Seguro sem lei

Justiça não conhece o que é e para que serve seguro

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11 de janeiro de 2009, 8h45

Ernesto Tzirulnik - por SpaccaSpacca" data-GUID="ernesto_tzirulnik.png">

Em 2 de julho do ano passado, a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio da Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 3.555, que trata do contrato de seguro. Apresentada em 2004, a proposta ainda precisa ser apreciada por quatro comissões para virar lei e acabar com a dor de cabeça que a falta de regulamentação da matéria dá para quem lida diariamente com o assunto.

Contratos de seguro existem há dois séculos, segundo os especialistas, mas até hoje, seguradores e clientes precisam usar regras genéricas do Código Civil para proteger seus interesses específicos referentes a seguro. O grande problema é que o Código Civil, mesmo com a reforma que entrou em vigor em 2002, não acompanhou a evolução dos contratos e das formas de seguro.

Ainda assim, a situação hoje não é tão grave como no passado. Antigamente, o seguro era regulado pelo Código Comercial de 1850. A lei protegia, principalmente, os seguros marítimos. Esses seguros eram confundidos com os seguros chamados comerciais em um tempo em que existia uma consciência de que o Direito Privado era o Direito Comercial e o Direito Civil.

O tempo fez surgir um processo de unificação do Direito Privado que resultou em um esboço de lei apelidado de Teixeira de Freitas. Esta já era uma tentativa de unificação do Direito Privado como um todo — comercial e civil. Ainda assim se reclamava a falta da regulação do seguro de uma maneira mais ampla do que aquela do Direito Comercial. É nesse contexto que surge o Código Civil de 1916, reformado em 2002 e a necessidade de se regulamentar o contrato de seguro.

O projeto original, de autoria do deputado José Eduardo Cardozo (PT-SP), foi elaborado por comissão constituída pelo Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e outras entidades ligadas ao tema. Desde 2004, quando foi elaborado, o projeto sofreu sucessivos aperfeiçoamentos que continuam sendo feitos. O projeto ainda deve passar pela aprovação de três comissões antes de ser apreciado pelo plenário da Câmara.

Para falar sobre o tema, a revista Consultor Jurídico entrevistou o advogado especialista em Direito do Seguro, Ernesto Tzirulnik. O advogado é professor da Faculdade de Direito da FGV, presidente do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e sócio do escritório Ernesto Tzirulnik Advocacia. À ConJur, Tzirulnik explicou como a Justiça tem construído a jurisprudência sobre a matéria e porque é importante a regulamentação desse tipo de contrato.

Leia a entrevista:

ConJur — Falta lei para regulamentar o contrato de seguro?
Ernesto Tzirulnik — Há muito tempo os operadores de Direito que lidam com contrato de seguro reclamam uma lei sobre o assunto, que regule a matéria como um todo. Os contratos de seguro existem há dois séculos. Antes mesmo do Código Civil tínhamos o seguro regulado pelo Código Comercial de 1850. Ele protegia, principalmente, os seguros marítimos. Esses seguros eram confundidos com os seguros chamados comerciais em um tempo em que existia uma consciência de que o Direito Privado era o Direito Comercial e o Direito Civil. O tempo fez surgir um processo de unificação do Direito Privado que resultou em um esboço de lei apelidado de Teixeira de Freitas. Esta já era uma tentativa de unificação do Direito Privado como um todo — comercial e civil. Ainda assim se reclamava a falta da regulação do seguro de uma maneira mais ampla do que aquela do Direito Comercial. É nesse contexto que surge o Código Civil de 1916.

ConJur — O Código Civil de 1916 não regulou o seguro?
Ernesto Tzirulnik — Há um capítulo mal montado que tenta regular o contrato de seguro marítimo e terrestre. Ocorre que em 1916 praticamente não existiam contratos de seguro e menos ainda os problemas que esses contratos apresentam hoje.

ConJur — O que é o contrato de seguro?
Ernesto Tzirulnik — O contrato de seguro é um contrato de uma dinâmica muito diferente dos contratos civis em geral. Basta lembrar que o contrato de seguro é o único entre os contratos civis que exige a figura da massa, da empresa, da gestão de grandes movimentos obrigacionais. O contrato de seguro é isolado. Eu, como pessoa física, como transportador, posso celebrar um contrato de transporte assim como qualquer outra pessoa. E vai ser um contrato perfeito. Assim também na empreitada. Posso empreitar a construção da sua casa. No contrato societário, dois podem associar-se para fazer existir uma sociedade. No seguro é diferente. Eu, como pessoa física, não posso celebrar um contrato de seguro com outro.

