Crucifixos no Tribunal

Estado plural deve garantir separação da Igreja

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28 de fevereiro de 2009, 16h18

[Artigo publicado originalmente no jornal O Globo deste sábado (28/2)]

A decisão do presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro de retirar o crucifixo até então afixado na sala de julgamentos da corte levantou relevantíssimo debate sobre a compatibilidade constitucional da aposição de símbolos religiosos em fóruns e tribunais.

A proteção dos direitos de liberdade religiosa está a depender da igual consagração da separação Estado-Igreja. É por esse motivo que as lutas históricas por maior liberdade em matéria de fé vieram acompanhadas da reivindicação pela ruptura do modelo de união entre poderes espiritual e temporal que, durante séculos, reuniu na mesma pessoa as chefias do Estado e da Igreja, transformando cidadãos em fiéis e dissidentes religiosos em inimigos do Estado.

A cláusula da separação Estado-Igreja impõe que o Estado, ao se relacionar com a religião, adote comportamentos fundados no parâmetro da neutralidade axiológica.

Isso significa que, além de ser vedado ao Estado professar uma específica doutrina religiosa (tal como ocorre nos Estados confessionais), também lhe é obstado conferir tratamento diferenciado a qualquer crença ou descrença, ou adotar qualquer comportamento capaz de enviar, aos cidadãos, sinais de identificação estatal com determinado pensamento religioso.

Deve o Estado se abster de emitir posicionamentos, juízos de valor ou preferências em matéria religiosa, para que as crenças ou descrenças desfrutem de igual dignidade e respeito, e para que possam florescer em razão de seu mérito intrínseco, e não como decorrência de uma dada postura de chancela oficial.

Nesse contexto, a manutenção de símbolos religiosos em tribunais representa inaceitável identificação entre o ente estatal e determinada crença, com nítida interferência no dissenso interconfessional, com clara violação ao parâmetro da neutralidade e com diminuição das demais convicções que não foram contempladas com tal gesto de apoio e divulgação.

Não se deve jamais minimizar a força coercitiva e simbólica dos comportamentos do Poder Público. Por isso, nada justifica que um Estado democrático e plural ignore a garantia da separação Estado-Igreja para, em atendimento a demandas majoritárias, admitir que seus prédios e seus órgãos sejam adornados com símbolos vinculados às crenças tradicionais.

Deve-se advertir que são juridicamente distintas a manifestação particular de fé em local público e a manifestação de fé que é feita pelo próprio Estado. O espaço público não é incompatível com manifestações de fé, e estas serão legítimas desde que feitas ou externadas pelos próprios cidadãos, e não pelo Estado, que tem obrigação constitucional de se manter neutro em tema de religião. Qualquer identificação simbólica entre Poder Público e uma dada crença, portanto, para além de representar inaceitável vinculação entre religião e Estado, envia aos cidadãos de diferentes crenças, aos descrentes e às minorias silenciosas, subalternas mensagens de desvalor, de preterição e de inferioridade.

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