Justiça de transição

Debate sobre anistia mostra não haver tema proibido

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23 de fevereiro de 2009, 11h51

[Artigo publicado originalmente no jornal O Globo desta segunda-feira (23/2)]

Em 26 de fevereiro de 1969, o general Costa e Silva editou o malfadado Decreto-Lei 477.

Tal ato de exceção oficializou as perseguições políticas no meio universitário, público e privado, com processos sumários para expulsões de estudantes e demissões ou aposentadorias compulsórias de professores e técnicos administrativos.

Os atingidos foram proibidos de estudar em quaisquer outros cursos ou de serem nomeados para quaisquer outros cargos. Parcela significativa do capital humano brasileiro foi afetada e é evidente que o prejuízo histórico e atual para o campo intelectual e para a potencialidade científica brasileira é imensurável.

A história indica que é preciso lembrar para não repetir jamais. Deve o Estado manter uma política de preservação da memória histórica e de afirmação dos valores democráticos. Como um fenômeno social, histórico, temporal e mutante, a democracia exige olhares atentos e os cuidados da prudência.

Por isso, nas rupturas com os regimes autoritários, para sinalizar ao futuro a idéia da “não-repetição”, torna-se obrigatória a implementação de uma Justiça de transição. Conceituada pela ONU enquanto um conjunto de mecanismos hábeis para tratar o legado de violência do regime autoritário, seus elementos centrais são a verdade e memória (conhecimento dos fatos e resgate da história), a reparação (imperativo dever do Estado de indenizar os perseguidos políticos), o restabelecimento pleno do preceito da Justiça e do devido processo legal (direito da sociedade em processar e responsabilizar aqueles que romperam com a legalidade e violaram os direitos de cidadania cometendo crimes contra a humanidade) e a reforma das instituições (vocacionar os órgãos de segurança para a vida democrática).

No cumprimento de seu dever histórico e constitucional, a Comissão de Anistia tem implementado um efetivo programa de Justiça de transição para o Brasil. O projeto das “Caravanas da Anistia”, com julgamentos públicos país afora, nos locais onde as perseguições ocorreram, promovem maior transparência e publicidade aos trabalhos e critérios da comissão. As atividades permitem, sobretudo aos jovens, conhecer a história e imbuirse da relevância da manutenção da Justiça e das liberdades públicas.

A maior celeridade dos julgamentos de pedidos de reparação permite aos cidadãos atingidos pelos atos de violência da repressão receber o pedido de desculpas do Estado em vida, reconciliando-se a nação.

Nos anos de 2007 e 2008, cerca de 20 mil pedidos foram apreciados, número similar à totalidade dos processos apreciados nos seis primeiros anos da comissão, criada em 2001. A média das remunerações mensais, que chegou a ser próxima a R$ 6 mil, hoje está em torno de R$ 3 mil, em harmonia com os valores pagos na Previdência Social.

A audiência pública sobre o alcance da lei de anistia promoveu saudável discussão na sociedade e colaborou para a superação da descomprometida leitura de que a anistia brasileira devesse ser vista e convertida em amnésia, como tentativa de se impor o esquecimento.

Rompeu-se a cultura do medo, reafirmando que na democracia não podem existir temas proibidos e a sociedade livre pôde levar o tema ao STF, que definirá se o Brasil enfrentará seu passado a exemplo de tantas outras nações e segundo as exigências da ONU e da OEA. Outro fato novo foi a primeira Conferência das Comissões de Reparação e Verdade da América Latina, que permitiu efetiva integração entre as políticas comuns e trocas de experiências com diversos países.

Por fim, sem dúvida alguma, em 2008, o fato marcante foi o ato de anistia ao presidente João Goulart, deposto pelo golpe de 64, pois restava pendente a demanda de condenação da ditadura por parte do Estado brasileiro, algo que, de maneira oficial, ainda não se havia produzido. Nossa democracia saiu mais forte no ano que se passou.

Ponto para a sociedade brasileira.

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