ConJur — Não posso porque sou pessoa física?
Ernesto Tzirulnik — Não só por isso. Existem vários pressupostos. Um deles é o da grande produtividade. Imagine que vou fazer o seguro de incêndio de um escritório e de seu conteúdo. Qual vai ser o preço? Segundo, que tipo de contrato é esse? O contrato de seguro funciona quase como uma aposta. Eu, seguradora, aposto que não vai acontecer nada. Se acontecer vocês recebem o valor do prêmio. Se não acontecer, eu ganho o que vocês pagaram pelo contrato.

ConJur — A seguradora tem que ter dinheiro para bancar 100% dos objetos segurados?
Ernesto Tzirulnik — Ela não precisa ter dinheiro para bancar 100%, mas tem de estabelecer mecanismos de garantia em beneficio próprio que permitam, em casos extremos, pagar seus clientes, inclusive em casos de catástrofe. Dificilmente uma seguradora vai conseguir trabalhar com um pequeno número de contratos e de segurados. Também é comum que as seguradoras contratem seguros para os riscos de sua atividade, caso tenha de se recuperar e se fortalecer economicamente. Então, na realidade, não existe a hipótese de a seguradora ter de indenizar a totalidade. Mas, de qualquer forma, ela tem de estar preparada para fazer desembolsos superiores ao seu capital.

ConJur — O projeto de lei vem suprir essa falta de regulamentação?
Ernesto Tzirulnik — De 1916 até a década de 30, 40 amadureceram as questões entre segurados e seguradoras. O contrato de seguro é um contrato “prato feio”. Pouca gente lida com ele e no fundo ele é muito simples. O que existe é uma áurea de complexidade e as pessoas têm medo de se aproximar. O contrato de seguro é muito moderno em termo de concepções. Foi o contrato de seguro, por exemplo, que fez nascer a idéia da teoria da empresa.

ConJur — Como assim?
Ernesto Tzirulnik — Buscando a natureza similar entre os seguros de vida e os seguros de danos é que os autores começaram a descobrir o quê tem de comum entre eles. A organização e massa de operações são pontos em comum, segundo o que estudaram grandes comercialistas. O contrato de seguro tem natureza distinta dos demais (hipoteca, penhor, patrimônio e tudo aquilo que o Direito Civil regula), é novo e precisa ser tratado como tal, o que não acontece hoje.

ConJur — Novo de quanto tempo?
Ernesto Tzirulnik — O seguro surge como seguro por volta do século 17 ou 18. Não existe seguro a.C., d.C.; como em todos os demais contratos. Antes de Cristo já havia empreitada e transporte. O seguro não. Ele é jovem. Vem, fundamentalmente, com o último desenvolvimento do comércio marítimo e cresce de acordo com as necessidades da indústria. Por causa dessa dinâmica, as regras do contrato de seguro não podem ficar presas a códigos.

ConJur — Qual a função do seguro?
Ernesto Tzirulnik — O seguro não garante o risco, ou a coisa, ou a pessoa. O que o seguro protege é o interesse de alguém em relação a algo.

ConJur — O projeto de lei contempla também seguro médico e segura de vida?
Ernesto Tzirulnik — Não. O seguro de saúde tem um tratamento muito politizado. Eu diria que ele é mais uma questão pública sob gestão privada do que o seguro é ou os contratos em geral são. Aprovar uma lei em contrato de seguro cuidando da questão de seguro saúde seria uma tarefa para 200, 300 anos. E a gente tem idéia de que o autor do projeto quer ver a matéria regulada, enfim, em um prazo razoável. O seguro de saúde precisa de debates diferentes. Quando as pessoas fecham um seguro saúde o que elas compram, na verdade, é um atendimento vip.

ConJur — Uma das particularidades do seguro de saúde é substituir a função que deveria ser do Estado.
Ernesto Tzirulnik — Aí que está. Isso não é correto. Temos um problema de crise em serviço público essencial e, por isso, recorremos a outros instrumentos.

