Negócios jurídicos

Simulação inocente por parte do usuário e o empréstimo com juros

Autores

  • Carlyle Popp

    é advogado sócio do escritório Popp&Nalin Sociedade de Advogados professor titular de Direito Civil da Unicuritiba.

  • Guilherme Borba Vianna

    é advogado associado da Popp & Nalin Sociedade de Advogados especialista em Direito Processual Civil e Direito Societário mestre em Direito Econômico e Social professor de Direito Empresarial na Faneesp/Inesul e professor de Direito do Consumidor na FESPPR.

26 de fevereiro de 2009, 8h48

Dentre as alterações introduzidas pelo Código Civil de 2002, situa-se a simulação no campo das invalidades dos negócios jurídicos, que antes era causa de anulabilidade por defeito na relação jurídica (juntamente com o erro, dolo e a coação) e hoje dá ensejo a nulidade absoluta do negócio.

Para o presente texto, interessa a relação entre a simulação inocente e os empréstimos com juros usuários, ou seja, aqueles praticados acima dos patamares legais, comumente utilizados pelos agiotas. Isso porque, como é cediço, os agiotas possuem múltiplas formas contratuais para encobrir um empréstimo com juros ilícitos.

Uma das formas mais comuns se dá através da simulação da compra e venda de um imóvel do mutuário em favor do agiota, concomitantemente com um contrato de locação, onde o mutuário (agora “locatário”) paga os juros mensais do empréstimo na forma de “aluguel” e ao final tem a opção de (re)compra do bem, pagando o principal corrigido. Certamente, nenhum mutuário pretende, de fato, alienar ou dar em pagamento seu imóvel (muitas vezes residencial) pelo mútuo contraído num empréstimo, mas, diante da exigência de garantia e da necessidade por tomar o empréstimo, o mutuário acaba aderindo inocentemente ao negócio simulado.

A simulação pode ocorrer de forma absoluta (sem conteúdo, inexistente) ou de forma relativa (possui conteúdo, mas diverso do que aparenta). A relativa pode ainda ocorrer de forma inocente, entendida como aquela em que as partes realizam um negócio jurídico com intuito de maquiar a verdadeira relação mantida, todavia, sem prejudicar terceiros ou violar preceito legal (inofensiva). É o caso do exemplo citado acima, já que o mutuário e o agiota simulam uma compra e venda e uma locação sem que esta seja a verdadeira relação jurídica entabulada entre eles. Diferentemente é a simulação relativa fraudulenta ou ilícita, na qual as partes pretendem fraudar à lei ou prejudicar terceiros.

Corroborando com o alegado o jurista Francisco Amaral conceitua a simulação inocente da seguinte forma:

A simulação inocente é a que se faz sem o intuito de prejudicar, como ocorre, por exemplo, no caso de um homem solteiro simular qualquer venda à sua companheira, ocultando na verdade uma doação, pois não há qualquer impedimento para este ato (CC, art. 550). Não tem relevância prática no direito civil. A simulação maliciosa, fraudulenta, muito mais freqüente, visa a prejudicar terceiros ou violar dispositivo legal, como se verifica nos exemplos acima. (1)

Pois bem, no Código Civil de 1916, o ato simulado inocente não invalidava o negócio jurídico quando não houvesse intenção de prejudicar terceiros ou de violar disposição de lei, tal como previsto no art. 103 do Código Civil revogado (2). O mesmo não ocorria com a simulação fraudulenta ou ilícita, a qual, nos termos do artigo 104 do mesmo Código, vinculava as partes de forma indissociável, não permitindo que os partícipes do negócio jurídico simulado se beneficiassem da própria torpeza, alegando que o ato seria inválido. (3)

Ou seja, através da interpretação do artigo 103 do Código Civil de 1916, quando o negócio jurídico realizado entre as partes pretendesse “simplesmente ocultar de terceiros a verdadeira natureza do negócio, sem, no entanto, causar dano a interesses de qualquer pessoa” (4), era tolerado pelo direito (5), pois não prejudicava terceiros e não possuía propósito danoso para a coletividade.

Desta forma, observa-se que o mutuário que contraísse empréstimos usuários de forma simulada na vigência do Código Civil de 1916, estava protegido pelo artigo 103, pois poderia alegar, em proveito próprio, a anulabilidade do negócio jurídico, desde que o ato gerasse efeitos apenas entre as partes, não prejudicando terceiros.

O Código Civil vigente não prevê mais esta distinção entre simulação inocente e simulação fraudulenta, tratando ambas no artigo 167, através do qual “é nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma”.

Destarte, ao dispor que subsiste a relação jurídica dissimulada desde que “válida na substância e na forma”, o Código Civil vigente acabou resguardando para a simulação inocente tratamento diverso do tratamento dado à simulação absoluta, a qual é nula de pleno direito, ressalvado o direito de terceiros (§ 2º do artigo 167 CC/02).

