Falta de diálogo

Pressa faz o Judiciário deixar de ouvir as partes

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25 de janeiro de 2009, 8h03

Bárbara Lupetti

Enquanto a sociedade quer ser ouvida, a Justiça cada vez mais mitiga a voz das partes em busca da celeridade processual. Para a população, fica a crescente sensação de distanciamento, aumentada ainda mais pelo formalismo dos tribunais. Essa é a conclusão da advogada Bárbara Gomes Lupetti Batista, que foi a campo para desvendar a relação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro com a sociedade. Para a advogada, há uma crise de legitimidade relacionada à falta de ajuste entre o que os juízes oferecem ao cidadão e o que, de fato, este espera da Justiça.

“O processo é só mais um número para o Judiciário. Mas, para a pessoa, ele é único. O dia dela no tribunal — momento da audiência — é muito importante. Ela quer ter o direito de falar pessoalmente com o juiz”, constata, depois de entrevistar partes e testemunhas na primeira instância da Justiça do Rio. Ao fazer a pesquisa, a intenção foi conhecer como era praticado o Direito e como os agentes do processo judicial o enxergavam, sem, necessariamente, reproduzir livros e manuais.

Bárbara acredita que o estudo do Direito tem de passar pelo dia-a-dia do tribunal. Ela constata que a teoria se distancia da prática e dá o exemplo do princípio da oralidade — o direito de a parte falar e o dever de o Judicário considerar toda manifestação não escrita no processo. “O princípio da oralidade é ideal, perfeito e maravilhoso. Quando leio a respeito, penso que não há motivo para a sociedade deixar de legitimar um Direito tão progressista e democrático. Mas o princípio da oralidade não é o que acontece. É o que se idealiza. Acho que está na hora de valorizar e estudar o Direito que se pratica”, observa.

Ela conta que teve dificuldade para publicar o livro Os rituais judiciários e o princípio da oralidade – Construção da verdade no Processo Civil Brasileiro, resultado de sua pesquisa e tese de mestrado. “O meu trabalho não atende aos dogmas tradicionais do campo jurídico. O Direito precisa trabalhar com dados empíricos. É preciso considerar a prática para se repensar, remodelar e aprimorar”, afirma.

“Muitas pessoas me perguntavam se eu não tinha medo desse trabalho repercutir na minha atuação profissional. Não tenho medo. Ninguém pode dizer que o que relatei é diferente do que acontece no tribunal.” Sempre haverá alguém que pensará diferente, mas a advogada lembra que a pesquisa revela o que, geralmente, ocorre no Judiciário estadual do Rio de Janeiro.

Bárbara Lupetti nasceu no Rio, formou-se em Direito em 2002 e, em seguida, fez mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho. Desde que se formou, atua na área cível do escritório Zeraik Advogados Associados. Fez estágio na Procuradoria do INSS, na Defensoria Pública e em Juizado Especial. Durante o mestrado, Bárbara foi estudar na Argentina. “Os argentinos dizem que não tem oralidade no processo civil, apenas no penal. Mas o que eles chamam de oralidade é a presença da parte. Só no penal é exigida a presença da parte na corte. No processo civil, há audiências com as partes e testemunhas. O processo é similar”, constatou.

Leia a entrevista

ConJur — A sociedade está satisfeita com o Judiciário?
Bárbara Lupetti — Não está satisfeita com a prestação jurisdicional nem legitima o Direito tal como é. Essa crise de legitimidade é uma preocupação constante do campo jurídico, sobretudo em relação ao acesso à Justiça. Percebi que as pessoas têm um certo medo de se dirigir ao Judiciário. É um respeito excessivo respaldado por temor e desconforto muito grandes. São dois mundos absolutamente distantes e com um abismo praticamente irremediável, caso o Judiciário continue como está.

ConJur — A senhora diz, no seu livro, que o princípio da oralidade não é observado na prática. Esse é um dos motivos para essa falta de legitimidade?
Bárbara Lupetti — A doutrina trata do princípio da oralidade como garantia fundamental do cidadão, sem a qual o processo não é justo, democrático e igualitário. É um princípio que facilita o acesso à Justiça. Mesmo assim, é muito difícil chegar aos juízes. Eles não ouvem os advogados. Às vezes, o próprio cidadão quer falar com os juízes. Tivemos um cliente estrangeiro que tentou fazer isso. Ele não entendia como o juiz não o atendia, já que era parte de um processo que tramitava no tribunal. Tentei explicar que o juiz só poderia recebê-lo acompanhado do advogado. .