ConJur — Quais são os principais pontos do projeto de lei?
Ernesto Tzirulnik — A principal idéia é deixar bem assentada a aplicação da lei e da jurisdição brasileiras. A tendência dos seguros é que haja uma certa invasão cultural. A tendência nos contratos é ver a língua estrangeira, as práticas estrangeiras, a lei estrangeira.

ConJur — Existem contratos em que é aplicada apenas a legislação estrangeira?
Ernesto Tzirulnik — Na pratica da operação sim. É o caso do D&O.

ConJur — O que é o D&O?
Ernesto Tzirulnik — É um seguro que surgiu depois da crise da Bolsa de 1929. O D&O (do inglês directors’ and officers , referindo-se aos administradores da empresa) foi desenvolvido pelos ingleses para vender para os americanos, dentro de um conceito de comom law totalmente diferente. É um seguro de responsabilidade civil do administrador da empresa.

ConJur — O D&O deve cobrir fraudes de executivos e diretores de empresas?
Ernesto Tzirulnik — Depende. Parece um território simples, mas não é. O D&O pode garantir os administradores de uma empresa, diretores e conselheiros. Ele pode garantir o patrimônio dessas pessoas contra reclamações feitas por terceiros, pode garantir, também, as reclamações feitas pela empresa contra os administradores. Garante também os danos que o administrador causou à empresa. O que não pode é a empresa estar sendo caracterizada como terceiro. A fraude, em principio, nos contratos D&O não está garantida, mas em algumas situações é possível garantir a fraude cometida pelo administrador.

ConJur — O D&O é usado no Brasil?
Ernesto Tzirulnik — Sim. O que tem de ser ressaltado é o seguinte: o O D&O é um seguro de responsabilidade civil e o Código Civil prevê o seguinte: “Seguro de responsabilidade civil é para garantir o pagamento devido pelo segurado ao terceiro prejudicado.” Então, é para garantir o pagamento devido à vítima, está escrito na lei. Lá fora, o seguro D&O foi muito dedicado e fundamentalmente utilizado para garantir honorários de defesa do segurado sendo possível até esgotar toda a indenização da apólice pagando os honorários para defender o administrador acusado de causar prejuízo. Bom, se fosse um seguro de responsabilidade civil que respeitasse a ordem jurídica brasileira, jamais faria isso.

ConJur — Por que?
Ernesto Tzirulnik —A maior parte dos seguros D&O é de apólices que vêm de fora e que não têm sintonia com a linguagem, com o raciocínio, com o Direito, com a cultura, com o ambiente brasileiro. Elas são traduções mal feitas para o português. Há contratos que mencionam figuras de rainha, por exemplo, porque vieram de países em que ainda há essa figura.

ConJur — E quando esses contratos chegam a Justiça como é que são interpretados?
Ernesto Tzirulnik — A Justiça não tem uniformidade, especialmente no que diz respeito ao contrato de seguro. Os juízes desconhecem a estrutura técnica do contrato e aí vem aquele tipo de decisão: “Se pagou prêmio para uma garantia de R$ 100 milhões e teve perda total na indústria, a seguradora tem de pagar R$ 100 milhões.” Não é assim. A indústria pode não valer R$ 100 milhões. O contrato se refere à indenização e não ao valor da indústria. Ele tem uma utilidade social econômica e não tem a função de atribuir vantagens. No é porque pagou um prêmio de R$ 100 mil para ter uma cobertura de R$ 10 milhões que se acontecer uma perda total o cliente recebe R$ 10 milhões. Tem de ser levado em consideração se o prejuízo foi de realmente R$ 10 milhões. Juiz não lê o contrato de seguro e esse tipo de matéria não faz parte do dia-a-dia do magistrado.

ConJur — O projeto de lei resolve esse problema?
Ernesto Tzirulnik — Resolve. Lá está escrito: “a eficácia do contrato de seguro depende da existência de interesse legitimo.” Ou seja, o contrato vai ser eficaz se tiver interesse, não existindo interesse legitimo o contrato é ineficaz.

ConJur — O projeto de lei oferece algum tipo de proteção para seguradoras contra fraudes cometidas pelos segurados?
Ernesto Tzirulnik — Sim. Ao longo dele todo.