Com isso, observa-se que a relação jurídica simulada inocente pode ser questionada tanto na vigência do Código Civil de 1916, como no Código Civil de 2002, assegurando, desta forma, o direito do mutuário que firmou um contrato simulado de compra e venda e locação de imóvel (para encobrir um mútuo usuário) rever os encargos contratados pelo mútuo concedido pelo agiota. O mesmo fundamento pode ser observado em recente decisão proferida pelo TJPR, in verbis:

AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO CUMULADA COM REINTEGRAÇÃO DE POSSE. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. ALEGAÇÃO DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. SIMULAÇÃO DITA INOCENTE, PORQUE NÃO VISOU PREJUÍZO A TERCEIRO, NEM FRAUDE À LEI. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO EM PRIMEIRA INSTÂNCIA. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. Compra e venda de imóvel como garantia de empréstimo de soma em dinheiro, demonstra hipótese de ocorrência de simulação inocente, ensejando declaração de nulidade do negócio jurídico. (TJPR – 18ª C.Cível – AC 0235810-9 – Ivaiporã – Rel.: Juiz Subst. 2º G. Sérgio Roberto N Rolanski – Unanime – J. 27.06.2007)

Nos mesmos termos sobressai o entendimento do STJ, no voto do Min. Eduardo Ribeiro:

Não é exato que, inocente a simulação, não possa o ato ser anulado a pedido de um dos contratantes. Não é essa a interpretação que se haverá de dar ao artigo 103 do Código Civil, tanto mais que de ser entendido tendo em atenção, a contrario sensu, o que estabelece o artigo 104.

Em verdade, a adoção da tese conduziria a insuportáveis iniqüidades. Ter-se como válido e eficaz um ato que as partes não quiseram praticar é absolutamente injustificável, se não incide a hipótese de que cuida o artigo 104. (6)

As palavras do ex-ministro do STF Barbosa Moreira também são esclarecedoras neste sentido:

A simulação que dissimula e camufla o negócio jurídico verdadeiro — a mais importante — apresenta no nosso sistema jurídico um problema: se levássemos à risca o princípio, desde o momento em que os simulantes não podem invocar um contra o outro a simulação, estaríamos no paraíso da usura, tendo em vista que o usurário não poderia ter invalidado o negócio por simulação, já que o que recebera o empréstimo com usura também participara da simulação. Por essa razão, essa questão chegou até a ser muito debatida no Supremo Tribunal Federal, para se admitir que, nesse caso, reconhecia-se que aquele que fora levado a celebrar o negócio jurídico, obviamente contra a sua vontade, mas por estar necessitado, poderia, apesar de o Código Civil dizer que o simulante não pode invocar simulação com relação ao outro, invocá-la contra o usurário. (7)

Além disso, deve se ressaltar que ao tratar a simulação como ato nulo de pleno direito, o Código Civil de 2002 abre a possibilidade de qualquer das partes contratantes levantarem a nulidade, inclusive o próprio magistrado, já que a nulidade é passível de declaração inclusive ex officio. (8)

Ou seja, doutrina e jurisprudência perfilam entendimento no sentido de que nos casos de mútuos usuários, a simulação é inocente por parte do mutuário (aplicando-se a regra do artigo 103 do CC/16 ou a segunda parte do artigo 167, caput, do CC/02), caso contrário, estaria se legitimando a usura ao impedir que o mutuário pudesse revisar os negócios jurídicos entabulados, na maior parte das vezes, em condições extremamente vantajosas para o agiota, e sem que a vontade das partes tivesse perseguido o fim que o ato jurídico atingiu.

Referências

(1) AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro; Renovar, 2003, p. 534.

(2) “A simulação não se considerará defeito em qualquer dos casos do artigo antecedente, quando não houver intenção de prejudicar a terceiros, ou de violar disposição de lei”.

(3) “Se a simulação tem por escopo prejudicar a terceiros, os simuladores nada poderão alegar contra o ato; ninguém será admitido a alegar a própria torpeza (nemo de improbitate sua consequitur actionem)”. (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil: parte geral. V. 1. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 219).

(4) SACRAMONE, Marcelo Barbosa. A simulação no novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1256, 9 dez. 2006. Disponível em: . Acesso em: 06 jan. 2009.

(5) PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil. 18ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 340.

(6) STJ, REsp 243.767/MS, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 21/02/2000, DJ 12/06/2000, p. 110.

(7) MOREIRA ALVES, A parte geral do projeto de Código Civil, http://www.cjf.jus.br/revista/numero9/artigo1.htm, Capturado em 06/01/2009.

(8) VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. v. 1. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 486.

Autores

  • é Advogado, Sócio de Popp & Nalin Advogados, professor titular de Direito Civil da Unicuritiba, graduação e mestrado, Associado fundador da Academia Paranaense de Letras Jurídicas, Membro do Conselho Editorial da Juruá e do Instituto dos Advogados do Paraná

  • é advogado, Associado de Popp & Nalin Advogados e professor de Direito Civil da Faneesp/Inesul

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