ConJur — Por que os juízes ouvem pouco?
Bárbara Lupetti — A maioria dos juízes que eu entrevistei disse que age assim em busca da celeridade. Eles explicaram que a audiência é muito demorada. Em um dia, o juiz dá um número x de sentenças, enquanto apenas quatro ou cinco audiências são feitas. Também foi recorrente o discurso de que ouvir as pessoas não acrescenta nada ao processo porque elas mentem, não se lembram dos fatos ou são pouco objetivas. Não se trata de corrupção, mas de testemunhas comprometidas com a parte que as convocou. O depoimento é pouco valorizado. Alguns juízes não acham que o Judiciário é um lugar onde as pessoas devam ficar felizes por resolver os problemas ou as questões que as levaram ali. Muitas vezes, o que fez a pessoa ajuizar uma ação não foi uma questão jurídica. A parte não conhece o Direito. O que faz a parte buscar o Judiciário é um problema, um sentimento ou uma angústia. Essa sensibilidade não entra no processo, até por conta da imparcialidade do Judidiário. Na minha pesquisa, percebi que alguns juízes entendem que o Judiciário não é para conversar, mas para resolver processos. Há relatos de juízes que acreditam que uma sentença rápida atende muito mais ao cidadão do que um processo oralizado e, conseqüentemente, demorado.

ConJur — Mas o que o cidadão busca no Judiciário?
Bárbara Lupetti — Além da solução para seus conflitos, procura uma possibilidade de se manifestar, de a audiência ser um ato menos formal ou ritualizado. Acho que o cidadão espera que o problema seja resolvido de modo rápido, mas com a possibilidade de uma participação mais efetiva em um processo em que ele é parte integrante. O processo é só mais um número para o Judiciário, mas, para a pessoa, ele é único. O dia dela no tribunal — momento da audiência — é muito importante. Ela quer ter o direito de falar pessoalmente com o juiz. Não estou dizendo que tem de fazer terapia no Judiciário, mas acho que o cidadão precisa pisar no tribunal e não se sentir tão pequeno. Formalidade excessiva também é uma forma de distanciamento.

ConJur — Os juízes enxergam isso?
Bárbara Lupetti — Pelo olhar do Judiciário, a administração de conflitos tem de ser, acima de tudo, célere. Se para isso for necessário mitigar a oralidade, tudo bem. Os juízes não sabem que não é essa administração de conflitos que o cidadão quer. Verifiquei que a ausência de legitimidade do Judiciário se dá pela falta de ajuste entre o que o cidadão quer e o que a Justiça oferece.

ConJur — Como a senhora avalia o contato dos juízes com as partes?
Bárbara Lupetti — Em geral, é marcado por frieza. Há muitos juízes desrespeitosos e até agressivos e muitos que são corteses e educados. O cidadão não sabe como é o que está na sua frente. É muito comum a pessoa tentar falar e o juiz determinar que só se expresse através de seu advogado. Eu presenciei em uma vara cível da capital uma audiência com um estrangeiro que era testemunha em um processo sobre uma questão imobiliária. Ele foi conduzido à audiência por um oficial de Justiça, já que não havia comparecido mesmo depois de intimado. Talvez, ao ser intimado, ele não compreendeu que devia ir à audiência. Por desconhecer o procedimento, o estrangeiro entendeu que tinha sido preso. A juíza, agressiva e mal educada, tentou impedir que ele falasse. Ela queria que o estrangeiro fosse objetivo e se lembrasse de datas. Eu, pessoalmente, não me lembro o que estava fazendo na semana passada, em determinada hora do dia. Na minha pesquisa, perguntei aos juízes como eles constroem esse feeling de que a pessoa está mentindo.

ConJur — E qual foi a resposta?
Bárbara Lupetti — Ficar muito trêmulo ou gaguejar demais, para o juiz, significa mentira. Mas são reações que podem demonstrar nervosismo diante de uma autoridade. Tem pessoa, por exemplo, que treme quando fala em público. A audiência é um ato público. É engraçado também como se dá a construção da desvalorização do depoimento. Não se pode dizer que a pessoa está mentindo só porque gagueja.