ConJur — Quais, por exemplo?
Ernesto Tzirulnik — A principal proteção está no artigo 56. Diz o texto: “o contrato de seguro não pode ser interpretado ou executado em prejuízo da sociedade de segurados, ainda que em beneficio de um ou mais segurados, ou beneficiários, nem promover o enriquecimento injustificável de qualquer das partes ou de terceiros”. A regra chama a atenção para o fato de que o contrato é uma poupança coletiva e impede o enriquecimento ilícito. A lei tem uma função didática quanto à questão da fraude. Diz: “isso é um contrato relacional, isso é poupança pública, não pode gerar prejuízo à coletividade de segurados atribuindo algo a mais.” O mesmo existe no artigo 58. De acordo com a norma, “é vedada a interpretação ampliativa do seguro que desequilibra a estrutura técnica atuarial do ramo ou uma modalidade da operação de seguro”. Depois, há uma regra prevendo especificamente a amplitude do meio de prova. Os indícios são os meios de prova mais comum para demonstração da fraude.

ConJu — Como é hoje?
Ernesto Tzirulnik — Hoje não existe uma norma expressa. O que existe é a dificuldade por parte do Judiciário de sair do discurso da prova judiciária para a prática da aplicação da norma, porque ela ainda é um tabu. O projeto de lei vem contra isso ao prever que o dolo e a fraude podem ser provados por todos os meios em Direito admitidos, inclusive por indícios e presunções.

ConJur — Mas isso não contraria a jurisprudência que diz que indício não pode ser considerado prova?
Ernesto Tzirulnik — Não. É só sair do campo penal para o cível. Para a responsabilidade penal ser estabelecida é claro que tem de haver um nível de certeza muito superior àquele que você tem que ter para os efeitos civis, em primeiro lugar. Em segundo lugar, é claro que na dúvida temos que obrigatoriamente acreditar que não é fraude. A fraude existe? Existe. Ela é importante? Ela é importante. Tem que ser combatida? Tem que ser combatida. Agora, a fraude é o maior problema da litigiosidade do contrato de seguro? Nem de longe. A deficiência de produtos e a má aplicação de regras de mora no caso de pagamento de prêmios é muito mais lesivo para o sistema como um todo do que a fraude.

ConJur — E significativo em quantidade também?
Ernesto Tzirulnik — Em quantidade, em qualidade, em limpeza moral do sistema. Mas a fraude não se interpreta contra a coletividade, não se alarga contra a estrutura técnica do contrato. O projeto de lei também prevê isso. Segundo o artigo 69, “a provocação dolosa de sinistro pelo segurado, beneficiário, tentada ou consumada implica a dissolução do contrato sem direito a indenização e sem prejuízo da dívida de prêmio”. A regra já diz: atenção juiz, mesmo a fraude sendo apenas tentada o segurado dança. Ninguém pode ficar vinculado ou estar contratado com alguém que está fraudando. A mesma sanção será aplicada quando o segurado ou beneficiário tiver previa ciência da pratica delituosa e não tentar evitá-lo ou quando comunicar dolosamente o sinistro que não ocorreu.

ConJur — Quando o projeto foi apresentado?
Ernesto Tzirulnik — 13 de maio de 2004.

ConJur — Em que pé está?
Ernesto Tzirulnik — Ainda precisa ser apreciado por quatro comissões. Ele já passou duas vezes pela Comissão de Desenvolvimento Econômico do Câmara e por duas vezes recebeu voto favorável dos dois relatores.

ConJur — Quais são as ultimas três comissões?
Ernesto Tzirulnik — Agora ele está em Seguridade Social e Família, depois ele vai para Finanças, e finalmente para a Comissão de Constituição e Justiça

ConJur — O projeto trata de resseguro?
Ernesto Tzirulnik — Ele não trata propriamente de resseguro, embora tenha um capitulo sobre resseguro. O projeto não é uma lei de controle, mas uma lei que regula o contrato de seguro.

ConJur — O que faz o Instituto Brasileiro de Direito do Seguro?
Ernesto Tzirulnik — O IBDS reúne juristas das mais diversas áreas para discutir Direito de seguro. Especialistas de áreas como Direito Civil, Penal, Comercial, Previdenciário analisam o Direito de seguro a partir da ótica da matéria em que são especializados. O que vemos é a doutrina sobre o assunto crescendo, o que é muito positivo.

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