Piloto condenado

Lei do Abate viola o princípio de direito à vida

Autor

  • Bruno Barata Magalhães

    é advogado consultor em Direito Administrativo e Eleitoral membro do Comitê de Jovens Advogados e do Fórum Latino Americano da International Bar Association e professor do Instituto de Pesquisas Aplicadas.

7 de julho de 2009, 8h30

Em 4 de junho de 2009, a Força Aérea Brasileira realizou os primeiros disparos de advertência desde a edição da Lei Ordinária Federal que ficou conhecida popularmente como Lei do Abate.

Uma aeronave suspeita, proveniente da Bolívia, foi interceptada pela Força Aérea Brasileira e não obedeceu a solicitação inicial dos militares, de efetuar pouso no município de Cacoal, no Estado de Rondônia. Após a realização de disparos de advertência, a aeronave pousou em uma estrada de terra.

Até o presente momento, nenhuma aeronave foi abatida em território brasileiro. Contudo, a Lei do Abate, adotada por outros países sul-americanos, como Colômbia, Bolívia e Peru, já surtiu efeito prático, e também enganos, em outros países.

Em 20 de agosto de 2007, um brasileiro, co-piloto de uma aeronave que continha 123kg de cocaína, que foi abatido na decolagem após uma troca de tiros com o esquadrão antinarcóticos da Bolívia, morreu em um hospital de Santa Cruz de la Sierra, em decorrência das queimaduras ocasionadas pela explosão da aeronave.

Em 2001, no Peru, um avião que transportava missionários foi abatido por engano, confundido com uma aeronave suspeita.

A Constituição da República, promulgada em 5 de outubro de 1988, prevê em seu texto, no inciso XLVII do artigo 5º, que não haverá as penas de morte, salvo em caso de guerra declarada; caráter perpétuo; trabalhos forçados; banimentos e cruéis.

O mesmo dispositivo faz, ainda, na alínea “a”, remissão ao artigo 84, XIX, que dispõe sobre as competências privativas do Presidente da República. O inciso mencionado versa que o Presidente da República poderá declarar guerra, no caso de agressão estrangeira e que tal declaração deve ter autorização do Congresso Nacional ou referendo, em caso da declaração ocorrer durante intervalo das sessões legislativas.

O artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV, da Carta da República, dispõe que não será objeto de deliberação a proposta de Emenda Constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Através de simples leitura do cabeçalho do Capítulo I, do Título II da Lei Maior, verifica-se que o artigo 5º abarca os mencionados direitos e garantias individuais e coletivos.

Em 1998 foi editada a Lei Ordinária Federal 9.614, que alterou a Lei Ordinária Federal 7.565/86, conhecida como Código de Aeronáutica. A lei primeiramente citada ficou popularmente conhecida como Lei do Abate, tendo em vista a instituição de regra que permite a destruição de aeronave suspeita, pela Força Aérea Brasileira. O diploma incluiu o parágrafo 2º ao artigo 303, com a seguinte redação:

“Artigo 303 – A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos:

Parágrafo 2° – Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada”.

Em 16 de julho de 2004, o Presidente da República editou o Decreto 5.144, que regulamenta o mencionado dispositivo.

O artigo 5º do citado Decreto assim dispõe:

"Artigo 5 –  A medida de destruição consiste no disparo de tiros, feitos pela aeronave de interceptação, com a finalidade de provocar danos e impedir o prosseguimento do vôo da aeronave hostil e somente poderá ser utilizada como último recurso e após o cumprimento de todos os procedimentos que previnam a perda de vidas inocentes, no ar ou em terra."

Insertas na Constituição Federal, as chamadas cláusulas pétreas estão previstas no já mencionado artigo 60, parágrafo 4º. Destarte, a fim de que se altere dispositivo referente a qualquer uma dessas cláusulas, é necessária a edição de nova Constituição, não sendo possível modificação por lei ordinária, lei complementar ou emenda constitucional. É notório que as novas regras instituídas pela vigência da Lei Ordinária Federal 9.614/98 decorreram em função da defesa do espaço aéreo brasileiro e do combate ao narcotráfico; duas causas, sem qualquer margem para dúvida, nobres e em prol da sociedade.

Contudo, e não cabe aqui analisar a fundo a confusão que pode ocorrer na identificação de uma aeronave suspeita, sob a ótica puramente constitucional, verifica-se que o diploma conhecido como Lei do Abate padece, manifestamente, de vícios de inconstitucionalidade.

Se a Força Aérea Brasileira efetuar disparos com o objetivo de destruição da aeronave, hipótese mais radical, porém prevista na norma legal, estar-se-á condenando o piloto e demais tripulantes e passageiros à pena capital, a não ser que, mesmo com os disparos, consiga-se efetuar pouso seguro.

É importante mencionar, outrossim, que tal condenação prévia à pena de morte viola o princípio constitucional do devido processo legal, vez que a decisão por tal condenação caberia, de ofício, a Força Aérea Brasileira.

Se não padecer de tais vícios, dever-se-á considerar constitucional a hipótese de edição de Lei Ordinária Federal que altera o Código Penal, outra Lei Ordinária Federal, alterando a pena base do crime de homicídio, de seis a vinte anos de reclusão, para morte.

Não cabe este artigo, também, discutir os benefícios ou a importância da instituição da pena capital no Brasil. Contudo, se esse for o desejo do legislador pátrio, deve-se editar novo texto constitucional e promulgá-lo, tendo em vista que, sob a ótica do texto da Lei Maior em vigor, os direitos e garantias individuais, e aí se inclui o direito à vida, não podem ser violados por qualquer Lei Ordinária, complementar, ou, até mesmo, Emenda Constitucional, salvo as exceções já previstas na própria Carta da República.

Autores

  • é advogado, consultor em Direito Administrativo e Eleitoral, membro do Comitê de Jovens Advogados e do Fórum Latino Americano da International Bar Association e professor do Instituto de Pesquisas Aplicadas.

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