ConJur — As pessoas sabem como se portar diante das formalidades do Judiciário?
Bárbara Lupetti — Não. Os cidadãos brasileiros não são socializados com o Direito do país. É comum a pessoa, durante o depoimento, parar de falar e olhar para o advogado. O juiz chama a atenção para esse tipo de comportamento, mas o cidadão não sabe se pode olhar para o advogado, quem tem de chamar de excelência, se é possível tirar uma dúvida. Ele não conhece a etiqueta do Judiciário. É um campo que, muitas vezes, impõe normas absolutamente desconhecidas das pessoas.

ConJur — Essas normas também contribuem para a crise de legitimidade?
Bárbara Lupetti — Sim. A pessoa vai ao Judiciário, se depara com inúmeras dificuldades e ninguém para explicar, já que pressupõe-se que ela já deveria saber como se comportar. Isso tudo cria um distanciamento muito grande entre a sociedade e o Judiciário. São mundos que falam línguas diferentes.

ConJur — Dá para conciliar tudo: rapidez, qualidade das decisões e ouvir as partes?
Bárbara Lupetti — Eu não tenho essa solução. O trabalho acadêmico tenta suscitar questões. O que a pesquisa aponta é que há um problema de diálogo entre o que as pessoas esperam da administração de conflitos e o que o Judiciário entende como a melhor maneira de resolvê-los. As soluções estão em outro campo. Talvez, nas políticas públicas. Acho que o problema vai ser menor quando as pessoas tiverem métodos de resolverem seus conflitos por meio de consenso.

ConJur — Conciliação?
Bárbara Lupetti — O que acontece hoje é que soluções ditas consensuais reproduzem a lógica de um processo judicial comum. Os Juizados Especiais, instrumentos que poderiam servir para uma administração mais consensual dos conflitos, transformaram-se em varas cíveis mais rápidas. A lógica que rege os Juizados Especiais é a mesma que comanda os rituais de um processo comum em uma vara cível ordinária. É a ideia de que nós precisamos de um juiz para dizer o que tem de ser feito. Ao invés do diálogo, há teses e um árbitro para escolher a melhor. Nesse esquema, alguém necessariamente vai perder. Isso leva a outro aspecto responsável pela celeridade: o recurso. O Judiciário está muito preocupado com a quantidade de recurso, mas o sistema está centrado nisso.  Acho que a saída era ter um método, realmente, alternativo. Isso não foi apontado pela pesquisa, mas acho que, se conseguirmos dialogar, as pessoas legitimarão o Judiciário. Na minha hipótese inicial, a oralidade seria justamente esse mecanismo que possibilitaria um processo mais consensual.

ConJur — A senhora falou que o sistema judicial está centrado nos recursos. Como é isso?
Bárbara Lupetti — Existe o contraditório até na doutrina, que pode se contrapor entre si. Sempre há a possibilidade de alguém pensar diferente. Quando trabalhamos com essa hipótese, a parte quer ir até a última pessoa que pode pensar igual a ela. O sistema funciona assim. A pessoa vai usar os recursos que puder e isso não será, necessariamente, má-fé.

ConJur — Casos idênticos com soluções diversas também atrapalham a legitimidade do Judiciário?
Bárbara Lupetti — Sim. Como existe o contraditório interno na Justiça, posições diferentes podem surgir a partir de casos idênticos. É um problema de legitimidade. Já aconteceu de um cliente conseguir um título de especialista em otorrinolaringologia e o outro, não. Questões normativas foram interpretadas de formas diferentes. Como é que se explica isso ao cliente? É uma loteria? É preciso torcer para que o desembargador que vota contra sua tese levantar para ir ao banheiro na hora em que o processo for julgado?

ConJur — Em seu livro, a senhora discute o funcionamento da segunda instância.
Bárbara Lupetti — Acho que o duplo grau de jurisdição precisa ser repensado. A ideia principal é ter uma decisão colegiada e consensual. Três pessoas vão discutir o recurso, mas os relatores já chegam com votos prontos. Um processo que leva cinco anos na primeira instância é modificado na segunda instância em segundos e, muitas vezes, a conclusão é resultado da leitura da ementa do acórdão. Isso causa muita estranheza. Se não é um caso muito específico, diferente ou que exige discussão, ele cai na vala comum. Mas isso não é feito para prejudicar as partes. A câmara tem uma sessão de quatro horas para julgar os 100 processos que estão na pauta.

