Ellen Gracie ou Hector Torres?

Vaga na OMC esquenta rivalidade Brasil x Argentina

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  • Marcílio Toscano Franca Filho

    é procurador-geral do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da Paraíba pós-doutor em Direito pelo Instituto Universitário Europeu (Florença Itália) e professor do Mestrado em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba.

27 de fevereiro de 2009, 18h39

Pelé ou Maradona? Picanha ou feijoada? Rio de Janeiro ou Buenos Aires? Tango ou samba? A extensa pauta de conflitos apaixonados e oposições históricas entre Brasil e Argentina acaba de ganhar mais um item importante: Ellen Gracie ou Hector Torres?

Muito longe das arenas tradicionais em que se enfrentam as grandes paixões nacionais de apelo popular como o futebol ou a música, o mais recente conflito entre os dois membros do Mercosul tem agora como palco a fria, circunspecta e distante Genebra, cidade suíça que abriga a sede da Organização Mundial do Comércio (OMC). É lá que a ministra do Supremo Tribunal Federal, primeira mulher a integrar a Corte e sua ex-Presidente, enfrenta o vigor e a passionalidade portenhos na disputa por uma vaga naquele que é considerado por muitos o mais importante tribunal internacional da atualidade, o Órgão de Apelação da OMC.

Diz-se até que, se a velha anedota do Moleiro de Sans-Souci se passasse nos dias de hoje, o tal moleiro já não bradaria que “ainda há juízes em Berlim”, mas certamente que “ainda há juízes em Genebra”. O fato bem retrata a importância que adquiriu nos últimos anos o Órgão de Apelação da OMC, um tribunal que tem decidido com crescente freqüência causas de enorme impacto econômico e grande repercussão política. Para além da circunstância de lidar com processos cujas cifras ultrapassam muitas vezes os bilhões de dólares, o Órgão de Apelação da OMC, a troco de julgar as controvérsias comerciais entre os países, tem vindo a deliberar nos últimos tempos sobre questões cada vez mais amplas, tais como condições de trabalho, proteção ao meio ambiente, entraves burocráticos às exportações, práticas discriminatórias em licitações, livre-circulação de serviços, formação de blocos econômicos ou concorrência empresarial.

Não bastassem esses fatos, o Órgão de Apelação da OMC é ainda a única corte internacional da atualidade cuja jurisdição é aceita sem reservas pelas maiores potências econômicas, como os Estados Unidos, a União Européia e a China. Em tempos de grave crise econômica global e de robustas ajudas estatais a empresas e bancos à beira da falência, é fácil prever ainda que, nos próximos anos, o tribunal da OMC será certamente um dos mais midiáticos fóruns de discussão a respeito da legitimidade das atuais manifestações de nacionalismo econômico.

Em 19 de dezembro do ano passado, o governo brasileiro lançou o nome da ministra Ellen Gracie como candidata a um mandato de quatro anos no Órgão de Apelação, cuja renovação parcial ocorre no segundo semestre de 2009. Até recentemente, essa mesma vaga fora ocupada pelo respeitado professor Luiz Olavo Baptista, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. O longo processo de consultas, entrevistas e conversas para selecionar o novo juiz já começou. Um breve cumprimento, nas ruas Genebra, à ministra Ellen Gracie na semana passada revelou-me uma candidata segura dos seus méritos, disposta a bem convencer os 153 Estados-membros da OMC nas sessões de entrevista em que tem participado, mas simultaneamente ciente das dificuldades que enfrenta a sul do Rio da Prata.

O embate está longe de ser fácil: o diplomata argentino Hector Torres, seu concorrente mais imediato, tem um currículo de grande proximidade com os temas da agenda comercial internacional, já tendo sido funcionário do FMI, membro da Missão da Argentina em Genebra e com longa e íntima atuação na própria OMC.

Ao se afastar de Brasília para se submeter à maratona da disputa por uma vaga em Genebra, a ministra Ellen Gracie lembra a lição dos barqueiros do lago Léman: “no cais, todo barco está seguro, mas ele não foi feito para isso”. Para além desse destemor, a ministra entra nessa batalha com a grande vantagem de ser uma competentíssima professora e estudiosa do Direito Constitucional (quer brasileiro, quer comparado), um ramo da Ciência Jurídica que ganha crescentes espaços de prestígio nas discussões sobre o comércio global dentro e fora da Academia.

Dadas as exigências cada vez maiores da sociedade civil internacional para que a concretização dos direitos humanos e das liberdades fundamentais ocorra nas mais amplas e variadas dimensões, inclusive a comercial/laboral, o progresso da Rodada de Doha na OMC certamente abrirá caminho à constitutionalização de muitas das normas daquela organização. E o sentido do termo “constitucionalização” aqui é duplo: diz respeito tanto à elevada força normativa dessas regras quanto ao método finalístico que deve ser empregado em sua interpretação/aplicação. É nesse quadro que a candidatura de uma respeitada constitucionalista, muito habilidosa no manuseio de instrumentos jurídico-processuais de densificação e proteção dos direitos humanos além de claramente favorável ao diálogo entre jurisdições e à “diplomacia judicial”, merece todo incentivo, apoio e torcida. Por tudo isso e com tais predicados, só nos resta dizer: Allez, ministra, bon courage!

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