais. Qualquer pessoa que se sentir em risco de perder a liberdade ilegalmente pode recorrer ao Judiciário, em nome próprio ou em favor de terceiros.

O Habeas Corpus não se presta apenas para tirar as pessoas da prisão, apesar de ser esse seu uso mais comum. Na verdade, o instrumento serve para evitar qualquer limitação do direito do cidadão de ir e vir, e pode ser usado contra atos que possam levar à prisão de alguém. 

Clique aqui para acessar o Habeas Corpus de número 100 mil.

[Ilustração: caricatura de André Koehne]

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