ConJur — A segunda instância aplica o princípio da oralidade?
Bárbara Lupetti — Na segunda instância, a oralidade é muito internalizada nos operadores do Direito, já que a parte não participa do processo. Apesar de ser uma instância que julga de novo o caso, a parte não chega aos desembargadores e, quando o faz, é por meio do advogado durante a sustentação oral. Esta, por sua vez, é muito mitigada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. É comum ver presidentes de câmaras solicitarem aos advogados que sejam muito breves ou que, se possível, não se manifestem na tribuna. A pauta de julgamentos é muito assoberbada. Não há tempo para ouvir todo mundo. A oralidade é uma pedra no caminho da celeridade. O Direito internaliza a lógica de que, se o processo for dialogal e consensual, vai ser lento. Esse processo não interessa ao Judiciário.

ConJur — Aquilo que é falado nos julgamentos é registrado sem grandes problemas?
Bárbara Lupetti — Não. Há confusões geradas pela negação do juiz de registrar literalmente o que uma pessoa disse. O juiz interpreta e o escrevente, que vai digitar, faz uma reinterpretação. Na segunda instância, isso é ainda mais sério porque eles sequer registram os julgamentos em ata  entregue ao advogado . Outro dia, uma decisão escrita saiu completamente diferente do que foi dito no dia da sessão. Nessa situação, o advogado tem de ir ao tribunal, conversar — e convencer — que não eram R$ 50 mil, e sim R$ 85 mil, o que decidiram como valor de uma indenização, por exemplo. Tem uma única câmara do tribunal que grava as sessões. Nem nota taquigráfica há no TJ do Rio.

ConJur — A pesquisa fez com que a senhora passasse a enxergar o juiz de outra maneira?
Bárbara Lupetti — Sim. Há um caso interessante para contar. Uma juíza aceitou me conceder uma entrevista. Na data e horário marcados, ela me pediu desculpas por não ter se preparado e solicitou que eu voltasse em outro dia. No dia marcado, a juíza me recebeu com inúmeros livros de dogmática, códigos comentados, todos sublinhados. Ela me respondeu sobre o que era oralidade, citando fulano ou sicrano. Isso foi muito útil, não propriamente pelo que ela disse, mas pelo que aconteceu. A minha sensação é de que a juíza estava reproduzindo tudo como se a opinião dela tivesse de ser avalizada por alguém consagrado no meio jurídico. No Direito, nós não aprendemos a ter um discurso próprio. O discurso é sempre do outro.

ConJur — O que te motivou a pesquisar o dia-a-dia do Tribunal de Justiça do Rio?
Bárbara Lupetti — Como advogada, tinha certo incômodo de explicar aos estagiários o que eles deveriam fazer no tribunal. Eu falava sobre procedimentos que não estavam escritos em lugar nenhum e, ao ser questionada sobre os motivos pelo qual o Judiciário funciona de tal maneira, a resposta era, simplesmente: "É assim que o processo vai andar". Nós estudamos Direito por cinco anos e, se não fizermos um estágio em um escritório de advocacia, não saberemos atuar nos tribunais por desconhecer suas práticas e rituais. Qual é o conhecimento especializado e particularizado que está, exclusivamente, em escritório de advocacia e não pode estar nas faculdades? A doutrina, a lei e a jurisprudência são fontes importantes para o estudo do Direito, mas a prática também é. Se nós não considerarmos o que acontece no tribunal, estaremos estudando um Direito que, no mínimo, busca outra coisa.

ConJur — O memorial é um desses instrumentos que existem na prática, mas não é teorizado?
Bárbara Lupetti — Sim. Não está legislado. É um resumo do processo que o advogado prepara, como se fosse uma petição, e leva a todos os desembargadores que vão julgar o caso, no dia anterior ao julgamento. Serve para refrescar a memória deles e chamar a atenção para o caso específico. O memorial é um escrito que não tem valor. Ele só tem valor se for oralisado. O objetivo do memorial é falar com o desembargador o que está escrito. Se o advogado não falar, o memorial é uma peça como outra qualquer do processo.

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